6 de junho de 2016

Patience. Daniel Clowes (Fantagraphics)

O último livro de Daniel Clowes está longe de conquistar o mesmo papel que obras anteriores do autor. Para um nome que exerceu uma importância fundamental na banda desenhada alternativa norte-americana e que em parte ajudou a alavancar uma certa transformação social, a “mudança literária”, desta mesma disciplina (lembremo-nos de dois gestos da sua recepção crítica, aqui e aqui), Patience é uma obra desinspirada e que demonstra alguma limitação na manipulação da sua matéria. Até certo ponto, é como se se tratasse de um daqueles projectos criados por obrigação contratual, mais do que por necessidade intrínseca de criação. (Mais) 

Patience é a história dramática de um casal que não vive nas melhores condições económicas e que está à espera de bebé. Patience é morta no apartamento, e Jack é acusado desse assassínio, se bem que é ilibado meses depois. Durante décadas, ele alimentará a bílis provocada pelo caso por resolver e pela irreparável perda, dupla. Quase por mero acaso descobre a possibilidade de viajar no tempo, e resolve então regressar ao passado para salvar a mulher grávida. Sucessivos saltos no tempo fazem-no errar o “alvo”, lançando-o nas típicas situações paradoxais associadas às narrativas de viagens no tempo.

Clowes tenta criar uma tessitura mais complexa de causas e consequências e, como se espera, de consequências que se tornam causas. Porém, não apenas essas estruturas são relativamente simples em relação aquilo que as narrativas de viagem no tempo já conseguiram construir (de Mort Cinder aos Time Twisters de Alan Moore), como são um solo algo enfraquecido para a narrativa emocional destas personagens. O facto do autor esgrimir, em mais de um nível, a ideia de estar a trabalhar no género da ficção científica, não é mais do que uma rasteira. Bem pode surgir como subtítulo descritivo, ser discutido pelo próprio protagonista, etc., mas muitas das regras expectáveis da ficção científica, sobretudo precisamente a dimensão científica, por mais fabulosa que seja, não está presente. O desconhecimento da parte da personagem principal dos mecanismos básicos do dispositivo que usa, da substância que emprega e dos paradoxos temporais potenciais é por demais sublinhada, afastando assim a hipótese ao leitor habituado a esse género ter acesso a qualquer tipo de techno-babble.

Isso não será, em si mesmo, um problema. Porque, enfim, Clowes continua a colocar no centro nevrálgico das suas histórias a mesma realidade de sempre. Pouco importa se ele reveste as suas narrativas de contornos genéricos da ficção científica, do policial, da novela surrealista, da comédia romântica, dos super-heróis. A sua matéria é a condição patética do ser humano. “Patético” aqui, recordemos, associa-se ao seu sentido profundo, etimológico, do grego pathein, “sofrimento”, significando portanto uma abertura imediata, fácil, talvez superficial, às emoções: algo que tenta despertá-las da maneira mais rápida e flutuante possível. O contrário é a apatheia, a liberdade ou desprendimento em relação às emoções. Se essas duas palavras constroem da forma mais clara possível uma irresolúvel oposição, não significa isso que não possa haver uma paradoxal mistura entre os dois num mesmo espaço, a saber, estético, como é o caso de Patience.

Aquilo que deveria alimentar a narrativa seria o desespero, mas ainda assim espicaçador, de Jack, em relação à perda da sua potencial família. Mas o intervalo que separa o evento trágico e o seu mergulho na hipótese de resolução é tratado com demasiada distância e rapidez para o leitor compreender a verdadeira necessidade disso mesmo. Jack surge-nos apenas como uma personagem perdida no passado, e não um vingador movido. Não há, enfim, qualquer mecanismo que nos leve a sentir empatia, ou sequer simpatia, por Jack. Alguns outros leitores desta obra apontam como Clowes parece continuar a alimentar uma visão desequilibrada em termos de género. Afinal de contas, este cenário trans-temporal permite que leiamos uma história de um homem bem mais velho a tentar salvar uma rapariga acabada de sair da adolescência, sem que pensemos imediatamente numa relação directa. Schuiten abandona-se a essa fantasia de forma directa e sem artifícios; Clowes cria um mecanismo rocambolesco para disfarçar essa mesma situação. Daqui a considerar Jack como avatar do próprio autor e Patience como fantasma de fantasias por resolver, é um passo.

O livro, porém, não foca somente a consciência de Jack. Por vezes centramo-nos na experiência de Patience, tendo acesso à sua voz interna, mas nunca com a mesma desenvoltura em relação ao protagonista masculino. Todavia, o aspecto mais frágil é que isso funciona menos como uma técnica de polifonia que torne complexa a intriga e a obra, do ponto de vista narrativo, corrigindo, por hipótese, perspectivas, ou providenciando versões que o leitor deveria destrinçar, do que uma aparente distracção e forçada solução de diversidade. Estamos longe das explorações que Clowes fazia quer do ennui da pós-adolescência dos anos 1990, ou das crises que ficam por resolver na infância e que alimentam a nostalgia subsequente. O humor também parece ter-se evacuado, com a excepção de piadas superficiais e às custas de aspectos pouco interessantes (em torno de personagens bêbadas, violência, sexo e um imitador de Bizarro).

Pela sua própria matéria temática, e alguma tentativa de worldbuilding do futuro (sempre dentro do humor cínico de Clowes, aqui algo mais enfraquecido, mas mostrando que continuam os mesmos mecanismos de alienação cultural e de obstáculos sociais), Patience recorda em parte Âama, de F. Peeters. Mas onde a obra do autor belga tira partido desse ambiente genérico para criar uma afinal tranquila história das relações emotivas que unem as suas personagens (pai e filha), Clowes acaba por carregar no acelerador em relação à busca por Patience por Jack, e a todas as reacções destas personagens aos eventos que os rodeiam. É certo que os exageros de Clowes se revestem da sua costumeira veia sarcástica, representando os humanos como seres mesquinhos, egoístas e cegos às necessidades dos outros, podendo lermos com alguma distância cómica esses mesmos comportamentos de vingança, violência, desespero, mas por essas mesmas razões as coisas acabam por se esgotar nesse espectáculo. Não há tempo sequer para um grão de simpatia para com estas personagens.

Mesmo em termos de composição e estratégias visuais, Patience é um livro menor. O autor não parece particularmente interessado em criar momentos de elegância, mas antes uma confusa profusão de abordagens, abusando, a nosso ver, de composições com vinhetas maiores que ocupam imenso espaço (por vezes mesmo três vinhetas, ou duas, splash pages e spreads) mas que não trazem o impacto visual ou actancial que deveriam comportar. Ocupam é espaço mais depressa... Não estamos aqui perante um exercício de heterogenia gráfica e metatextual como foram os casos de Ice Haven e, em menor escala, Mr. Wonderful. As flutuações de estilo, aí, tinham um papel de significado. Em Patience há homogeneidade de estilo, mas não de composição, se bem que possamos identificar cada transformação com os “episódios temporais”. Os efeitos “fantásticos”, nos momentos de transporte temporal, são algo pobres (com meia dúzia de formas semi-orgânicas ou poliédricas). A cor, sempre plana e garrida, torna estranhamente o livro algo monótono. Para uma estrutura narrativa que não é particularmente densa nem surpreendente, há algo de pífio em Patience.

Um dos poucos pontos fortes é a primeiríssima página (mostrada acima), que começa com um orgasmo fecundador em close-up hiperbólico, e organiza a premissa primeira de imediato. Um começo intenso, mas que vai prometendo o modo como se esboroa a longo prazo. E fica uma pergunta: que papel ocupa Clowes hoje? Líder ainda do "alternativo" ou novo valor de um novo mainstream?
Nota final: agradecimentos à editora, pelo envio dos ficheiros digitais.  

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