3 de junho de 2017

Lugar maldito. André Oliveira e João Sequeira (Polvo)

Existem toda uma série de fenómenos, ditos “entópticos”, em que parecemos ver algo pelo canto do olho mas, ao virarmo-nos, não vemos nada: serão apenas impressões que não compreendemos, serão sombras que não mapeamos, ou serão fantasmas que habitam os nossos espaços e nos rodeiam? Independentemente do território que a ciência pode iluminar, a impressão duradoura dessas mesmas sombras é quase indelével no tecido da cultura. Não cremos em bruxas, mas que as há... Lugar Maldito é um livro que revela a mais profunda verdade, e corrige aquela frase conhecida (ainda que mal citada) de Jean-Paul Sartre: não, o Inferno não são os outros. Somos nós. (Mais) 

Depois de Tormenta, fruto da colaboração dos mesmos autores, Lugar Maldito mantém o curso de algumas das pesquisas e preocupações do argumentista e do artista. Do lado de André Oliveira, as interrogações sobre os limites da felicidade, a noção do regresso, o preço que se paga em nome de uma suposta maturidade, a entrada na vida adulta, a conquista de uma família nova, estão todas presentes, e aqui particularmente à flor da pele. Acrescenta a isto um interesse, que é partilhado por um número de outros argumentistas de banda desenhada contemporânea em Portugal, de prestar uma atenção precisa à nossa cultura rural, a tradições mais ou menos desavindas da experiência urbana, e à ausência de romantismo em decisões, aparentemente, heróicas.

É assim que vemos Samuel e Maria, um jovem casal mergulhado numa crise que nunca chega a ser explicitada – tornando-os numa espécie de Romeu e Julieta, mas sem a poeticidade do casal italiano, e somente amargurados pela impossibilidade de consolo –, a mergulharem numa fuga e num terror crescendo de isolação, nas encostas do Douro, a meados dos anos 1990. Ele é mais velho, com alguma experiência profissional, mas está mergulhado numa sombra negra muito própria, cheia de arrependimentos, hesitações, ódios e coisas mal-resolvidas. A forma como ele responde às coisas em torno é abrupta, como um animal acossado, revelando nesses gestos toda uma história pesada que o assombra, persegue e esmaga. Ele tem fantasmas nos bolsos e não se apercebe.

Talvez Samuel acreditasse que Maria, e o bebé que tiveram juntos, fossem factores suficientes de conquista de uma vida mais feliz, mas acabam por se tornar os escolhos da sua descida. Neste aspecto, há um paradoxo emocional que o aproxima de Jack Torrance, o protagonista de The Shining. Maria, por sua vez, ainda é uma miúda, deixa-se arrastar, oscila ao sabor dos ventos dos conselhos que escuta, mas acaba por saber qual a importância central na sua vida, e que a ancorará à pouca sanidade que lhe é possível. Ambos estão num novelo embrulhado de sagas familiares, rivalidades e casos de polícia. A “fuga para o Egipto” de ambos, todavia, não auspicia nada de glorioso, mas somente uma descida a zonas sombrias.

Aumentando o grau de possibilidade de conhecermos as psiques destas personagens, vamos tendo acesso a um diário, muito possivelmente escrito por Samuel, cheio de impressões pouco claras, ilusões, poemas tardo-adolescentes, em que se poderia desejar que se exorcizassem os seus fantasmas, mas acabam antes por se conformar no proverbial abismo que nos olha de volta quando o olhamos.

André Oliveira, mais uma vez, como em A Volta e Milagreiro, introduz a esfera da fantasia, ou melhor dizendo, se naqueles livros explora o maravilhoso e os contactos directos entre a superfície da realidade humana e outros mundos e experiências sobrenaturais, aqui apenas estipula um espaço de ambivalência suficiente que serve de armadilha aos protagonistas. Se o leitor poderá decidir que existem forças exteriores ao casal exercendo a tensão crescente, também deverá ser atento ao facto de que é Samuel quem se entrega de corpo e alma à espiral descendente e trágica que o encerra. Apesar do “rapaz de carvão” - a figura mítica central na economia dos eventos do livro, quer os do presente quer os do passado, quer aqueles relativos ao casal quer às restantes personagens, quer consequência de crime ou causa deles, quer fonte de augúrio quer de esperança -, o crime e sentença não se deve a mais ninguém senão ao próprio Samuel.

Graças a esta matéria, ou de forma a consubstanciar esta matéria, João Sequeira procura sublinhar ainda mais a sua proficiência com o pincel negro: os contrastes são absolutos, a exploração das sombras, negativos, texturas rugosas e brutas acentuadas, aumentando o peso das emoções que crescem. Sequeira mantém o rumo de uma abordagem à figura algo expressiva e estocástica, mas encontram-se aqui instrumentos de um maior rigor na manutenção das formas, e cujos desvios são sempre significativos.

O trabalho de composição é contido, a partir de um princípio de grelhas regulares que vai permitindo excepções, splash pages e spreads, sempre empregues com pertinência, na maior precisão em termos da intriga ou do impacto emocional desejado. Tormenta também obedecia a este princípio, mas aqui encontra uma maior proficiência e controlo nessa gestão, além de que, com quase 100 pranchas, ganha uma outra corporalidade e permanência.

Viagem ao fim da noite ou ao coração das trevas, o Lugar Maldito está afinal nos nossos peitos, e é por vezes inevitável dar um passo em falso.
Nota final: agradecimentos aos autores, pela oferta do livro.  

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