18 de outubro de 2015

Títulos brasileiros vários.

Para fechar este breve ciclo concentrado na produção contemporânea brasileira, que esperamos ter demonstrado uma parcela da diversidade existente – temos notícias de muitos outros trabalhos a que, infelizmente, não tivemos acesso – terminaremos com textos curtos sobre uma mão-cheia de títulos individuais. O tratamento colectivo não deve ser entendido em detrimento dos mesmos, por oposição aos trabalhos anteriores, mas tão-somente uma estratégia de gestão do nosso trabalho.

Falaremos de dois livros de uma editora brasileira, a Veneta, que é precisamente aquela que publicou Tungstênio, de Quintanilha, e de uma portuguesa, a Polvo, também tendo publicado esse título. Se a Veneta é uma editora de objectos multifacetados que vai conquistando espaço, no que à banda desenhada diz respeito, no seu país, num panorama já de si bastante diversificado, mas que tem dado mostras de crescimento e amplitude, a Polvo é uma veterana da banda desenhada (mas não só) em Portugal, e que tem aberto espaço a uma “translação” de trabalhos brasileiros para que sejam apresentados ao público nacional, deste lado do lago. A Polvo não iniciou a sua série de títulos brasileiros de uma forma em que a pensasse enquanto colecção, como se pode ver pelos seus índices, mas mais recentemente esse esforço, concertado e planeado a médio e longo prazo reflecte-se na organização do catálogo.

No final, revisitaremos uma editora consolidada, a Companhia das Letras, que volta a sua atenção para o património recente da HQ nacional. (Mais) 

Jockey. Rafael Calça e André Aguiar (Veneta)
O grande formato e a capa cartonada, engalanada, e seguindo padrões de design que poderão colocar alguns leitores nas memórias dos livros ilustrados “de luxo” do século XIX, empurrariam este projecto para um mundo de referências de alguma gravidade, peso e medida que, após a leitura, parecem ser algo deslocados. A materialidade de um projecto não apenas é revelador da política editorial que move esse mesmo título como vai informar o leitor de determinados intervalos no interior do qual cumprirá essa leitura. Ora há em Jockey uma qualquer discrepância entre a expectativa formal e a narrativa em si.

Aparentemente assentado no realismo histórico – no Brasil da década do pós-guerra -, Jockey vai revelando o acesso a dimensões da loucura e visão deturpada de uma das personagens, para depois nos surpreender com a “realidade” dos pressupostos fantásticos deste universo referencial, que implica o nome de um deus lusitano (Cariocecus). Em vez de termos aqui apenas uma história centrada numa personagem, temos antes uma intriga familiar, ou de rivalidades familiares, que envolve um alargado elenco de personagens, atravessa várias décadas e se espalha por dimensões sociais diferentes para erguer um edifício coerente. De facto, e apesar dos vários agentes, o livro tem uma intriga relativamente contida, construída de forma elegante, tirando partido de factores tais como os da polifonia das personagens, as linhas de tempos paralelos e as analepses que dão consistência às implicações emocionais e da trama.

Há, porém, uma economia de meios, quer da apresentação dos episódios, dos eventos, e até mesmo da matéria visual, que torna Jockey num livro de leitura tão rápida quando as corridas dos cavalos que informam o contexto e substrato da intriga. O desenho de Aguiar faz recordar um primeiro Nick Bertozzi, mas de linhas mais largas, menos consolidadas em contornos, procurando um certo grau de velocidade e minimalismo concentrado na ideia e dinamismo, tão necessário nas cenas das corridas de cavalos e de acção, do que na de texturar os cenários ou o realismo das situações. Isso não significa que as personagens não sejam claras e legíveis, mas há claramente uma economia de meios que sublinha mais a diligência da legibilidade narrativa do que a contemplação. E é essa velocidade, e leveza até, que destoa do aspecto grave do objecto em si.

Copacabana. Lobo e Odyr (Polvo)
Copacabana é a história de Diana, uma jovem mulher negra de uma qualquer cidadezinha do interior que se vê enredada numa vida de prostituição (“programa”) para pagar a renda, enviar dinheiro para a mãe, e enfrentar alguns dos tubarões que rondam em seu torno. No seu pequeno universo, que compreende o calçadão, a praia e alguns botecos da cidade, há uma rede que se vai formando de colegas de trabalho, amigas, clientes regulares, e um novo namorado. Mas também uma outra intriga, policial, que começa a ganhar corpo à sua volta e lhe vai tornar a vida mais perigosa.

Esta narrativa é bastante directa, sem grandes rodeios. A acção avança inexoravelmente, quase numa pura sequência de causa-consequência, adensando a trama e os escolhos que obstaculizam a vida de Diana. Há suficientes desvios desse foco directo em Diana para alargar o contexto social e humano, adensar o substrato de onde ela emerge e do qual se deseja libertar, ou pelo menos, para se ser mais correcto, em relação ao qual ela deseja sentir pelo menos algum grau de autonomia e controle. No entanto, se a leitura de Copacabana nos poderá dar acesso a uma certa realidade social brasileira, e se poderiam tecer comentários e elogios à sua atenção para com esse mesmo tecido, não parece ser propósito dos autores arvorar o projecto enquanto gesto político. Haverá esses contornos, sem dúvida, sobretudo naquela cidade, Meca da prostituição, mas o desejo narrativo é mais focado na intriga, límpida e sem complexos.

A qual, naturalmente, vai moldando e tornando a personagem de Diana mais complexa, rica e viva. Se alguns dos outros títulos abordados nesta brevíssima lista, ou outros projectos anteriormente apontados neste bloco brasileiro (e mais além), têm figuras femininas em funções mais ou menos subsumidas àqueles papéis clássicos da “vítima”, “apoio moral” ou “interesse sexual”, e pouco mais, Copacabana elege Diana como a grande figura central, e é ela quem emerge como vencedora. Nem sempre é ela capaz de garantir de imediato os seus desejos e propósitos, além de que está numa posição económica e social subalterna, assim como actancial, mas vemos o seu tentativo combate, as quedas constantes e acima de tudo a sua impossibilidade de desistir, até ao esperado final feliz, que não deixa de ser genuíno, e é garante da sua completação enquanto mulher.

O desenho de Odyr é feito de esboços a largos traços de carvão ou pincel meio-seco, através do qual as figuras e os espaços são talhados em bruscas curvas e ângulos. Existem afinidades com monstros tais como Sampayo e Muñoz, pela mesma atenção para com o rés-do-chão dos ambientes nocturnos das grandes cidades e um esculpir de sombras para chegar a elas, mas haveria outras referências possíveis de arregimentar para se encontrar a tradição de Copacabana. Uma possibilidade, por exemplo, é Jaime Martín, que com Sangre de Barrio também criou uma saga urbana dos “vencidos”, num contexto drasticamente diferente.

Seja lido como retrato de uma realidade social disfarçado de intriga policial, ou como uma aventura pessoal de uma Borralheira, Copacabana é um bem sucedido exemplo de como a linearidade é por vezes um caminho sólido.

Matiné. Marcelo e Magno Costa e convidados (Polvo)
Este pequeno volume é constituído por três curtas, apetece dizer, metragens, já que é por demais informado por uma cultura atreita, ela mesmo re-informada, ao fenómeno Grindhouse. A ideia de recuperação de géneros populares obsoletos, abarcando as suas características mais sublinhadas e exagerando-as ao ponto de um prazer epidérmico, uma titilação constante. Assim, o que Matiné nos apresenta são três histórias movidas por uma ideia singular, violenta, ultra-estilizada e onde a vingança é o coração da moral.
Todas elas têm como personagens principais homens que procuram exercer uma justiça vindicativa sobre os vilões, e em todos os casos a causa dessa justiça é uma mulher. Um assassino por contrato, um pai desesperado e um justiceiro movem-se em paisagens que poderiam ter lugar um pouco por todo o lado, pejado de bares de má fama, clubes privados, quintas rurais abandonada e estradas perdidas. Se em todos os casos, como é expectável, a “justiça” é atingida, isso não significa que não haja outros atropelos de permeio, que tornam essa noção muito elástica para além daquela do estado de direito, mas que alimenta de forma precisa estes mesmos territórios.

Uma estratégia estilística interessante em cada uma destas histórias, e que as une num gesto similar, é o facto de existirem artistas convidados para tomarem conta de uma sequência no interior da história. Todas elas são escritas por Magno Costa e desenhadas, pelo menos na “linha central”, pelo seu irmão gémeo Marcelo Costa. À vez, as cenas de alucinação provocadas pela droga, uma cena particularmente electrificada pela acção,  a entrada no covil dos inimigos e um flashback são desenhadas por Marcio Moreno, o próprio Magno, Magenta King e Dalts. Dessa forma, há breves “desarranjos” ou desvios do estilo-padrão da história, e que, nessa economia, quer dar a ver uma percepção particularmente estimulada. Essa estratégia comunicativa é muito eficaz e dá uma camada de inventabilidade gráfica num projecto que, de resto, é bastante linear e simples.

Resta dizer que apenas a primeira história, “O estranho sem nome”, foi a única anteriormente publicada, precisamente como Matiné, tendo sido criadas para o volume d Polvo as duas seguintes, “O velho” e “A mariposa”. Além do mais, como notarão os leitores, o texto está escrito de acordo com o português europeu, uma vez que o “sabor” das histórias – ao contrário dos absolutamente localizados Copacabana e Tungstênio – é mais “americanizado”, isto é, popular.

Parafusos, zumbis e monstros do espaço. Juscelino Neco (Veneta)
Desta pilha de livros, este é o mais espatafúrdio de todos, abraçando sem qualquer pejo e vergonha o absurdo do mergulho que faz numa série de mecanismos que bebem da cultura popular para criar uma acção de alta octanagem através de cenas de combate ultra-violento ao ponto do disparate, criaturas alienígenas cujo objectivo parece ser tão-somente fazer apostas de luta entre seres humanos, e muitos outros pormenores humorosos. Se Takashi Miike não está a espreitar pelas esquinas destes espaços, muito nos surpreenderia.

A própria premissa do livro remete para um ridículo à la Edgar Wright. O protagonista, chamado Dolfilander (pois o pai era fã de filmes de acção, e de Dolph Lundgren), tem um acidente e acaba por entalar um parafuso no seu próprio lobo central, ficando com a cabeça à vista na testa. Esse acidente leva-o, à trouxe-mouxe, a entrar num estranho mundo feito de espiões, intervenções cirúrgicas que lhe garantem “super-poderes”, contacto com estranhas criaturas e missões secretas, mas não o salvam jamais do mais puro ridículo. Mas esse ridículo é, na verdade, o sumo que engrossa o prazer da intriga.

Introduzida a acção em retrospectiva através de uma carta deixada pelo protagonista, a acção principal é mostrada com rapidez e clareza. Obedecendo quase todas as páginas a uma directa grelha 2 x 3, com alguns desvios mas igualmente regulares, não há nada que nos obstaculize a espontaneidade e corrente da leitura. Curiosamente, e ao contrário da materialidade de luxo de Jockey, este outro livro, com a excepção do tratamento de cores eléctricas da capa, é algo mais pobre, parecendo tido sido impresso em versão digital mas com ficheiros de baixa resolução. Isso impede que as linhas do autor, que imaginamos prístinas e límpidas, apenas judiciosamente ocupadas com cinzentos, apareçam sólidas. São antes trémulas, pouco nítidas ou mesmo “sujas”, por vezes impedindo até uma leitura mais fluida, exigida pela narração.

O diabo e eu. Alcimar Frazão (Polvo)
Totalmente desprovido de matéria textual ao longo da narrativa, se excluirmos o título, os sub-títulos, outros elementos paratextuais e alguns textos diegéticos (inscrições geográficas, uma data numa moeda, etc.), este livro conta-nos uma pequena parte da vida do guitarrista Robert Johnson. Se existem algumas versões, inclusive em banda desenhada, do seu famoso acordo com o demónio, que lhe afinaria a guitarra para o transformar no grande pai dos blues norte-americano, Frazão quer criar uma narrativa aqui em torno de outros acontecimentos, desviando em parte o acordo e o papel de Johnson face ao mal na sua vida, assim como à “redenção” que a música lhe poderia proporcionar.

O autor brasileiro cria assim uma curta narrativa que se centra na vida familiar de Robert, na qual a mãe se amanceba com um homem misterioso que rapidamente começará a abusar dela de várias maneiras. A tensão esperada do pequeno rapaz é construída até ao crime que lhe cingirá a vida ao caminho da mão esquerda. É como se o autor desejasse redimir o pacto do guitarrista de uma forma desviante do mito. No entanto, haverá uma mancha qualquer que lhe persiste em vida, daí que a “faixa adicional” do livro – a metáfora é do próprio autor – vejamos o preço pago pelo artista dos blues. A moral da história fica assim conspurcada e ambivalente.

É quase inegável que Frazão terá como Jae Lee uma referência incontornável. Há um mesmo tipo de abordagem à figura, em termos de lhes esculpir as formas com várias zonas de textura, pinceladas em padrões sólidos, se bem que haja alguma diferença em termos de ocupação das zonas negras, uma certa exploração por perspectivas e posições físicas algo icónicas (uma grande preferência por posições frontais de queixos erguidos, mas onde  Lee é mais repetitivo, Frazão é mais titubeante e menos constante), isolando a acção num momento hierático, e optando muitas vezes por composições de página que são mais simbólicas do que propriamente realistas ou dinâmicas, se bem que essas dimensões não estejam, claro está, ausentes. Há uma maior concentração da figura de Johnson na sua relação com a mãe, o estranho padrasto que se assemelhará a uma ideia geral do diabo, e a outros representantes da esfera do fantástico, mais ou menos espectaculares conforme a curva de aproximação do protagonista do seu fim trágico.

Todo Bob Cuspe. Angeli (Quadrinhos na Cia.)
Para os leitores portugueses de uma certa geração, Angeli é um nome que se vem associar a uma espécie de revolução na percepção da banda desenhada brasileira. Em Portugal, a esmagadora maioria das revistas vindas do Brasil eram os gibis da Abril e Morumbi, logo alimentando a ideia de ou traduções de material estrangeiro, norte-americano, ou das séries infanto-juvenis mais clássicas. Mas com a chegada da revista Animal, houve uma expansão à variedade apresentada também nos pontos de venda do país, e depois, com a Chiclete Com Banana, mas também Piratas do Tietê, Geraldão, Níquel Náusea, a Circo, etc., houve um choque frontal com toda a nova geração punk da HQ então contemporânea. Esses títulos mudaram a paisagem editorial no Brasil (nos grandes centros, pelo menos), mas tiveram também grande influência em Portugal.

Discutivelmente, terá sido a obra de Laerte e de Angeli aquela que agregou maior sucesso crítico e fãs, por serem autores capazes de navegar em formatos e géneros diferentes de histórias, desde as breves tiras humorísticas e sempre certeiras (em si mesmo, uma dificuldade e um êxito), como também por construírem personagens totais. No caso de Angeli, a Chiclete Com Banana surgia como uma espécie de veículo louco e pronto a apresentar-nos toda uma galeria de personagens completos e idiossincráticos. É impossível, para quem leu, não conseguir identificar em dois ou três traços Rê Bordosa, os Skrotinhos, o macho Bibelô, Walter Ego, Tara Mara, Wood & Stock, Rampal o Paranormal, e uma série de outras de vidas mais curtas. E, claro, Bob Cuspe.

Se bem que aquela galeria de personagens poderia ser vista como um genial e estranho espelho estilhaçado de um Brasil contemporâneo, é possível que esta personagem em particular fosse a expressão mais profunda do autor em reagir a toda uma série de transformações sociais que ocorriam nos anos 1980. Saindo de um cultural e politicamente debilitante regime militarizado, a década de 1980 viu uma sedenta e desregulada explosão de um neo-liberalismo que foi criando excessos (aliás, a palavra “excesso” é utilizada bastas vezes para caracterizar os anos 1980 em vários países do mundo ocidental, e além dele, não sem razão). Bob Cuspe era uma espécie de resposta epidérmica e imediata, independentemente dos argumentos empregues pela “outra parte”. Sejam políticos interesseiros ou genuinamente preocupados, fossem pessoas religiosas ou bem-pensantes, empregados ou não, Bob Cuspe responderia com uma escarreta poderosa. Esta página que mostramos é não apenas uma das melhores e mais memoráveis peças, mas como uma máxima que deveríamos ter em mente toda a nossa existência, como um epigrama de Diógenes ou Lao Tsé.

Supostamente, este projecto da Companhia das letras seria reunir todo e qualquer material associado à personagem, de certa forma construindo uma espécie de edição arquivística da mesma. Também Rê Bordosa foi alvo de um tomo, e talvez outros se sigam (já para não falar de trabalho editorial mais recente). Por toda a razão da circulação das revistas e a dificuldade em manter um livre acesso às mesmas, a re-edição em tomos que permitam um outro tipo de arquivo e memória é importantíssimo. E não deixa de ser curioso ler de atacado, uma barrigada mesmo, toda esta vida de uma personagem. Esta concentração leva a que pensemos nos significados que ela assume, as suas transformações internas, e em que medida ela é coesa mas também flexível.

Encontraremos aqui as tiras, claro está, mas também as histórias ligeiramente mais alargadas e pensadas em composição de página, assim como muito do outro material gráfico associado à personagem, e até mesmo materiais adicionais e preparatórios. No final do volume, de um modo algo destoado, acrescentam-se algumas das mesmas histórias, mas em italiano, o que deve servir para mostrar a sua tradução. Porém, não bastaria uma menção? Além disso, os materiais textuais são algo confusos e espalhados, e não existe um aparato crítico nítido e completo (datas de publicação do material, um índice cronológico, etc.). Isso impede, por exemplo, de compreender os cruzamentos com outras personagens e a tal flexibilidade que indicámos acima. Ou entender, por exemplo, em que medida é que responderia a acontecimentos hodiernos. Poder-se-ia dizer que se assumiria a cultura punk igualmente na edição do livro, é certo, mas estamos em crer que providenciar os novos leitores com uma organização crítica do material não seria contra-producente para o entendimento do papel desta personagem na paisagem de Angeli, como das HQ brasileiras.

Nota final: agradecimentos às respectivas editoras, pela oferta dos livros. 

1 comentário:

JoseFreitas disse...

Quanto ao que o Angeli toca, é de referir que a Devir (Brasil) chegou a editar compilações de várias das personagens do Angeli, com trabalho editorial bastante bom, incluindo o completo dos Piratas do Tietê, Luke &Tantra, Rê Bordosa e Skrotinhos (e a Devir Portugal chegou a lançar uma série completa de 12 números da Chiclete com Banana - não a mesma que a original, mas contendo material de Angeli e Laerte).