28 de dezembro de 2015

Incidente em Tunguska. Pedro Franz (auto-edição)

Gostaríamos que ficasse claro que a leitura deste projecto de Pedro Franz é feita dentro de uma constelação que se coordenou num espaço de tempo comum: Dispossession, de Simon Grennan, e Unflattened, de Nick Sousanis. Se leremos cada um desses títulos, e este agora, de forma autónoma, eles unem-se na medida em que são todos trabalhos que são criados num ambiente e esforço articulado com, ao mesmo tempo, uma pesquisa mais académica da parte dos autores. Muitas vezes, acredita-se na ideia – repetida até à exaustão até perder o seu valor explicativo e passar a ser uma fórmula esvaziada de sentido – de que “uns criam” e “outros criticam”, em que os primeiros fugiriam como o diabo da cruz de discursos segundos, reflectores, académicos, de pensamento, e os segundos seriam vistos como estando desligados de uma suposta intuição ou capacidade criativas. Nada poderia estar mais longe da verdade. O que existe é um espectro extremamente alargado de criação e seu relacionamento com um pensamento “ao quadrado”: há aqueles autores que poderão não exercer qualquer tipo de discurso secundário sobre os seus trabalhos, e aqueles que apenas retrabalhando conceitos mais intelectuais são capazes de mergulhar na matéria do trabalho criativo. Porém, não se pode pensar em qualquer tipo de hierarquia, pois os que “não reflectem” sob a forma de discurso poderão criar obras que elas mesmas são profundas reflexões sobre o próprio acto criativo, ao passo que os que botam discurso podem falhar nas abordagens mais primárias a esse exercício. (Mais) 

Grennan, Sousanis e Franz devem ser considerados, portanto, tanto quanto autores completos de obras complexas (“autor completo” não no sentido do mito contumaz, mas na ideia de que as suas obras possuem traços de completude) como igualmente investigadores, pessoas que reflectem sobre a banda desenhada, seja a sua prática pessoal ou a disciplina em geral. Grennan criou o seu livro, uma adaptação literária, no seio de um projecto associado a um enquadramento maior que envolvia o autor original, Trollope, e um estudo da sua recepção e adaptação. Sousanis elaborou Unflattened como texto da sua própria dissertação de doutoramento (a banda desenhada é esse texto). Pedro Franz criou Incidente em Tunguska enquanto projecto artístico (não apenas o “texto” em si, ou até os objectos materiais associados a uma exposição-intalação) que também é objecto de estudo do seu projecto de Mestrado, em Artes Visuais. Isto não significa que devamos ou tenhamos que ler a publicação acompanhando esse “discurso segundo”, mas uma vez que tivemos acesso ao mesmo, fá-lo-emos nós mesmos.

Temos de deixar outro ponto também claro. É que Incidente de Tunguska tem dois corpos. Há a publicação, um pequeno jornal aproximado ao A4 a preto-e-branco, mas uma exposição com o mesmo nome, que distribui os seus elementos materiais em formatos e objectos bem distintos num espaço determinado, obrigando a uma “navegação” do leitor, que passa a espectador. Não tendo visitado a exposição senão fotograficamente, as considerações afectas a esse “corpo” são menos directas. Mas a leitura pode ser feita de dois modos, conforme o “corpo”. Comecemos pela publicação em si, ou a parte do “texto” (na verdade, poderíamos aumentar esta leitura partida, uma vez que as páginas tiveram uma primeira e curta vida no Jornal Diário Catarinense, e há diferenças entre as exposições, na escolha do que se inclui e publica, etc., mas abster-nos-emos de ler essa multiplicação editorial). Uma das páginas reza, separadamente: “como uma coleção/pedaços/de você/que sigo encontrando”. Em conjunto ou estilhaçados, linear ou ziguezagueadamente, podemos ver estas imagens como pedaços de alguém que coleccionamos, na esperança de reconstruir uma memória mais ou menos completa. Ou pelo menos legível.

Franz tem aumentado cada vez mais o grau de distorção, digamos assim, de uma ideia normativa da banda desenhada, procurando contaminar a sua prática de leituras e experiências quer históricas quer contemporâneas naquilo a que se pode entender como o “campo expandido” da banda desenhada, na expressão de Domingos Isabelinho bebendo de Rosalind Krauss. Tugunska, em larga medida, reaproveita, reinstitui ou reformula os “elementos-chave” que costumam habitar os trabalhos de Franz: Há claramente uma linha de desenvolvimento, sobretudo na “faixa textual”, que parece poder ser entendida como autobiográfica: apontamentos de saídas nocturnas, conversas quase inconsequentes, o que parecem ser cartas, frases escutadas, memórias de uma relação amorosa, filmes vistos (há umas citações de Aquele querido mês de Agosto, de Miguel Gomes, o qual organizou um workshop no qual Franz esteve presente). No entanto, essas linhas não se coalescem numa espécie de história passível de ser lida linear ou concludentemente. Há uma abertura na navegação destas páginas.

Em termos de referências visuais, é quase tentador encontrar a cada página uma espécie de “raiz” ou “modelo”. O Warren Craghead III de How to be Everywhere e o Frédéric Coché de Hic Sunt Leones parecem estar presentes, assim como uma quantidade de referências a banda desenhada experimental, desde a abstracta à destruturada (há também referências explícitas a Warhol e Duane Michals, e a Rilke, que o autor cita em nota final). Existem desenhos cuidados e pormenorizados, de plantas e as suas nervuras, mas outras abordagens mais simples, onde se rabisca um objecto acompanhado de uma palavra única. Existem usos de linhas finíssimas, do mais delicado lápis, a gestos bruscos com carvão. Colecções heteróclitas de objectos e séries coesas de peças idênticas ou irmanáveis. Momentos em que o texto assume qualidades gráficas, aparentes a logotipia, e outros onde é secundarizado, como se “escutado” distraidamente. E outras gribouillages onde o prazer da ocupação do espaço e a assunção de formas e texturas está como que desligada de sentidos categoriais. No entanto, tudo de articula numa rede textual, afinal, nem que seja pela existência no interior de um objecto legível: um livro.

Franz é um autor informado nessa realidade efectiva da banda desenhada “expandida” e, portanto, responde a ela nesse novo gesto. Em termos de composição, ocupação do espaço, distribuição e relação entre texto e imagem, graus de referencialidade das imagens, temos aqui uma tal ordem de divergências internas que quase coloca em perigo a ideia de coerência ou uniformidade. Mas não será esse mesmo o fito de Tugunska, até mesmo na ideia de aproveitar esse conhecido evento misterioso, na sua ideia de rebentamento de categorias e expectativas?

Um dos pontos centrais na argumentação académica de Franz ronda em torno da noção famosa de “dispositivo”, tal como conceptualizada por Baudry e Metz, e depois repensada por Deleuze, Foucault e, o autor citado por Franz, Philippe Dubois, que teorizou a questão do pós-cinema, ou cinema de exposição, que o autor brasileiro vê como modelo por excelência das experiências que pretende perseguir no campo da banda desenhada. O dispositivo – no cinema, mas é fácil entender o que se passará no “nosso” campo - é a relação em rede estabelecida entre todos os elementos presentes no posicionamento dos espectadores em relação ao filme. Não se trata, portanto, somente do discurso próprio do filme (analisável pela semiologia), mas do conjunto dele com o espectador, a tecnologia implicada (a câmara, o projector, e hoje com os sistemas de surround 7.0, ou Imax, ou seja o que for) e as condições de projecção (a sala escurecida, o nível de conforto da sala, a ocultação do projector, a imobilidade do espectador, o acesso ou qualidade do som e imagem, até mesmo se há ou não intervalo, etc.). Ora Dubois, discutindo o cinema de exposição, isto é, aquele que é projectado em contextos museológicos e/ou galerísticos (um exemplo mesmo a calhar é o projecto Interregnum, de Stan Douglas, no Museu Berado), fala da “migração ou inserção de dispositivos”, no sentido em que há um deslocamento espacial (com consequências técnicas) – o filme passa a ser projectado numa sala de exposições e não numa sala de cinema – e um estético ou até aurático, poder-se-ia dizer com Benjamin – uma vez que passa de “projecção” para “exposição”.

Franz, portanto, procura instituir as suas próprias deslocações do dispositivo da banda desenhada em termos internos (a composição, o texto, a relação com uma suposta narrativa, a figuração flutuante), externos (cada “parte” é apresentada num contexto galerístico de modo específico: uma pilha de folhas, uma coluna de vinhetas, uma colecção de desenhos navegável de forma não-linear, desenhos emoldurados, um desdobrável, uma espécie de peça escultórica de transparências sucessivas, desenhos feitos directamente numa parede, etc.), e, consequentemente, fazendo com que essa banda desenhada – nesse corpo, não o da publicação – passe a ser visitável de modo bem distinto. Existem outros gestos análogos aos de Franz (pensamos numa exposição de Damian Duffy, outra de Dave McKean), em que as características do espaço e da deslocação do corpo do espectador poderão ter um papel preponderante na “leitura”. Integrando numa exposição colectiva, Compulsão Narrativa, que teve lugar no SESC Vila Mariana, em 2014, e também no Espaço Oficina do Centro Integrado de Cultura de Florianópolis, poderíamos perguntar-nos se a qualidade fragmentária deste título se deve a que cada “objecto” teria uma autonomia própria que passa a ter de viver um convívio compulsivo, lá está, na “prisão” do papel, ou se há uma respiração dividida desde logo perseguida que ganha na exposição uma autonomia maior, um intervalo (previsto a cada página, a cada vinheta) incorporado.

Numa outra página, lemos “Toda construção é uma possibilidade de ruína”. Cada palavra está isolada num cartucho-legenda, ladeando uma coluna constituída de duas vinhetas, uma mostrando um conjunto de riscos que podem recordar representações de estratos geológicos, a outra duas casas desenhadas num estilo sumário e infantil. Tudo isto está sobreposto a uma espécie de montanha constituída de grossos riscos de grafite. Mas não se poderia inverter essa relação? Isto é, não podemos ver como qualquer ruína como a possibilidade de reimaginar uma construção alternativa àquela real, histórica e, dessa maneira, aumentar o próprio gesto da arquitectura tangível? Não será essa uma metáfora possível de um texto fragmentado, a de que os seus elementos de ruína podem ser – mesmo que no acto imaginativo da leitura e da visita à exposição – reformados, reconstruídos, remontados?

Nota final: agradecimentos ao autor, pelo envio da publicação, da dissertação, das conversas. 

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