7 de julho de 2016

Hora de aventuras, vol. 1. Ryan North et al. (Devir)

O lançamento do primeiro volume desta série faz esperar por uma tendência de alguma saudável diversidade em relação à banda desenhada para um público mais infantil, que não passe nem pelos grandes impérios comerciais costumeiros (se bem que este seja igualmente um produto da indústria massificada de entretenimento e consumo, não tenhamos dúvidas), nem por uma subsunção a princípios pedagógicos moralizantes, criados por uma comissão de marketeers e pedagogos. Adventure Time, ou Hora de Aventuras, é apesar de tudo um projecto autoral, algo doidivanas e divertido. O que poderá, todavia, ser precisamente um dos factores que cria obstáculos junto aos progenitores do seu público-alvo. (Mais)

Uma vez que falámos desta série na sua forma original norte-americana, remetemos a esse texto para outras dimensões e contextos. Focaremos aqui outros aspectos. O primeiro tem a ver com a recepção que, à falta de uma abordagem verdadeiramente sociológica, com dados, apenas pode passar por uma observação superficial e pessoal.

Com efeito, nos dias que correm ainda encontramos pessoas que – sejam simplesmente leitores, pai, ou até profissionais de ramos relacionados com estes títulos, ou tudo isso - estão presas a perspectivas limitadas à experiência e nostalgia em relação às séries de animação da sua própria infância, esquecendo muitas vezes que teriam a mesma qualidade e/ou problemáticas de dinamismo e diálogo (ou falta deles) com as gerações dos pais (então mais velhas). Por isso, ao seu ver, “a animação já não é o que era”, impedindo-os assim de apreciarem as circunstâncias e as conquistas específicas que novas séries conseguem. E de facto, olhando para o panorama da animação em séries comerciais de grande distribuição contemporâneas, a Cartoon Network tem particularmente um excelente catálogo de séries com um extraordinário worldbuilding (a estruturação de um universo ficcional coerente), desenvolvimentos narrativos complexos e ricos em termos de exponenciação de apreender o mundo em termos de representação, conflito versus colaboração, e, acima de tudo, desenvolvimento de personagens, a nível psicológico, emocional, cultural e, porque não? (ou como não?, melhor dizendo), político. Hora de Aventuras é uma dessas produções, ao lado de The Regular Show, Clarence, Nós, os ursos, O incrível mundo de Gumball e a mais complexa e completa de todas, a nosso ver, Steven Universe. Bom, também há o Titio Avô, mas apenas os não-fãs do Boi Bocas ou de Ren & Stimpy poderão atirar a primeira pedra…

Apesar de não estar indicado em nenhum lado, a história que ocupa a parte de leão deste volume publicado pela Devir baseia-se em material da série de animação. Possivelmente a trilogia dita “do The Lich” (que engloba o 26ª episódio da quarta temporada e os dois primeiros da seguinte), e no qual estiveram envolvidos artistas como Thomas Herpich, de quem havíamos falado nas suas primeiras experiências de banda desenhada, Jesse Moynihan, de quem também falámos, e Rebecca Sugar, criadora de Steven Universe. Mas a história em si é original para a banda desenhada, aproveitando apenas alguns elementos e propondo outra distribuição de acontecimentos. A história principal deste volume é escrita por Ryan North, o qual tem escrito a série juvenil e meta para a Marvel, The Unbeatable Squirrel Girl. Compreende-se portanto aqui uma mescla incrível de mundos e referências, tal como já havíamos aventado no texto anterior sobre a série, quando falámos dos artistas participantes. Ainda assim, repare-se como não surgem os nomes dos autores na capa (mas sim na contra-capa), ponderando esse peso “autoral” com o facto da “autoria original” (de Ward) e da propriedade.

Versão portuguesa da série de revistas publicada pela Boom! Studios (o departamento infanto-juvenil), este volume apenas colecciona a história principal que saíra nelas, e não os relatos mais curtos. Tendo em conta a quantidade de material que tem saído afecta a esta série (e outras animações do Cartoon Network) em Portugal, quer pela revista da Cartoon Network da Goody, a qual apenas esporadicamente inclui histórias curtas, e que as edições espanholas da Norma Editorial mal atravessam a fronteira, a Devir aposta portanto em livros com histórias completas, que fomentem as “necessidades” por histórias maiores. Possivelmente, se a recepção ultrapassar um determinado patamar, e poder alimentar estas tendências contemporâneas, poder-se-ia adivinhar a aposta da editora em outras séries congéneres para públicos diferenciados.

Desta feita, este volume faz justa concorrência a um público-alvo que, até à data, apenas tinha como material apropriado as revistas da Disney ou da Maurício de Sousa, por exemplo, antes de caminharem para certo tipo de mangá (shonen, sobretudo), comic books de super-heróis ou álbuns de aventuras genéricas. Neste sentido, poder-se-ia dizer que onde Hora de Aventuras é uma tendência mais shonen, poderia haver uma busca por material mais shoju com Steven Universe, mais transversal como Gumball, ou até unindo este mundo com o do mainstream dos super-heróis, abrindo espaço aos Teen Titans Go!
Para além da história principal, existem uma série de interrupções à intriga com material desviante, que aumentam a carga de apartes já previstos na própria história. O volume da Devir apresenta ainda um complemento na colecção de capas feitas por vários artistas para a série original (inclusive capas ditas “variantes”). Já havíamos falado deste aspecto igualmente, e é muito curioso encontrar aqui uma série de “reinterpretações gráficas”, de autores como Michael DeForge, Jeffrey Brown ou Emily Carroll, que nos remetem imediatamente a um projecto paralelo destas personagens nos elementos recorrentes destes artistas, assim como composições que são homenagens a outras referências, como o uma capa repescando a primeira aparição do Quarteto Fantástico ou o famoso poster de Totoro….

Um aspecto importante e distinto desta produção, também discutido, em relação a outras possibilidades, é que o desenho dos artistas envolvidos (neste caso Shelli Paroline e Braden Lamb na história principal, Mike Holmes e Stephanie Gonzaga para material adicional, e Chris Houghton nas capas “oficiais”) não se confunde totalmente com um “estilo da casa” homogéneo. Existem muitas características, aspectos que flutuam, pormenorização e acrescentos que são bem diferentes do resultado da animação de estúdio. Isto para além de todas as óbvias especificidades da banda desenhada. Este é também um factor importante num outro tipo de pedagogia do desenho e da criatividade que nem sempre é claro ou discutido de forma directa na consideração destas séries.

Agora é esperar que o Conde de Limadrão venha desfazer tudo.

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do volume. 

Sem comentários: