18 de junho de 2016

Terminus. Rochette e O. Bocquet (Casterman)

É bem possível que esta seja de facto a última paragem deste mecanismo. Um projecto que começou de uma forma algo atabalhoada e mudou de mãos de uma forma singular, em relação ao que costuma acontecer com outros projectos em colaboração ou de direitos nas mãos de companhias, não pode deixar de ter configurações mutantes à medida que avança, como já havíamos explorado quando da discussão dos volumes anteriores e da adaptação cinematográfica. Remetemos, aliás, para esse texto, para uma contextualização maior, focando aqui este volume somente. O problema é que essas mutações não servem para reforçar os temas ou aprofundar o tratamento das personagens, mas as de reescrever a própria natureza do projecto. E não necessariamente como melhoria. (Mais)

O grande problema de Terminus encontra-se no facto de ser feito, sem dúvida, à sombra do filme de Bong Joon-Ho, Snowpiercer. A adaptação tomou toda uma série de liberdades, válidas num trabalho autoral, e Rochette, tendo participado no filme de modo directo, parece estar agora a reboque de algumas das ideias, visão e propósito do realizador coreano. Como explica o posfácio deste livro, assinado por Olivier Bocquet (autor de uma trilogia que adapta os contos de Fantômas nada desaprazível, desenhada de uma forma dinâmica e estilizada por Julie Rocheleau), o projecto de Terminus foi lançado por Rochette, que criou um esquema narrativo, algumas imagens que queria empregar, e tópicos a abordar. Bocquet ajudaria então na mecânica narrativa, diálogos, articulações entre as cenas desejadas e justificações para os tópicos entrarem em cena. Essa descrição, à partida, nada tem de negativo ou de positivo, é tão-somente um método de trabalho.  O problema primeiro é que se sente de forma nítida a articulação primária entre as “partes”, que surgem antes como objectos isolados pelos quais a narrativa tinha de passar, em vez de nascerem de forma orgânica da necessidade da intriga e do mundo ficcional.

A sinopse é simples. O transperceneige foi atraído a um local por uma misteriosa música mas havia-se revelado um beco sem saída. Este volume revela aos sobreviventes que a solução estava sob a neve, onde descobrirão uma cidade subterrânea, antigo parque de diversões (que Bocquet explica se basear na Tomorrowland e a EPCOT da Disney). Os habitantes desta cidade auto-sustentável usam capacetes de ratos que lhes ocultam os rostos, mas não é apenas esse o único segredo que tentam guardar dos sobreviventes que chagaram. Segue-se então o “osso de contenção” que leva ao desequilíbrio dos poderes locais, o confronto entre as partes adversárias, e todo o rol de elementos mais do que expectáveis em histórias desta natureza e tipologia.

O modo de caracterização das personagens é particularmente débil. O héroi, Puig, apesar de todos os desafios que se colocam à sua frente na aprendizagem das novas responsabilidades, e as adversidade o colocarem fora do grande grupo, acaba sempre por exercer uma aura de líder, mas para a qual nada nos ajudaria a prever. Pura e simplesmente ele tem “a razão” ao seu lado. O mesmo sucede, por proximidade, com a heroína, Val, que ganha neste volume um papel importante para o futuro, por uma razão absolutamente clássica mas, perguntamo-nos, algo redutora em relação ao papel feminino possível (os leitores da oba poderão perguntar-nos, “quem senão ela poderia cumprir esse papel?”, ao que responderíamos, “que outras personagens femininas participam na acção?”). Todas as outras personagens, ou surgem enquanto co-adjuvantes necessários a uma ou outra cena ou enquanto implacáveis (pr vezes risíveis) inimigos. O caso mais gritante é o de Madame Lewis. Esta surge em primeiro lugar como líder eleita ainda no comboio, e que tenta um golpe para destituir os membros do Conselho que o comandam, e ao qual, de uma forma ou outra, Puig pertence. Mas no preciso momento em que ela poderia exercer um método de decisões democráticas, a que ela apela, demonstra deixar-se levar por questões de vingança e poder. Todavia, entrados no novo mundo fantástico do parque de atracções subterrâneo, Lewis acaba por se colocar lado a lado dos poderes dessa nova realidade, mas sem os questionar, nem procurar, de forma visível, um poder para ela mesma. Desta forma, jamais compreendemos quais as suas motivações, tornando-se meramente uma cifra para as acções adversas aos heróis, para se criar a ilusão de haver algum obstáculo. Não são apenas as máscaras dos ratos que são feitas de papelão…

De resto, não é somente ao nível das personagens que a incompletude de caracterização leva a um certo maniqueísmo. Os próprios temas, por vezes enfiados a martelo e discutidos com tons panfletários tornam a leitura e a progressão emotiva e experiencial das personagens algo penosa. As centrais nucleares são más e a natureza é boa. A manipulação genética é má e a reprodução natural humana é boa. A prisão no entretenimento é má e a liberdade no sofrimento é boa. Enfim, é todo um rol de dicotomias insofismáveis que não deixam qualquer espaço à dúvida ou à tergiversação, uma vez que não são de forma alguma “opções”, mas extremos em que a negatividade de uma justifica por completo a positividade da outra. Bruxo, apetece dizer. Mas isso não torna o movimento de fuga permanente destas personagens, sobretudo as que se “salvam” na natureza e que são apresentadas como os sobreviventes e herdeiros do amanhã, poderoso o suficiente para sentirmos empatia dos seus esforços.

Uma descrição de cada passo – a descida ao abismo, a jaula do leopardo, a orgia sob o pólen, o tour pela auto-sustentabiliade, o lugar dos bebés, etc. – criaria uma outra rede de associação ao filme sul-coreano, já que essa versão também optava pela criação de “quadros” autónomos de cada vagão, apresentados em cadeia.

A arte de Rochette parece-nos igualmente menos inspirada. A composição das páginas e o dinamismo da leitura é algo pedestre, preso entre a Cila do “contar os episódios” o mais depressa possível – em que as vinhetas mostram somente o centro da acção a representar ou as personagens isoladas a falar - e a Caríbdis de “contemplemos este desenho” deslocado da acção – espécie de publicidade auto-fágica do virtuosismo do autor. Os desenhos, a esmagadora dos quais são pintados a pincel, tentam manter um equilíbrio entre a gestualidade e fluidez da pintura, e a figuração sólida da banda desenhada convencional. Se existem autores que conseguem encontrar equilíbrios entre essas tensões aparentemente contraditórias (Mattotti, Zarate, Conefrey, Feuchtenberger, Goblet, entre outros), não nos parece ser o caso deste volume em particular.

A máquina do tranperceneige chegou ao seu último poiso, já que a coda do livro aponta para o futuro destas personagens, e associando-se, mais uma vez, ao fim prometido do filme. Mas nessa natureza, Rochette e Bocquet também tombam numa solução expectável e delicodoce, que pouco diz da sociedade ficcional em que se trabalhou durante tantos anos, de forma alguma muscula a saga enquanto eco-distopia aparentada com outras obras (V de Vingança, Simon du Fleuve, e até a recente série, particularmente inteligente em termos de ciência e pensamento político, ainda que não brilhante em termos gráficos, Letter 44, de Charles Soule e Alberto Jiménez Alburquerque) e pura e simplesmente apresenta uma fuga fácil à maquinaria lançada por Lob no início dos anos 1980.

Nota final : agradecimentos à editora, pela oferta do volume. As imagens foram colhidas da internet, inclusive da edição norte-americana, antes da cor. 

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