17 de agosto de 2015

Chico-Chorão. Maurice Sendak (Kalandraka)

Em 1970, Sendak criou duas pequenas animações que integraram a versão norte-americana (e original) do programa televisivo e pedagógico Rua Sésamo. Ambos eram dedicados a dois algarismos, o 7 e o 9. Se a primeira, “Seven Little Monsters”, daria origem a uma série de livros explorados por outros autores, o segundo, “Bumble-Ardy” daria origem a este mesmo picture book, agora publicado em português, no seguimento da publicação da obra deste autor maior desta área, como já havíamos discutido. (Mais) 

Se o progresso textual nos pode parecer tolo, qualidade que é mantida pela tradução de Carla Maia de Almeida, isso deve-se aos objectivos contraditórios do programa original – a educação pela via lúdica e por vezes trapalhonça mesmo – e do autor, que de uma forma ou outra “absorve” os projectos para os seus temas recorrentes. Repare-se como da criança original que convida porcos para o seu aniversário, o livro ganha contornos ligeiramente mais lúgubres, apesar de disfarçados pela celeridade da história e pelo humor incessante: este Bumble-Ardy suíno, ou na sua versão portuguesa incontestável e segura, Chico-Chorão, é órfão de ambos os pais, transformados em chouriço (uma leitura abusiva quase que poderia explorar vias alucinadas, de projecções do Holocausto – nada estranho na obra de Sendak – nesta família de… porcos), e encontra no seu nono aniversário (alguma cerimónia especial, passível de interpretações simbólicas?) uma ocasião para a libertação de todas as regras. Não queri isso dizer que se chegue a bom porto.

Para além do tema da criança isolada, com um qualquer grau de afastamento dos seus progenitores ou adultos supervisores, para que possa mergulhar num qualquer episódio caótico de rebeldia, folia ou funçanata, encontraremos também presentes o tema recorrente da comida, especialmente aquela farta e luxuosa que representa um fausto e posição social. A ideia de se cruzar com “convidados”, “amigos”, “companheiros” ou pura e simplesmente “estranhos” que vêem desarrumar o funcionamento expectável e normativo da sua vida é igualmente repetida. Para além dos seus livros mais famosos, também em Kenny’s Window e One was Johnny, os protagonistas têm de lidar com súbitos comensais em fúria. Esses episódios servem sempre para colocar em crise (ou em maior crise, as mais das vezes) a relação com o familiar, neste caso com a tia, mas, como soe, tudo acaba em bem, com uma reconciliação a um só tempo clara, mas sempre deixando alguma pontinha de melancolia. Neste caso em particular, testemunhamos a fúria, sim, mas da figura adulta, terrífica.


Quanto ao estilo, estamos aqui perante igualmente uma mão-cheia de formas recorrentes: as páginas começam com as figuras contra uma paisagem e localizações relativamente destacadas de fundos brancos, para depois se fecharem em breves molduras que estabelecem a objectividade das circunstâncias, dando depois lugar a uma procissão que ocupa progressivamente o espaço visual. Figuras isoladas primeiro, depois o regresso das molduras (e repare-se como o propósito pedagógico – ensinar o algarismo 9 – cai numa sobre-exposição alucinada e até quase-macabra, podendo-se ler cada personagem como que representando uma área sombria), e finalmente – tal qual como em Onde vivem os monstros – três spreads a “sangrar”, totalmente ocupadas por imagens detalhadas, e “silenciosas”, se excluirmos os textos escritos, ainda que esse “silêncio” corresponda precisamente, na nossa imaginação, à maior algazarra possível.

Este livro tem construções de composição que permitem uma leitura dupla: a linear, da “narrativa”, e aquela que se perde nos pormenores apresentados, nos pequenos recados e conselhos, nas linhas por dizer de cada personagem. E, como sempre, na Lua, criatura mutante ela mesma que vai acompanhando a acção de longe mas nela participa de alguma forma.

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro. 

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