15 de maio de 2016

Will Eisner. Champion of the Grahic Novel. Paul Levitz (Abrams Comicart)

Independentemente de se querer atribuir quase poderes sobrenaturais de invenção e paternidade de uma forma de arte, ou o/um modo de a cumprir, a uma só pessoa (o que ocorre com nomes tais como Töpffer, Hergé, Bordalo, Tezuka, etc.), de se querer arvorar quase de modo absoluto e descontextualizado uma determinada obra em todo um complexo campo de produção, de se querer mesmo apreciar essa mesma obra de forma acrítica e ahistórica, tem de haver um momento em que se ponderará com atenção o significado dessa mesma herança. Todavia, mesmo que se queira diminuir esse mesmo valor em nome de uma maior diversidade actual, não se pode negar que os trilhos são abertos por vezes por percursores que não terão necessariamente de ser amados na sua completude. Will Eisner é um desses nomes, uma dessas obras, um dos percursores. Este livro é cuidadoso no seu título a não se abandonar em ideias de paternidades e absolutos, mas é claro quanto ao papel que deseja sublinhar do autor norte-americano.

Por um lado, não se trata de uma biografia, já cumprida por outros volumes, mas há necessariamente uma organização cronológica dos capítulos. Por outro, não é tampouco uma simples celebração ou encómio da obra de Eisner, uma vez que muitos dos mais famosos títulos foram alvo de sobeja atenção. Digamos que o que Paul Levitz, não apenas na qualidade de actual presidente e publisher da DC Comics, ou até argumentista, mas antes recuando ao seu papel de editor de fanzines dedicados à banda desenhada, pretende neste imenso coffee table book é menos revelar novos factos ou dimensões da vida e obra de Eisner do que as reavaliar sob o domínio do campo existente nos nossos dias em termos de recepção mediática, crítica, académica e de circulação comercial do formato/packaging “graphic novel”, tentando compreender o papel fulcral e pioneiro que ele teve nessa emergência. Pois quer se queira quer não, ele criou modelos que seriam, à vez, influentes, contrários ou comercialmente viáveis permitindo os passos seguintes. Mesmo Art Spiegelman, que várias vezes confessou não ter em A Contract with God (editado entre nós finalmente pela Levoir) um modelo para a sua obra mais famosa,  partilhava com Eisner a verve e o desejo de “evangelizar” a banda desenhada fora da comunidade usual, se bem que em termos bem distintos e por vezes em tensão.

Levitz não procura com o seu discurso isolar a produção de Eisner em relação aos seus companheiros de trabalho, nem apagar muitos dos outros objectos que podem ou devem ser considerados na história deste termo e as suas implicações. É certo que o seu propósito é demonstrar como Eisner acabou por saber gerir melhor do que qualquer outro essa mesma situação, e isso não deixa de ter a sua importância. Essa valorização não se deve somente a um hipotético crivo estético absoluto e inquestionável que a obra de Eisner conquistaria sem mais, ao passo que outras obras falhariam – The Jungle Book, de Kurtzman, Tantrum, do seu antigo assistente e companheiro de discussões teóricas, Jules Feiffer, sucessos de venda, como Superman Vs. the Amazing Spider-Man, todos citados no livro, entre muitos outros -, mas antes à integração dessa prática artística na dimensão de negociador diligente, prevenido e inventivo. Como Denis Kitchen diz, por alguma razão a revista de banda desenhada educativa PS, que Eisner inventou para o exército norte-americano em 1951 é ainda hoje empregue. E, na opinião de Levitz, se Tantrum é um modelo mais próximo das graphic novels contemporâneas, não ocupou o mesmo nicho precisamente pelas circunstâncias que levariam Eisner a continuar nessa senda, coisa que Feiffer, bem mais famoso que Eisner junto a uma certa intelligentsia nova-iorquina (e não só, graças ao teatro e cinema), não faria.  A palavra que Levitz usa é “tenacidade”.

Uma das características sistematicamente sublinhadas da personalidade de Eisner é precisamente o seu acume na parte negocial da carreira de autor de banda desenhada, profusamente trabalhada por Levitz, quando estuda o aparecimento da sua companhia American Visuals, depois da 2ª Grande Guerra, e o que isso significaria para a consolidação de Eisner - em termos não apenas financeiros (apesar de alguns deslizes)  como de personalidade criativa - que, de certa forma, contribuiria para a “liberdade criativa” do seu trabalho mais tardio. Além disso, essa característica adicionava-se à sua genuína preocupação e interesse em conhecer todos os momentos ou estádios da comunicação da banda desenhada, interessando-se não apenas pelos seus colegas autores como pelos vendedores, distribuidores, clientes, etc. Nesse sentido, a ética a um só tempo austera, conservadora e humilde de Eisner (uma espécie de mistura entre a perseverança judaica e a ética protestante?)  permitia que “falasse com todos”, ao contrário de outros autores que teriam (terão) uma atitude mais elitista, apenas discutindo inter pares ou em contextos desde logo “elevados.”

Parte dessa humildade e até generosidade deve-se ao momento histórico da emergência da obra de Eisner. Com efeito aquele trato – a atenção para com uma perspectiva mais alargada do negócio, da sobrevivência imediata até - era raramente partilhado por muitos dos outros autores de comic books da sua época, já que havia uma distinção social clara, comercial e artística, entre os artistas dessas revistas e o das newpaper strips. Por exemplo, a National Cartoonists Society, formada em 1946, não aceitava autores de banda desenhada de comic books, tendo sido Will Eisner o primeiro, uma vez que The Spirit aparecia também em jornais (numa complexa presença que tirava partido de novos formas de reprodução e distribuição, mas fazia avançar igualmente uma forma inovadora de ocupação das páginas a partir dos modelos dos comic books). Essas dimensões são estudadas, tais como outros pormenores (de novo, não de um ponto de vista de “novidade”, ou de análise académica, mas de contextualização que suporte o papel de Eisner).

Apesar de repetir histórias já conhecidas de outras fontes, o capítulo 7 (“Graphic novels are coming!”), em que Levitz faz o historial da emergência, uso e valorização do termo “graphic novel”, é muito bem escrito, e quase valeria autonomamente (com é evidente, atendo-se ao contexto norte-americano).  Recua à história dos “romances sem palavras” de Ward e de Gross, e atravessa toda uma série de experiências. E é bastante claro quanto à relativa e lenta fama de A contract with God, a qual não foi imediata, de forma alguma, mas antes aturada a lume brando.

Ainda que tenha havido já outras ocasiões de estudar e debater as especificidades técnicas de Eisner que lhe fariam a fortuna crítica, e as suas invenções visuais, não deixa de ser salutar a forma clara e integrada como Levitz as delineia. A representação da incessante e espessa chuva da “Eisnerspritz”, o uso cada vez mais intenso da modelação do título da série enquanto elemento arquitectónico da paisagem urbana, as fórmulas cada vez mais complexas da serialidade e continuidade das histórias, o uso profícuo e inteligente de colagens, fotografia, cruzamento de referências a outras realidades fora da série, e os temas cada vez menos comuns a uma mera série policial... A interpretação que Levitz faz da famosa história “Gerhard Shnobble”, enquanto projecção das próprias preocupações de Eisner, é significativa nesse ponto.

Levitz apresenta um texto legível, claro e rápido. Não apresenta apenas factos de um modo enxuto, mas procura criar contextos alargados e compreensíveis da importância do que pretende sublinhar. E por vezes é elíptico ou irónico quando quer deixar algo por dizer, mas nessa suspensão, já dizendo o suficiente... isso dá a todo o texto um cunho mais pessoal, bebendo quer da sua experiência própria quer de conversas que teve com muitos dos nomes mais sonantes desta área para ter declarações ou memórias a usar no livro. O último capítulo é aquele que tenta criar um esboço sumário do estado da banda desenhada nos Estados Unidos nos nossos dias, falando-se das exposições em locais de grande prestígio cultural (recordemo-nos de Masters of American Comics), o mundo editorial diversificado, a abertura de escolas com diplomas oficiais e reconhecidos, o acesso a determinados concursos e prémios, inclusive o mais importante dos E.U.A., que leva o seu nome, e criando laços desse estado a, em grande parte, o esforço de Eisner ao longo de décadas. E criando mesmo uma imagem interessante: “como Moisés, não chegou a pisar a Terra Prometida, que porém avistava” (pg. 199).


O livro não se coíbe, como é de esperar, de contextualizar historicamente mas apreciar de modo crítico aqueles aspectos em que Eisner se munira de modelos e estereótipos da sua época – nomeadamente o retrato à la minstrel de Ebony ou as figuras femininas ora angélicas ou sexualizadas – mas, sem os desculpar, mostra igualmente a tentativa de Eisner corrigir, digamos assim, essas perspectivas e os modos como não apenas se adaptava à realidade que não era a sua vivência (como os episódios de Natal, sendo Eisner judeu) como procurou mais tarde abrir caminho a representações usualmente alheias à produção de banda desenhada (precisamente a classe trabalhadora judaica dos bairros pobres de Nova Iorque). E até mesmo tentar compreender uma espécie de hierarquia de recepção entre os seus vários trabalhos, desde os “comerciais” às “graphic novels” até ao seu livro póstumo, uma espécie de estranha herança e ensaio sob a forma de The Plot (publicado em Portugal pela Gradiva).

Como se espera de um livro desta natureza, todas as páginas são profusamente ilustradas com material relativamente raro ou então de valor documental, mostrando fotografias do autor, arte original, e até mesmo secções em fac-símile (ou mesmo arte original) de episódios de The Spirit ou de capítulos dos seus livros mais tardios. A qualidade destas reproduções é soberba e o design do livro é desimpedido e claro, tornando-o um inestimável recurso para quem deseje ou ter acesso a uma dimensão da história desta arte, ou completar o que conhecerá de Eisner. O apêndice final, que transcreve uma conversa entre Levitz, Jeff Smith, Scott McCloud, Neil Gaiman e Denis Kitchen numa mesa-redonda em homenagem a Eisner, repesca muitos dos temas, mas a partir da perspectiva pessoal desses importantes autores, editores e téoricos, criando uma excelente pedra de toque da missão do autor de The Spirit.
Nota final: agradecimentos à editora, pelo envio do livro.

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