1 de agosto de 2016

Sous le soleil de minuit. Juan Diáz Canales e Rubén Pellejero (Casterman)

Vivemos num momento em que a grande diferença entre a banda desenhada “franco-belga” ou “europeia” e a “norte-americana”, na suas ferramentas de produção, se têm diluído. É óbvio que essa diferença é falsa, porque essencialista e generalista, mas que servia para alimentar uma forma de entender a produção mundial de banda desenhada por blocos descontínuos e estanques. Olhávamos para personagens como o Homem-Aranha ou o Super-homem como passíveis de serem reutilizados por vários autores contratados pelas companhias de quem são propriedades, e confundíamos personagens como Tintin, Astérix e Lucky Luke com os seus autores. Porém, as novas realidades de produção comercial descobriram que a multiplicação de personagens nas mãos de novos autores, a sua possibilidade de transformação em cifras exploráveis em variações prismáticas tem uma valência muito grande, comercial, acima de tudo, mas igualmente de imaginário, já que grande parte dos leitores de “bedê” prefere a titilação contínua da nostalgia e da mesmidade do que serem confrontados com novos haustos. Seria necessário novamente entrar na análise de vários projectos para compreender a diferença entre eles (o Spirou de Bravo não é o de Yann e Schwartz não é o Lucky Luke de Bonhomme não é as personagens da MSP nas mãos de tantos autores não é o Blake & Mortimer dos vários convidados), mas poderíamos dizer que este Corto Maltese é idêntico à Brasa: parece que é mas não é. Pode conter cevada, chicória e centeio, mas apenas no ritual do leitor-consumidor é que se poderá imitar o mesmo efeito real do café. (Mais)
 A importância da personagem de Pratt não pode ser subestimada, naturalmente, mas ao mesmo tempo tampouco deve ser transformada numa espécie de bitola maximal e descontextualizada, ou pior ainda, sem uma integração na história desta disciplina. Desligar Pratt da sua aprendizagem com Caniff ou Oesterheld, por exemplo, é querer transformar Corto numa espécie de “bateria” de “primeiros” que não corresponderia de forma alguma à verdade histórica. E se o primeiro livro, mega-álbum de 1975 – pré-publicado como se impunha no mercado de então, na revista infanto-juvenil italiana Sgt. Kirk, no ano de 1967, passando a personagem a aparecer mais tarde em francês na Pif –, foi com efeito um marco de transformação na forma como se imaginava a banda desenhada, é preciso compreender que os trabalhos seguintes acabaram por tornar Corto mais domesticado e integrado nas fórmulas do género de aventuras. Ao mesmo tempo, querer isolar a “maturidade da banda desenhada” como surgindo com esta obra é esquecer toda a sua história diversa e matizada, e querer alimentar um mito tipificado da banda desenhada agregado numa concentração em autores singulares (e, para mais, naquela ideia feita de “autores completos”, seja isso o que for), personagens singulares mas reiteráveis e revisitáveis (como é o caso da obra presente, sublinhando a existência de uma hipotética “personalidade real” desvinculada do autor) e uma história lavrada mais por mundividências ciclópicas e nostálgicas que verdadeiramente ponderadas pela história. Seja como for, e não obstante a influência que exerceria sobre toda as gerações seguintes, quer numa aproximação ao “desenho caligráfico” quer na forma de criar redes intertextuais entre história e ficção, esoterismo e literatura, etc., Pratt fez menos “escola” (como no caso de Hergé ou Franquin) do que reforçar uma atitude autoral.

Mas a ideia de “mito” não é totalmente descabida, e deveria ser ela a informar a dificuldade que há em querer reaproveitar uma obra autoral desta natureza para lhe dar continuidade, ensejo puramente comercial. A verdade é que na história da literatura houve casos de continuidade ou variações de personagens pelas mãos que não dos seus autores originais (pense-se em Telémaco, no Quixote, em Robinson Crusoé). Não deixa de ser surpreendente, então, que uma obra com tal cunho individual, ainda para mais vincado de forma tão indelével na personagem (mais do que Tintin, Lucky Luke, Spirou, que são muitas vezes cifras esvaziadas prontas a receber versões diferenciadas), seja passível destas revisitações comercialmente procuradas. Os Escorpiões do Deserto já haviam atravessado o mesmo filtro, mas também não nos podemos esquecer que todos os anos a editora procura novas fórmulas de repackaging da série de Corto: formatos livrescos, novas colorizações, edições com dossiers informativos, capas novas, etc., etc., etc.

Existe, na verdade, toda uma controvérsia entre a sociedade que explora os direitos conexos da personagem, a Cong S.A., a administradora da mesma, Patrizia Zanotti, antiga colorista e última companheira de Pratt (confirmando um cliché quef ocorreu com Hergé, Moebius, Saramago e até J. L. Borges), os filhos de Pratt e a editora que tem explorado a venda e distribuição dos livros (e merchandising infindo), controvérsia que não podemos nem sustentar nem discutir por falta de instrumentos próprios, mas que gostaríamos de assinalar pois poderá explicitar parte da valência deste projecto. Por parte desse assunto remetemos ao excelente artigo de Jessie Bi no du9 e o seu conceito de “profacção”, que apenas pode ser sustentado pela existência da fome fanática (no sentido de fãs, mas talvez não só) dos leitores medianos de banda desenhada. Há uma espécie de “autoridade” ditada pelos leitores que “exigem” a continuidade das aventuras das suas personagens predilectas, mais do que procurarem novas formas de fruição ou diversidade de leitura.

Na parte que nos toca esse fascínio não existe, já que foi surgindo numa dieta que não nos permitia aproximar desta obra “matura” de uma forma equilibrada e, mais tarde, já se diluía num território bem alargado de valências possíveis. De resto, as mais das vezes Corto Maltese surgia-nos como exemplo de banda desenhada amada por quem não acompanhava banda desenhada para se tornar um contra-exemplo improdutivo.

Mas surge-nos então um livro com a personagem de Pratt pelas mãos dos autores espanhóis Juan Diáz Canales, autor famoso pela saga do detective Blacksad, e Rubén Pellejero, artista de toda uma série de projectos mais ou menos conseguidos, sobretudo em colaboração com Jorge Zentner e um western nada displiciendo, Loup de pluie, com Jean Dufaux, visualmente talvez o seu livro mais conseguido. É igualmente conhecida a história do projecto abortado de Joann Sfar e Christophe Blain em recuperar Corto para novas aventuras, mas passando por um filtro autoral novo e vincado, o que seria um serviço maior à filosofia (mesmo assim, subsumindo-se à cultura “bedê”) original do que esta recuperação de continuidade. Pois Canales e Pellejero o que criam é o perfeito pastiche.

Na cronologia biográfica da personagem, os autores colocam esta aventura em 1915, ou seja, após a Balada do Mar Salgado, que introduzira Corto Maltese, e depois das viagens posteriores Sob o signo de Capricórnio, na América Latina. A progressão da publicação das aventuras por Hugo Pratt e a cronologia diegética nem sempre foram a par e passo, mas se descontarmos La jeunesse, de 1982, em que o próprio autor da série sentiu a necessidade de tirar partido dos mecanismos mais clássicos da cultura popular (e até dos contornos comerciais, se quisermos), cada novo álbum correspondia igualmente a um avanço cronológico na vida de Corto. Jogando pelo seguro, este “regresso” não desarruma a vida debuxada por Pratt, desde as suas origens até à sua apoteose onírica-mítica em , mas antes desdobra um pequeno vinco no seu percurso.

Seguindo algumas das formas de escrita de Pratt, e respeitando a economia das amizades e alianças do protagonista, voltaremos aqui a encontrar algumas personagens-chave da saga. Abrimos na companhia de Rasputine, o fantasma de Jack London é quem conduz a aventura toda, cruzamo-nos com outras personagens menores. Além do mais, o efeito de referência é procurado ao introduzirem-se personagens históricas, que alargam as implicações da narrativa, como é o caso da japonesa Waka Yamada, percursora do primeiro feminismo quer no Japão quer nos Estados Unidos. Além disso, tirando partido das formas clássicas da banda desenhada infanto-juvenil franco-belga [o que levantaria algumas questões, é certo, tendo em conta que são autores espanhóis a trabalhar sobre a obra de um italiano, mas o pólo de produção é indubitavelmente esse], os dois autores espanhóis criam uma estrutura de viagens imensas, levando Corto Maltese a atravessar mundos. Começamos no Panamá, depois desviamo-nos por São Francisco, finalmente partimos para o Alasca e o Yukon, sobe-se até ao Ártico, na qual decorre o âmago da “aventura”, para finalmente regressarmos ao centro urbano norte-americano.

Uma das formas de disfarce da falta de uma estrutura central forte em Sous le soleil de minuit, ou até de uma alma da narrativa, de um tema ou matéria interpelante, é lançar o máximo de linhas secundárias para distrair e fazer mover o mecanismo accional, multiplicar as personagens para parecer um épico, criar dinâmicas de oposições, preconceitos e correcções hiperbolizadas (por exemplo, um alemão considera todos os inuítes selvagens e depara-se com um deles que lê a Scientific American e tem luzes sobre fenómenos físico-metereológicos), etc. Há toda uma série de interrupções com pequenos dramas (o inuíte que imita Robespierre, inclusive a sua “origem” num estilo à la Eisner algo descabido e nada importante na economia da narrativa, já que a sua importância no cômputo geral será quase nula, as prostitutas vingativas, a história de amor entre um boxeur e uma madame, etc.) mas que pouco contribuem para adensar o livro ou complicar as redes de relações humanas entre as personagens. Parece quase cumprir-se ipsis verbis o que o crítico literário Pierre Alferi diz dos “romances gordos” dos escaparates de bestsellers, os quais seguem “velhos esqueletos” que, “multiplicando as intrigas secundárias fazem esquecer um pouco a estereotipificação da sua lógica narrativa” (Brefs).

Corto, em si mesmo, é apenas uma personagem reduzida à sua cifra representativa. Repete movimentos, gestos e afirmações que apenas seguem a sombra do que foi deixado na lavra de Pratt, tenta-se mimar uma ideia de decisões quando toda a acção é externa, e até nem se procura uma exactidão na sua representação física ao longo dos espaços. Também Jessie Bi aponta o facto de que ver um Corto nas paisagens gélidas com o seu quepe de marinheiro e as calças brancas é de um ridículo quase absoluto, o que demonstra em grande parte o tratamento bidimensional (ou mais ainda) da personagem pela parte destes autores, em detrimento dos efeitos de referência do autor italiano.

No fundo, o que Canales e Pellejero cumprem aqui é a plena descrição do pastiche. O pastiche pertence a uma classe de categorias literárias nas quais encontraremos igualmente a "homenagem", a "imitação", a "paródia", etc., isto é, tudo redes de criação de referências intertextuais. Mas se seguirmos a lição de Leif Ludwig Albertsen, deveremos não confundir pastiche com paródia ou travesti, uma vez que nestes últimos géneros, os autores reescrevem um modelo para triunfarem sobre ele. No campo da banda desenhada, poderíamos pensar nalguns dos trabalhos de Alan Moore et al. (1963, Supreme, etc.) ou no livro de Spirou por Émile Bravo (alvo de um estudo co-autorado por nós, ainda inédito). No caso do pastiche, todavia, o autor anula-se a si mesmo para renascer noutro nível. Bravo também fez isso com a sua versão “nazi” de Blake & Mortimer, por exemplo, e que acaba por iluminar aspectos que haviam estado semi-ocultos na série original. Em Sous le soleil de minuit, que tipo de renascimento ocorre? Quase nenhum, na verdade.
Há apenas um retomar de efeitos de superfície. E não se pode falar de homenagem, pois numa homenagem não se cria pura e simplesmente uma caricatura redutora, mas antes uma reinterpretação, a qual não ocorre de todo nestas páginas.

Repare-se como nem o argumentista nem o desenhador estão interessados em tornarem Corto Maltese na “sua personagem”. Recordemo-nos como, de formas bem distintas, Mathieu Bonhomme reinventou Lucky Luke, ou os autores norte-americanos que trabalham na indústria de super-heróis procuram adaptar as cifras dos super-heróis a propósitos sempre distintos, como as personagens Disney conseguem revestir-se de fitos diferentes conforme as aventuras criada, como Spirou altera a sua personalidade e escopo de acção conforme a equipa responsável… A mal ou a bem, dentro ou fora de limitações estereotipadas, essa variação é parte do prazer da leitura dessa cultura.

O próprio Pellejero abandona aqui as suas melhores práticas (sendo um autor desigual ao longo da carreira, pautemo-nos pelo que nos suscita maior segurança), de um trabalho à la vitral, de contornos sólidos e negros, cenários pormenorizados, e uma colorização matizada, optando antes por uma imitação da assinatura sumária de Pratt. Daí que se use e abuse de rostos de perfil ou de frente em vinhetas de resto desocupadas, composições dramáticas com ângulos picados e contra-picados, arranjos de páginas sem lustro, e jogos de sombras que mais parecem ser autónomas e forçando o melodramatismo, do que acompanhando o ambiente geral dos episódios ou dos fenómenos atmosféricos em curso. O desenho acaba por ser pífio e desigual, o trabalho de cor medíocre (há uma versão a preto e branco, o que sublinha esta ânsia comercial de “chegar a todas”), o ritmo empobrecido.

É-nos indiferente que se tente imitar Pratt ou não, assim como retomar a personagem. Não nos parece um crime de lesa-majestade muito diferente do que ocorreu com tantas outras personagens, de Watchmen a Blake & Mortimer, cujo valor tem a ver com uma obra fechada e autónoma plenamente inscrita no seu tempo histórico, e cuja revisitação acaba sempre por ser uma falta de imaginação própria e uma incompreensão do que poderá ser mais produtivo na disciplina. É um gesto puramente comercial, mas não finjamos que este território está desigado de estratégias dessa natureza. A questão tem a ver até com o brio técnico com que se fz essa visita, e tentar, de uma forma ou outra, um pequeno gesto de rasgo, de sublinhar um aspecto inesperado, de trazer um novo vinco. No caso de Soleil de minuit, esse rasgo não existe.

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro. 

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