2 de novembro de 2016

Acédia. André Coelho (Chili Com Carne)

Livro curto, Acédia é o primeiro trabalho de longo fôlego a solo de André Coelho que se apresenta como uma narrativa coerente, e não colecção de desenhos ou improviso em torno de um tema. Novela concentrada, negra, lacónica, a escrita de Coelho espelha-se em todos os elementos que compõem a narrativa e é necessário ler a sua forma e superfície para libertar os seus significados. Tal qual o tema proposto, há uma realidade que nos é apresentada mas cujo desvendamento se associa à percepção do leitor e poderá mesmo ser intransmissível. (Mais) 

À guisa de sinopse, poder-se-ia dizer que este é um livro que segue a vida de um jovem homem, Daniel, nos primeiros momentos em que um aparente tumor na cabeça o leva a ter alucinações ou distorções de percepção que vem agravar o seu estado de espírito, abalado por outros acontecimentos da sua vida. A história é enquadrada por três tentativas de contacto pelos seus médicos, e que permitem cartografar fases ou atitudes de Daniel para com essa situação. Se bem que talvez fosse também possível ler essas cenas recorrentes como apenas uma, e estarmos perante uma narrativa cuja organização temporal não é linear, mas recursiva. Essa decisão alteraria a consideração dos elementos, mas mantermo-nos-emos numa leitura conservadora.

A questão da distorção da realidade através de uma hipotética doença física é, naturalmente, uma das grandes heranças dicksianas (de Philip L. Dick) de Acédia, pensando sobretudo na trilogia Valis, se bem que o universo do livro do Coelho atém-se a um quadro de referências quase trivial e imediato da nossa própria experiência, muito aparentado, quiçá, à vida do próprio autor, já que o protagonista, Daniel, partilha toda uma série de semelhanças físicas com André Coelho. Talvez um exercício de auto-ficção, ou de pelo menos uma “veste de ficção”, como teorizara Grant Morrison, apenas ao autor isso dirá respeito, mas permitirá aos leitores uma possível interpretação crítica que alie esta ficção à realidade que nos pertence.

Uma vez que as cenas em que os diálogos surgem são muito limitadas, reduzindo as poucas falas quase ao estritamente necessário ou até a frases de circunstância, e os eventos mostrados podem ser rapidamente sumariados (a morte do cão, as consultas, a vida doméstica com a namorada, etc.), compreenderemos que o propósito da narrativa não é de forma alguma mostrar uma “vida cheia”, pelo menos de acontecimentos externos. Mas como o próprio título indica, recuperando uma das designações medievais da melancolia, aquilo que importa é compreender os tumultos internos de Daniel.

Nalguns traços de composição, acumulação de meios (através da colagem, Coelho procura fontes foto-, video-, radio- e/ou cinematográficas, a mixagem com fotocópia ou algo que com isso se aparenta), este trabalho recordará algumas experiências do final dos anos 1980, em que autores tão díspares como Bill Sienkiewicz, Barron Storey e Jon J. Muth traziam para a banda desenhada um grau de textura ríspida, disruptiva num fluxo, de resto, relativamente controlado, pelo menos em termos narrativos (muito distinto, portanto, da bumpiness intrínseca e própria da expressividade de uma Lynda Barry, por exemplo). A forma como o autor faz oscilar as páginas entre spreads que respiram, ou diagramações ora simples ora muito complexas, cumulativas e com linhas oblíquas leva a ritmos frenéticos e cambiantes entre cada momento. O livro é claramente pensado em unidades de duas páginas cada, os spreads, e que vão trazendo intensidades diferentes de ritmo, velocidade e da perda de Daniel no seu mundo interno.

A acédia – etimologicamente derivado do grego antigo para “negligência” e para dar conta de “aborrecimento” ou, com sentido moral, a “preguiça” - era vista por S. Tomás de Aquino como um pecado particularmente grave, uma vez que era como um fechamento do espírito, o qual impediria à alma o contacto com o divino. Este seria, por sua vez, um conceito-chave para Walter Benjamin e para a sua visão filosófica da história, que se relacionava por sua vez com outras linhas de desenvolvimento, como a da memória involuntária de Proust, por exemplo, e que levaria à noção seguinte, algo redutora da nossa parte: é uma espécie de desespero, a um só tempo empático e melancólico, e que pode levar à apatia, de tentar capturar uma imagem da história no preciso momento em que ela se dissolve, é a recuperação de uma imagem do passado e a sua colocação sobre a do presente, impedindo que este surja como o tempo em que nos moveríamos livremente, mas se torna imbuído, pesado, carregado com esse mesmo passado. A modernidade conheceria esta noção sobre outras formas e nomes, como spleen oitocentista, e que daria lugar à flânerie dos poetas.

Se não observamos Daniel a deambular pelas ruas da sua cidade, ainda assim não faltam sequências que podem ser lidas como derivas, até num sentido náutico. Depois do que parece ser o seu primeiro ataque de fotofobia, seguem-se várias cenas algo desconexas (a sua entrega a uma dominatrix, uma cena de um concerto, outros momentos oníricos) e que poderiam ser descritas como uma espécie de descida a um inferno muito particular. Inferno composto pelas tais sobreposições de imagens, umas participando da realidade tangível e outras da percepção distorcida, ou do sonho, umas do passado e outras do presente, etc. E essa descida tem mesmo contornos próximos da ideia de Inferno.

O cão é visto por algumas culturas como uma criatura psicopompa por excelência, e é esse papel aquele que vemos claramente no fecho desta história, com o cão (morto?, visionado, regressado?) ofertando uma chave a Daniel. E aqui ocorre um fenómeno curioso. A chave não poderia ser um símbolo mais óbvio e claro dos enigmas que vão sendo apresentados ao longo destas páginas. É como dizer que um triângulo é um símbolo místico. É demasiado patente para ser tornar significativo de uma forma especial. Mas Coelho joga com essa obviedade de uma maneira em que nos deixa com a certeza absoluta de que Daniel tomou uma decisão e que o seu comportamento futuro, a sua acção, o libertou da acédia, afinal. Isso sabemo-lo. Não sabemos porém qual será o teor dessa acção, e tampouco o valor, positivo ou negativo, que teria da hipotética moralidade da história. Pois isso não é de todo importante. A chave que serviu para “abrir” a acção de Daniel é também aquela que funciona como “fecho” da narrativa a que temos acesso, ou até direito. O futuro – a resolução da imagem da História, para regressar a Benjamin – não é já da nossa conta.

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