16 de setembro de 2016

Ye. Guilherme Petreca (Veneta).

Este parece ser o maior livro do autor, terceiro a solo. Ye é um volume que quer abraçar de forma directa e concisa um género determinado, que englobará a fantasia, a aventura clássica (no sentido de movimento do herói), todo um percorrer por paisagens mais ou menos familiares por territórios consabidos da banda desenhada, a fábula antiga e, quem sabe, um entendimento contemporâneo de que não é sempre necessária a maior gravidade para conseguir tecer uma narrativa com um contorno de grande lição a um público mais jovem. Apesar da sua leveza, mesmo no sentido de Italo Calvino, no sentido em que opõe ao peso da vida a possibilidade de reflectir através de elementos oníricos e imaginativos, Ye é um livro que dispõe das suas estratégias expressivas da forma mais determinada e pensada possível. (Mais) 

Uma sinopse revelaria a linearidade da intriga, que é uma condição sine qua non da aventura. Apesar de começarmos, como desejam a epopeias, mesmo pequenas, in media res, acompanhamos o jovem mudo Ye (apenas diz a sílaba que perfaz o seu nome) na sua senda em busca de uma bruxa, Miranda, que vive na longínqua cidade de Esperanza. A razão dessa busca deve-se ao facto de o menino, de um vilarejo rural, ter sido “visitado” por pássaros de mau agoiro, representantes de um suposto “Rei sem cor”, que deixa a sua marca indelével nas suas vítimas. É essa viagem longa que faz a parte de leão do livro, com pequenos episódios divididos em partes que o fazem passar por piratas, um dos círculos polares, um circo, uma viagem de balão e, finalmente, como deseja a tipologia de J. Campbell, a “descida à barriga da baleia”, a sua “noite mais negra” em que, previsivelmente, Ye se defronta com os seus mais temíveis fantasmas internos.

A razão do interesse nesta história não está, todavia, nessa estrutura, que parte como uma célere e fixa seta, mas antes nos pormenores com que Petreca vai encastrando essa viagem. As personagens ricamente construídas com que Ye se cruza, a forma como o autor pensa a estabelece os espaços vários visitados, os diálogos que se encontram à volta de Ye (a sua participação é sempre limitada, mas constante e intensa) e os elementos que constroem este “mundo diegético” são de uma clareza e estímulo fortes. Mais surpreendente é ainda o facto acrescido de que Petreca trabalha a linha a perto-e-branco, recordando toda uma série de outros autores contemporâneos que une este trabalho plástico à temática, a de “desenhos negros para histórias claras” de um Tony Millionaire ou um Jeremy Bastian. Em muitos outros aspectos também, e não de somenos um certo imaginário popular, irmanará o autor brasileiro com a obra de banda desenhada e ilustração de Susa Monteiro.

Petreca oscila entre páginas barrocas, cheias de pormenores, objectos, marcas, num aturado trabalho cuja base parece ser o aparo, mas acompanhado de pincel, aguadas, talvez grafite e outras técnicas de manchas, e as pranchas quase despojadas, sobretudo nas partes “simbólicas” e “oníricas” que pautam a obra, usualmente ancorada na sua própria realidade.

A ancoragem, com efeito, não é feita de forma alguma em informações localizadas, nacionais, especificas, podendo ser algo que se passaria em qualquer parte do mundo, tirando partido das tais fórmulas clássicas e transversais. Mesmo as referências em espanhol, o galeão, a tenda de circo, as cartas de Tarot, etc., que é natural remeterem a quadros culturais específicos, parecem ser tratados antes numa sua dimensão mais universalista (ou pelo menos aquela forma com que circulam no mundo, o que não deixa, claro está, de ser sinal de um certo imperialismo mesmo no campo da imaginação), ambígua e transversal do que valendo pelo seu peso histórico. É nesse sentido que Ye se torna uma espécie de fábula ou conto folclórico hodierno.
Nota final: agradecimentos à editora pela oferta do livro.

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