4 de dezembro de 2016

Les équinoxes. Cyril Pedrosa (Dupuis)

Há um fôlego na banda desenhada francófona contemporânea que parece alimentar o desejo de toda uma série de autores em construírem narrativas longas, densas e que procurem ocupar um nicho a que se poderia dar o nome de “o grande romance gráfico contemporâneo”. Até mesmo em termos de formato vemos apostas em volumes maçudos, de capa cartonada, com pormenores de valores de produção, alimentando materialmente o ensejo interior. Há casos de adaptações literárias, autobiografias ou reportagens ou relatos implicados, mas sobretudo projectos de ficção, como é o caso deste novo livro, do autor de Portugal. Se essa outra prestação nos parecia ter sido algo adocicada no seu tratamento do “outro” (que, no caso, corresponderia a um “nós”), o novo trabalho de Pedrosa procura um foco atomizado, mas com isso procura capturar uma experiência mais alargada de vida. (Mais)

Como havíamos dito na nossa introdução ao livro de Aimée De Jongh, não podemos deixar de perder de vista que estes volumes surgem num panorama com um substrato importante histórico. Há quem acredite que não é necessário pensar a história na consideração, ou até mesmo a criação, de novos gestos, mas isso revelar-se-ia uma falácia de abordagem crítica, impedindo uma valorização ou uma contextualização, mesmo que isso leve a relativizar as supostas “conquistas” ou “inovações” das obras contemporâneas. Com efeito, apesar de toda a sofisticação de Cyril Pedrosa, neste livro, que é mais grave do que Três Sombras e Portugal, não estamos perante intensidades do calibre de um Forest, um Davodeau, um Larcenet, um David B., uma Dominique Goblet, para citar alguns dos nomes que nos parecem os mais vincados numa certa qualidade de escrita da emoção humana na banda desenhada de expressão francesa dos últimos trinta anos. Todavia, isso não serve para minorar o valor de Les équinoxes, mas antes para o colocar numa senda à qual é nitidamente devedora, mesmo que os seus elementos materiais ou temáticos não o espelhem de forma directa ou explícita.

Este é um livro que se pode chamar de “polifónico” de uma maneira claríssima, até fácil. Com efeito, Les équinoxes não segue apenas uma perspectiva, fosse ela associada a uma só personagem, criando uma visão subjectiva do seu mundo diegético, ou de um narrador externo, criando a ilusão de um controle absoluto. A trama é atomizada em várias linhas de perseguição, não apenas de personagens, cujos graus de cruzamento são variados (permitindo comparações com obras tais como Tungstênio, de Quintanilha, por exemplo, ou até Vive le marée!, de Prudhomme e Rabaté, ambos lidos anteriormente), mas igualmente de tempos – não apenas se estendendo durante um ano, mas procurando um diálogo entre eras - e níveis existenciais, se bem que debuxando uma unidade espácio-tópica coesa: quer dizer, é como se estivéssemos a compreender algo que se passa num mesmo lugar (mesmo que o não seja, torna-se isso por efeito de um cerzir das várias histórias)

O livro encontra-se sub-dividido em várias linhas, como dizíamos, de forma explícita. Em primeiro lugar, existem quatro capítulos, titulados, com página própria, pelas estações do ano, iniciando-se no Outono. Cada um dos capítulos é iniciado com pequenas sequências, de páginas generosamente marginadas a branco, com duas vinhetas flutuantes, seguindo a vida de um pequeno rapazinho selvagem, que mais tarde nos aperceberemos de ser um jovem da pré-história da zona que atravessamos durante o resto do livro. Depois introduz-se cada capítulo, que terá sub-campos próprios, aos quais voltaremos. Esses capítulos seguem, modo geral, formas de abordagem do desenho e sua coloração particulares, de forma a transmitir sensações e impressões tipificadas de cada uma das estações. O outono revela bem o uso de papel texturado e espesso, onde são lançadas as linhas finas negras dos objectos representados, complementados com lavagens de aguarela, usualmente de cores variadas mas suaves, com apontamentos de outros materiais para sublinhar texturas, brilhos ou pequenos efeitos de luz. No inverno são os lápis, parece-nos, com apontamentos de pastel, de cores sóbrias, que vão compondo as figuras e ambientes. Na primavera os mesmos instrumentos estão presentes, mas numa abordagem em que as cores ganham maior vivacidade, e as linhas maiores transparências, permitindo jogos de sobreposição e leveza não-naturais mas aéreos (como se notará na capa). Finalmente o verão (trocadilho propositado) apresenta as figuras talhadas a linhas angulosas, a pinceladas vigorosas, com cores planas, poucas e contrastantes, mas em várias paletas, também não-naturais, de forma a traduzir uma luminosidade quase esgotante e pesada.

Escusado será dizer que cada momento explora formas e abordagens distintas dentro destas descrições por estratégias gerais, e há quase como que, a determinado momento, um prazer que nasce da expectativa de virar a página, uma vez que se poderá revelar uma nova forma, um novo esquema, que procura dar conta de modos diferentes de aproveitar a luz, a proximidade entre as personagens, o ambiente e a luz, etc. Há também “ciclos internos” que nascem das necessidades narrativas, como os momentos em que uma fotógrafa, Camille, que jamais assume um protagonismo assumido nos “seus” momentos, capta a imagem de uma pessoa na rua com a sua Rolleiflex: na página desse mesmo acto, surge a fotografia captada, a preto-e-branco e, nas páginas imediatamente a seguir, segue-se uma espécie de distorção dessa imagem, quase sempre de um rosto, ao ponto da abstracção ou simbolização. É como se penetrássemos no olhar da pessoa fotografada para lhe chegar ao íntimo – talvez verdadeiro, talvez imaginado, mas por quem? Pois também se seguem páginas preenchidas somente de texto o qual parece revelar a vida dessas pessoas fotografadas (há pistas textuais suficientemente claras para compreender isso). Não é claro, porém, quem narra esse texto: o narrador geral de Les équinoxes (que nunca surge sob a forma de legendas, mas está na pele do meganarrador da banda desenhada), a fotógrafa imaginando as vidas de quem captura, um terceiro, o próprio fotografado?

Estas descrições formais parece excessivas, talvez, mas em grande parte são elas quem contribui de forma decisiva para o acto narrativo destas personagens. Quer dizer, não tem de forma alguma apenas uma função decorativa (um risco que ocorre em alguns autores contemporâneos, como Brecht Evens), mas tornam visíveis, traduzindo, alguns dos tumultos e relações emotivas das personagens. Estas são todo um pequeno exército, e descrevê-los seria repetir o acto de leitura. Há mais ou menos núcleos organizados por “família”, que como que nascem em personagens secundárias que gravitam em torno das principais mas que por isso mesmo se tornam o sujeito das “lições”, digamos assim, mesmo que estas não lhes sejam dirigidas directamente. Como a de Pauline, a adolescente prestes a entrar na vida série da idade adulta, filha de Vincent, ortodontista, irmão de Damien, padre de visita à “terra” recuperando memória da adolescência com Vincent para ambos se aperceberm do tempo que passou e das opções tomadas nas suas vidas respectivas. Há também o caminho de Antoine, um jovem idealista que faz companhia ao velho Louis, antigo activista comunista, e que parece ter sido professor ou companheiro de luta e amigo de Catherine, agora secretária responsável por assuntos ecológicos e territoriais, tendo como dossier uma obra que poderá colocar em risco toda uma paisagem, que todas estas personagens atravessam. Até mesmo o tal jovem pré-histórico, aliás, criando as condições da decisão final nesse assunto, atravessando milénios o seu gesto incauto.

É possível que Pedrosa queira com este livro tecer uma daquelas lições redutíveis a um brevíssimo princípio explícito, como “todos influenciamos todos”, ou “cada gesto tem o seu peso”, ou “vivemos em redes humanas”, ou resultados quejandos, muitas vezes roçando o moralismo. Mas o autor jamais o faz de forma bafienta como esta que fazemos nós, e é elegante a maneira como ergue esta narrativa com cada linha. Todas elas, ou melhor, cada uma delas, tomada por si em termos individuais, é tão frágil como toda a vida humana, mas é no seu conjunto que demonstrarão a sua força. Nisso, então, há uma dessas conquistas.

Nota final: agradecimentos a Sébastien Praderes, pelo acesso ao exemplar do Lycée Français Charles Lepierre. 

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