2 de abril de 2018

Ermal. Miguel Santos (Escorpião Azul)


Miguel Santos apresenta aqui aquilo que se chama na indústria de entretenimento um projecto “high-concept”, isto é, algo que se concentra de forma potente numa premissa, em si mesmo pejada de implicações narrativas. Neste caso, trata-se de uma história alternativa, passada numa província colonial portuguesa em que a guerra colonial terá encontrado uma continuidade terrível por estar associada a um confronto nuclear no hemisfério norte. Como está indicado no próprio livro, numa espécie de sub-título, neste universo a Guerra Fria “aqueceu”. (Mais) 

Essa descrição, por si só, é promissora, porque permitiria explorar toda uma série de dimensões e desenvolvimentos. O autor, porém, resolve apresentar antes uma economia inteligente da narrativa de uma cinquentena de páginas. À parte uma breve introdução de seis pranchas, que age como uma camada explicativa, exposição temática, e ponto de partida, seguiremos tão-somente o protagonista sem nome por aquelas terras, como indicado por uma das personagens da introdução, ermas. O título pretende que todos os significados dessa palavra tenham aqui poder: a ideia de isolamento, de um suposto centro; a de despovoado, reduzindo as pessoas com quem nos cruzamos a figuras ou cifras de tribos selvagens; e até mesmo de despojado de vida vegetal, sublinhando a ideia de apocalipse a toda a extensão. Não quer isto dizer que o autor não tenha, como o faz no seu site, aliás, várias ramificações diegéticas a partir deste universo.


A vida, se continua, regressa ou torna-se particularmente transformada num violento jogo de sobrevivência, tão típica destas narrativas (Mad Max está lá, e todos os seus derivados). A captura e venda de pessoas enquanto escravos, a economia reduzida aos mais indignos dos papéis e à circulação de produtos-chave (minas, café, algodão). O autor evita a utilização aberta de referências reais à história e, assim, a uma associação directa com a história real do colonialismo português, a subsequente guerra colonial e as alianças e rivalidades matizadas entre todas as populações e classes sociais envolvidas. Nem todas, claro, uma vez que as palavras de origem não-portuguesa parecem ser todas oriundas do bantu, emprega-se de forma liberal o termo pejorativo (e política e etnicamente carregado de “turra”), associando-se ainda mais à história colonial portuguesa, assim como as fardas, equipamento, etc., remete a esse episódio da nossa história.


Por um lado, poder-se-ia ver aí uma estratégia de de-historicização. Isso ainda se torna mais dramático se regressarmos ao sub-título, que daria a entender que a “Guerra Fria” o foi assim mesmo, como se os conflitos na Coreia, em Angola, no Vietname, no Líbano, etc. não tivessem sido “quentes” o suficiente para as suas populações. Essa estratégia, aliás, estende-se inclusive pela criação de grupúsculos – todos aqueles que entram em conflito entre si – que atravessam as fronteiras da cor de pele. Portanto, Miguel Santos estará menos interessado em tematizar o papel responsável na história de Portugal nestes conflitos do que na construção de uma ficção livre baseando-se nesta herança, ainda tão pouco explorada pela cultura da banda desenhada (se bem que existam alguns exemplos, claro, como o recente Vampiros). Mesmo assim, permitirá, seguramente, a que se pense o papel desse conflito real num certo imaginário “popular”.


Por outro, é precisamente por essa opção de ficcionalização quase absoluta que interessará, acima de tudo, o que a premissa permite explorar. Santos cria então imagens icónicas dessas personagens-tipo através de pequenos apontamentos do seu desenvolvimento: penteados específicos, o uso de caveiras a decorar tanques, a ideia de tribos de crianças soldados, e um “tesouro” que se torna a missão do soldado sem-nome, depois apelidado de “Judas”, aumentando a posição quase-alegórica da narrativa. Aliás, nessa linha, Ermal vem alinhar-se a toda uma série de narrativas deste tipo em que o “strong silent type” faz do grande herói masculino da acção que se segue, mesmo quando nos apercebemos que o seu papel é mais instrumental do que totalmente integrado (isto é, que ganha ele com a acção cumprida?). Mesmo aqueles pormenores algo estrambólicos – como quando o protagonista é crucificado mas mantém os seus óculos escuros postos – são apenas códigos que validam essa natureza do género.

Toda a acção está concentrada somente nessa tal província, então, e na missão central, a qual, depois de desvendada, se torna algo mais fraca do que a sua putativa promessa (daí a razão de ser menos efectivo que um “MacGuffin”). Todavia, é novamente essa economia que se mostra a eficiência de Ermal. Apresentado num formato oblongo, sublinha-se, como em outros projectos similares, a ideia de “viagem”, ou pelo menos de “percurso”. Alinhando-se, dessa forma, a estruturas clássicas como as da “viagem” de O coração das trevas, de Conrad. Menos pela sua dimensão colonial do que pelo confronto do protagonista em descobrir um mundo para além de linhas morais claras e onde todos aqueles que chafurdam num conflito não saírem dele sem mácula.  



Do catálogo algo errático da Escorpião Azul, no que diz respeito quanto ao equilíbrio interno estético de cada projecto, é curioso que aqueles que mais felicidade parecem atingir são os que, em termos imagéticos, trabalham no interior de uma elegância simples e desempoeirada e, já no que concerne a narrativa, preferem ser mais concentrados, deixando sobretudo ao ambiente e à força das personagens e conceitos a responsabilidade de chegarem aos seus portos. O registo de Miguel Santos não é totalmente coeso em termos figurativos, havendo imagens que serão baseadas claramente em referências fotográficas – Tina, por exemplo, parece ser baseada numa das muitas líderes femininas do movimento Black Panther, algumas das imagens da introdução poderão ser correspondências a referências fotográficas, etc. – ao passo que outras são variações mais vacilantes do seu traço. Mas as opções de composição são perfeitamente adequadas ao storytelling pretendido, criando suficientes mecanismos de empolgamento, suspense e acção que tornam toda a estrutura num corpo coerente nessa dimensão (veja-se a prancha 11, perfeitamente conseguida neste registo). O autor também prefere fundos das vinhetas regularmente vazios, com uma ou duas cores basilares (o preto-e-branco e a segunda cor da versão online parecia-nos mais contudente), de novo reforçando a ideia da economia, e eficiência, a que temos aventado repetidamente.   
Nota final: agradecimentos ao editor, pela oferta do volume.

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