18 de agosto de 2017

Monstress. Marjorie Liu e Sana Takeda (Saída de Emergência)

Monstress é uma bateria ou amálgama de géneros que, não tendo, possivelmente, um elemento propriamente original, produz uma combinação equilibrada e curiosa. Steampunk, fantasia épica e negra, histórias de monstros, Bildungsroman, ficção científica, ficção feminista, são os tijolos que montam a sua estrutura, sendo a argamassa uma pesquisa sobre a individualidade perante a cruel e abjecta injustiça da escravatura e do racismo provocadas pela guerra. Mas ao mesmo tempo espraia-se uma história centrada na senda de uma protagonista em torno de respostas sobre a sua família, que poderá ter consequências para o seu mundo em geral. (Mais)

O título remete para uma dimensão feminina da monstruosidade, revelando desde logo que se trata de um mundo que, apesar de poder enveredar por géneros consabidos da cultura popular, fá-lo-á no interior de uma maneira que será mais impactante para as mulheres no que diz respeito à sua representação, número, presença e, mais importante, agência. Isto não significa que não seja acessível ou legível por leitores masculinos (fiquemo-nos pelo binarismo), claro, mas tão-somente que providencia figuras identificáveis ao público feminino. Não deixa de ser desequilibrado que histórias com protagonistas masculinos, quando se trata de géneros de acção, ficção científica, fantasia, sejam vistos como “universais”, e que aqueles protagonizados por figuras femininas seja entendido como “de interesse particular”, mas compreende-se a estratégia, se se acreditar nas questões de identificação, ou pelo menos, da criação de modelos sociais. Monstress, portanto, pertencerá a esse grupo de textos que, a mal ou a bem (isto é, da total responsabilidade da sua força intrínseca estética e política), que pode cumprir esse papel de ofertar um modelo feminino de acção.

Maika Halfwolf não é humana, mas uma arcânica, um ser de aspecto humano e possuindo características extraordinárias. Por pertencer a essa espécie, a sua sorte é a de ser escravizada e estar exposta a toda uma série de infortúnios, devido à estratificação social deste mundo, o qual, se difere do nosso em muitos aspectos, noutros tematiza a violência e racismo que nasce de distribuições distintas de poder. Sendo a protagonista e, como veremos, no interior de uma visão maniqueísta, ela não é apresentada como uma personagem perfeita e sempre correcta, mas antes mostrada nas suas fragilidades idiossincráticas.

Marjorie Liu parece ter um foco muito particular de personagens, seja a X-23 da Marvel ou as das suas novelas: mulheres jovens guerreiras com aptidões extraordinárias, e cujos feitos de acção as tornam “personagens feminas fortes”. O cinismo das “vilãs” e o “idealismo” das heroínas torna toda a estrutura relacional de Monstress algo expectável e convencional, que afinal parte de um maniqueísmo quase simplista entre as duas “partes”: por um lado, as criaturas fantásticas de Arcânia, que seriam vistas como “naturais”, “genuínas”, em harmonia com o mundo, etc., e as Cumea, uma sociedade matriarcal de feiticeiras que está interessada em questões de poder dominador e pureza. Não será preciso grande esforço para, ao fim de umas quantas páginas, estarmos do lado dos oprimidos face aos opressores, dos bons versus os maus. Tratando-se de uma novela para leitores mais jovens (adolescentes, já que os temas, episódios de violência extrema e linguagem colocam a fasquia fora do alcance de um público infantil), joga-se com expectativas de fantasias simplificadas, e nem sempre as personagens emergem, pelo menos no primeiro volume, como completas ou redondas (o que pode ser propositado, em termos de crescendo narrativo).

Dito isto, Marjorie Liu aposta substancialmente na interacção entre as personagens, através dos diálogos, para lançar as teias que sustentam o mundo ficcional a que diz respeito. Nesse sentido, há algo de muito orgânico na maneira como se avança na história, coincidente, claro, com o próprio movimento da protagonista na sua senda. Monstress é aquilo que se chamaria um slow burner, exigindo uma leitura de longo hausto e dedicação para recolher os seus frutos prometidos, tanto ao nível do desenvolvimento das personagens como de progressão das acções e compreensão do mundo ficcional (nesse sentido, e incorrendo numa dicotomia insustentável e até tola, diríamos que estaria em consonância com uma divisão clássica de textos para leitores adolescentes do sexo masculino e feminino, opondo “acção e progressão” a “desenvolvimento emocional”).

A arte de Sana Takeda emerge, no que diz respeito à figuração, claramente da mangá contemporânea, sobretudo da shonen, com o seu intuito de acção de alta octanagem, se bem que com alguns apontamentos advindos antes da shoju mangá, dada a delicadeza da maior parte das personagens, usualmente belas e jovens como adolescentes idealizados. E, claro, as personagens que servem de elementos “kawaii”, mas sem as hipérboles visuais mais tipificadas da mangá comercial. No entanto, estamos a falar de banda desenhada norte-americana, notável sobretudo ao nível da composição de página, mais utilitário do que qualquer outra coisa, e da cor. Esta última nem sempre contribui para a legibilidade das imagens. Inscrevendo-se nestas novas matizações proporcionadas pelas ferramentas digitais, as cores seguem aquela paleta da Marvel e da DC a que alguém chamou de “oleosas” e “escuras”, e realmente, mesmo em cenas diurnas, há algo de glauco que atravessa todos os planos. As cores não coincidem com a linha, antes existindo manchas difusas de verdes e azuis que vão atravessando os objectos, criando um efeito de luz bastante curioso, mas não particularmente feliz. Os grandes planos gerais e de conjunto são aqueles que sofrem mais, pois outra das assinaturas de Takeda é a pormenorização intrincada que lavra nas suas páginas, em malhas apertadas de maquinarias e texturas e padrões, que recordará Kentaro Miura, até certo ponto, pois Takeda não atinge o mesmo nível de suavidade. Quando as cores são mais controladas (como é o caso das capas), surgem imagens icónicas impactantes, que nascem do sentido de design e de inventabilidade da artista, mas no decurso da história, na sua arregimentação para a leitura, nem sempre há a fluidez necessária.

Nova oferta, ao lado de Nimona, da Saída de Emergência no campo da banda desenhada em Portugal, esta é uma adição bem-vinda na diversidade da oferta, quer no que diz respeito aos géneros quer no que diz respeito ao tipo de público.

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do volume.

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