25 de março de 2018

Nonnonba. Shigeru Mizuki (Devir)

Uma vez que havíamos escrito um longo texto sobre esta obra quando de uma sua edição em francês, há uma década, remetemos a esse texto para a análise das suas conquistas temáticas, formais, parte do contexto de produção e a sua desenvoltura diegética e simbólica. É, portanto, um momento feliz ao termos acesso, no nosso idioma, a uma das obras mais amadas de um grande público japonês, e uma das obras que mais contribuiria (e no seio da própria obra do autor) para a divulgação popular das figuras fantásticas folclóricas daquele país, conhecidas como yokai, e que hoje têm uma circulação mais comum pela cultura popular. (Mais) 
Criado em 1977, já depois de Mizuki ter consolidado o seu nome na indústria da mangá infanto-juvenil de grande distribuição, e fazendo aliar a ideia de aventura às especificidades culturais do seu país, Nonnonba recuperava não apenas o seu interesse pelas histórias de yokai, como a sua experiência autobiográfica. O substrato do volume, dividido numa série de pequenos episódios (quase literalmente seguindo a estrutura narrativa-comercial do “monstro da semana”, mas na verdade apenas estruturando uma história maior em capítulos), bebe das narrativas que lhe haviam sido contadas na infância por uma figura feminina que ganha corpo no livro na idosa Nonnonba. O facto de maior surpresa, a nosso ver, está no modo como o autor começa a ponderar e a gerir a integração da sua própria vivência autobiográfica, criando um tecido coeso e fortíssimo entre a descoberta da sua nova vida na aldeia, as criaturas fabulosas mas o seu próprio desenvolvimento emocional.
É curioso entender como é que o autor vogava águas tão distintas como estas histórias mais aptas a um público geral ou jovem, e outras que parecem exigir um outro tipo de entrega e maturidade, como (recorrendo às suas recentes traduções em língua inglesa) Onward Towards Our Noble Deaths, de 1977, ou a sua magnum opus, Showa, do final dos anos 1980. E, ao mesmo tempo, compreender como essa dicotomia, como todas, é falsa. Afinal de contas, a grande qualidade de Mizuki é precisamente conseguir insuflar o humor mais adolescente e comovente nos episódios mais sofridos que representa, como a de sublinhar a gravidade e seriedade dos eventos aparentemente mais inócuos. Como se demonstrasse dessa maneira como a vida é vivida em todos os seus passos. A lógica da relação com as criaturas e fantasmas, ainda que tenha a sua dimensão de terror, tem menos a ver com a "colecção" ou "caça" (à la Pokémon ou Yo-kai Watch) do que a de uma espécie de compreensão mútua. 

Segundo volume da colecção Tsuru da Devir, esta é com efeito uma importantíssima contribuição para a oferta de uma banda desenhada global e artisticamente significativa, que vai para além de uma mera lógica de sucesso ou imediaticidade comercial. Mas fica agora, porém, o desejo de que vejamos a Devir a apostar numa série como Kitaro?
Nota final: agradecimentos à editora pela oferta do volume.

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