11 de janeiro de 2016

Vive la marée ! David Prudhomme e Pascal Rabaté (Futuropolis)

Como noutras sociedades ocidentais, a francesa e a portuguesa entende bem o que significa do fluxo migratório dos corpos dos cidadãos urbanos rumo à beira-mar por altura das férias de Verão… Todavia, grande parte das pessoas sabe igualmente que esse prazer prometido encerra em sim mesmo um bom número de escolhos – filas de trânsito, combates em busca de espaço suficiente no areal, refeições que correspondam ao sonhado, um convívio mais apertado que o costume com os membros da família, a difícil instalação de rotinas passageiras, etc. – mas que se enfrentam na ideia de que, ultrapassados, se desvendará a Terra Prometida: o Descanso. Vive la marée! não é de forma alguma o hino a essa aventura, com o tom heróico e positivo que isso pareceria acarretar: é antes a constatação da patetice desses mesmos obstáculos. (Mais)

Há notícia de que este livro foi sendo pré-publicado no diário Sud-Ouest, provavelmente na estação balnear, o que faz imaginar que os seus leitores abririam as páginas para um pouco glorioso mas não menos magnífico espelho da França em tronco nu e chinelos de enfiar no dedo. Não deixa, ainda assim, de se revestir de algum tipo de discurso elogioso de uma simplicidade, de uma parvoíce (no sentido etimológico da palavra, de “coisa pequena”) em torno da silly season.

Uma das personagens, um dos veraneantes que deambula pela praia, mãos atrás das costas e observando os outros, estendidos, jogando à bola ou na água, diz “tudo muda, nada muda”. Recorda um verso de Ovídio (“tudo muda, nada perece”) e é uma máxima que pretende mostrar a mutação das contingências na perenidade da natureza. E de facto, há qualquer coisa de permutável ou combinatório em todas estas personagens, como se fosse menos importante saber os nomes próprios, as biografias e as especificidades do que a capacidade que elas têm de cumprir uma função, a qual não apenas poderia ser desempenhada por outra pessoa qualquer como também seria substituível por outra: o pai de família de classe média, o homem de negócios que os traz para a praia, a mulher stressada com o que há-de cozinhar, os filhos obcecados com a tecnologia ausente na estância, os snobs que julgam todo o mundo, o gordo que não quer fazer nenhum, a boazona que não quer ser incomodada por ninguém, o bando de adolescentes que quer incomodar todo o mundo, a criança que se maravilha com construções na areia, o adulto que se maravilha com construções na areia… Nenhuma destas personagens ganhará um maior protagonismo, nenhuma delas assumirá um papel mais tenso, nenhum dos acontecimentos, dos mais triviais aos mais (quase) espectaculares, se tornam particularmente centrais. Tudo vem e tudo vai. O mar faz assentar qualquer acidente na areia e a espuma acaba por se dissipar.

Se bem que não possamos cobrar uma comparação directa, uma vez que há aqui uma dispersão por uma pletora de protagonistas, dos quais nos afastamos e aos quais regressamos em movimentos ondulatórios, a verdade é que Vive la marée! recorda-nos o humor dos filmes de Jacques Tati, por construírem grande parte das piadas na própria matéria visual, no seu sentido holístico, e por colocar a “faixa textual”, e até mesmo a “intriga” num plano secundarizado.

Quando falamos da visualidade holística, queremos dar a entender que não tem a ver somente com a figuração, a cor, os pequenos apontamentos subtis de expressão ou de caracterização que tornam Vive la marée! numa maravilhosa e sarcástica galeria de retratos sociais, atravessando todas as paisagens de classes e papéis culturais daquele país. Tem a ver com tudo isso amalgamado num contínuo olhar, como se a sua traduzibilidade cinematográfica fosse uma câmara que, num plano contínuo, dançasse uma valsa à volta desta turbamulta diversa. Uma das características do humor de Jacques Tati estava na forma como ele empregava a imagem cinematográfica enquanto um espaço de duas dimensões. Ao invés de criar uma ilusão de profundidade, Tati apostava na bidimensionalidade dos seus planos: daí que os batentes de uma porta se pudessem transformar num par de chifres sobre Hulot, e assustasse quem se aproximasse da porta, mesmo que fosse impossível a essa mesma personagem, no espaço ficcional euclidiano dessa história, pudesse ter acesso a essa confusão. Quer dizer, Tati criava uma piada que apenas fazia sentido visual para o espectador na sua própria posição de espectador.

Uma outra pista que nos permitiria essa comparação é o facto de que os textos são quase inconsequentes. É verdade que os podemos ler e compreender melhor ou mais inteligivelmente do que os diálogos murmurados por Hulot e os seus companheiros de fortuna. Mas as frases nem sempre são absolutamente sólidas. Incompletas, fiapos de discussões ou diálogos de que nunca ouviremos o início exacto nem a sua conclusão, saltamos de foco de atenção em foco como se nos levasse uma brisa leve. E é nessa “distracção” de flâneur que nos é imposta como condição que criamos um círculo em torno desta praia. Encerrado num dia, e numa unidade temporal ladeada pela “chegada” e a “partida” ao fim do dia, ainda assim não se coalesce numa trama unilinear (apesar dos fiapos que regressam aqui e a ali), mas antes numa sequência, em cadência, de cenas desirmanadas.

Dois pintores camarários terminam de pintar uma cancela de ferro acompanhando os arabescos de um adolescente num skate. Uma criança sobrepõe a sua forminha-comboio para a areia sobre o comboio turístico. Um homem tenta ligar as linhas brancas desenhadas pelo sol no seu pé com a linha branca do fato de banho de uma mulher à sua frente. Uma menina gesticula toda a paisagem à sua frente para descobrir que a tacteabilidade virtual/digital não tem lugar no mundo fenoménico. Se começamos com uma família viajando no carro, somos levados subitamente pelo compartimento do comboio que se lhes atravessa à frente, para depois mergulharmos na paisagem da praia que é visível pela janela. Na praia, acompanhamos uma pessoa a mergulhar, mas voltamos à praia com outro que sai da água. Se nos aproximamos das rochas pela preocupação de uns pais com o seu filho, voltamos ao calçadão com outro pai que se afasta de camarão na cabeça… Há um total marulhar de acção em acção que segue ritmos próprios de todas as linhas desenvolvidas por todas estas personagens.

Os chistes desta natureza são inúmeros e nenhuma tentativa de écfrases lhes faria justiça. Além disso, tendo em conta o ritmo com que surgem, a forma como se tecem por vezes umas nas outras, já para não falar dos trocadilhos entre sentido e associação (uma fala que se refere ao objecto x, mas pela sua contiguidade acaba por se ligar a y, criando um sentido apenas inteligível ao leitor, na sua própria posição de leitor), Vive la marée!, tal como os Verões na praia de cada um, não são transmissíveis, mas experienciáveis individualmente e apenas, logo evolados, nesse mesmo momento.
Nota final: imagens colhidas da internet. 

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