30 de abril de 2017

RIP. François Henninger (auto-edição)

A presença da colagem como um dos possíveis instrumentos da banda desenhada não é de forma alguma uma novidade. Num artigo presentemente no prelo, num livro colectivo dedicado à abstração em banda desenhada, regressámos ao livro 978 de Pascal Matthey e à obra de diceindustries para tentar compreender não apenas esta “tendência” como também quais os contornos precisos da técnica e as suas potencialidades expressivas, políticas e de representação. Se podemos falar de Jack Kirby num campo estrito da banda desenhada, também poderíamos arrolar Max Ernst, Jess e Cátia Serrão em práticas mais expandidas e contaminadas da banda desenhada ou nas suas margens confundidas com as artes visuais. O alcance deste pequeno zine de François Henninger – com que nos havíamos cruzado em algumas publicações alternativas, e de quem lêramos Lutte des corps et chutes de classes – leva muitas das revisitações do material mortificado pela tesoura a atingir paroxismos maximais, que poderão devolver alguma urgência à banda desenhada que serviu de “matéria-prima”. (Mais) 

Como se depreende pelo título e a imagem da capa, RIP baseia todo o seu material nas tiras de Rip Kirby, um clássico do policial de Alex Raymond da década de 1940. cada página do zine apresenta o equivalente a um conjunto de cinco tiras, re-dispostas como se se tratasse de uma antologia ou livro de bolso, tal como existiram de facto, tornando possível a recirculação das tiras depois da sua original publicação nos jornais. Porém, logo de imediato, uma leitura/visionamento atento da primeira página, da primeira tira, mesmo da primeiríssima vinheta (veja-se a imagem), demonstrará que o autor procedeu a uma operação em que misturou, talvez, duas tiras numa só. Os corpos encontram-se “interrompidos” com outros, os balões entrosam-se entre si. Ainda assim, é possível uma espécie de leitura vestigial, na qual o esforço de “corrigir” os erros e sobreposições nos leva a um sentido, tal como ocorria (se bem que de uma forma “mais fácil”) em “Malpractice Suite”, de Art Spiegelman.

Mas à medida que viramos as páginas, vamos compreendendo que não estamos tanto a avançar na leitura e a abandonar as tiras anteriores como a revisitar sempre a mesma página construída, mas que a cada iteração sofre mais uma adição, mais uma camada de colagens. Há mesmo “ruídos” que vão surgindo, desde as “sombras” de linhas da fotocopiadora, a anotações (números) feitas nas margens pelo autor, já para não falar dos processos que vão distorcendo as imagens. Estas executam bailados que seriam possíveis de tipologizar de acordo com alguns princípios, tal como ocorria na sequência (pseudo-)narrativa de 978. Mesmo a tentativa de as descrever acaba por sublinhar a dificuldade em separar a questão da temporalidade da leitura/sequência, da pesquisa formal do objecto tangível (mesmo que “imaginado”) ou a sua presença física na prancha. Há portanto fragmentos, passagens, momentos, vinhetas em que Henninger parece querer explorar distorções dos padrões fornecidos pelas roupas e tecidos, há outros trechos em que se cristalizam e atomizam rostos, exploram-se movimentos, padrões, dissoluções de textos e corpos, impedindo o avanço “natural” da história, mas convidando a uma confusão matérica que nos remete aos princípios basilares da comutação temática da própria banda desenhada original. De resto, algo que Stefano Tamburini havia feito com Snake Agent ou Ilan Manouach com os seus détournements.

Jacques Rancière, em O espectador emancipado, descreve a técnica da colagem como “o choque, numa mesma superfície, de elementos heterogéneos, se não mesmo conflituais. No tempo do surrealismo, este procedimento serviu para manifestar, numa época dominada pelo prosaísmo do quotidiano burguês, a realidade reprimida do desejo e do sonho”. Ora, se se eleger a série de Raymond como precisamente parte do discurso da normalização e construção societal do pós-guerra norte-americano, e um standard da banda desenhada do seu tempo, isto é, do “prosaísmo do quotidiano burguês” - mesmo que se admirem as inovações diegéticas e temáticas de Kirby, ou a proficuidade de Raymond – podemos ver neste exercício de Henninger uma espécie de dissecação ou autópsia (tal qual conceptual ainda que não física e materialmente como Un cadeau) do que se oculta, no domínio do desejo e do sonho. No cadinho dessa interpretação, a releitura não-linear das páginas, mas optando por exemplo pela técnica do flip-book, revelará travessias de sexo entre personagens, talvez libertando potencialidades recaldadas. O desaparecimento de uma cena interior numa dissolução de planos poderá dar conta de um desejo de fuga absoluto das responsabilidades diárias. A atomização dos fatos e tecidos representaria a acumulação capitalista de bens. O surgimento momentâneo de um homem violento, de faca na boca, numa cena aparentemente doméstica de um diálogo entre Rip e Desmond, e depois do busto quase desnudo de uma mulher fará imaginar as tensões clássicas entre Eros e Thanatos sobre o verniz da convivência social...

A colagem convida a contextos confundidos, à quebra das ilusões narrativas e de representação, a um questionamento dos fundos e das formas. RIP é um bom exercício formal nesse sentido.

Nota final: agradecimentos a Benoît Crucifix, pela oferta da publicação.  

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