2 de junho de 2015

Batman. Earth One Vol. 2. Geoff Johns e Gary Frank (DC Comics).

Planetary/Batman: Night on Earth, de Warren Ellis e John Cassaday, é um exercício muito curioso de meta-textualidade para pensar a maquinaria ficcional específica da banda desenhada de super-heróis norte-americana, com as suas linhas de continuidade, feitas de nós de modelos cambiáveis. Nessa história, os arqueólogos da imaginação deparam-se com várias versões de Batman, acompanhando as facetas com que foi sendo burilado ao longo do tempo, desde o final dos anos 1930 até à contemporaneidade, passando pela possibilidade dos Elseworlds. Mas quando finalmente se aproximam do “conceito central” dessa personagem, eles apercebem-se de que ele não é nem um “polícia” nem um “vigilante”. Elijah Snow não tem a palavra certa. (Mais) 

É possível que estejamos enganados, mas Batman é uma dessas personagens que exerce um fascínio estranho mesmo para além do próprio conceito de super-herói. Haverá fãs desta ou daquela outra personagem, mas Batman não se esgota apenas no interior desse território genérico, ou estilo de banda desenhada. Talvez seja por essa mesma razão, aliás, que mesmo na possibilidade de criar variadíssimas versões, o tal prisma de que falámos várias vezes, o de Batman se preste a uma flexibilidade moral, actancial e estilística bem mais alargada do que a de qualquer outra personagem advinda da mesma safra.

Daí que um princípio de leitura destes livros – títulos de super-heróis - é que a forma de nos aproximarmos deles não é concentrada nem individualizante no título em questão. Isto é, se bem que este tipo de generalizações seja logo à partida falha, por razões estruturais, poderemos dizer que a leitura de um novo trabalho ou se faz no interior de toda a cultura de super-heróis ou se faz fora dela. É verdade que ler determinados autores (Baudoin, Mendes, Sousa Lobo, Bechdel, Tsuge, Alagbé, Hanselmann, Feuchtenberger, etc.) na consciência das suas obras “contínuas” recompensa cada novo passo, mas convenhamos que todo e qualquer trabalho, mesmo desses autores, tem uma autonomia textual drasticamente diferente daquela que informa e constitui a própria possibilidade de narrativa modelar, modular e de variação com que os títulos de super-heróis, e mormente aqueles pertencentes às mega-estruturas ficcionais conhecidas por “universos”, concorrem.

No entanto, como saberão todos os leitores atentos destes mesmos universos, é graças a essa complexidade constante que os próprios contornos da coerência dos projectos se vão tornando cada vez mais difíceis de gerir, o que leva às recorrentes “crises” e transformações dos mesmos universos – algo a que já havíamos prestado atenção quando discutimos este território genérico. No preciso momento em que escrevemos estas linhas, a Marvel atravessa o seu “Secret Wars”, que levará a um reboot do(s) seu(s) universo(s), e a DC ainda continua a tentar gerir o seu confuso New 52, Convergence e sabemos lá o que mais. Logo, na verdade, e de um ponto de vista estritamente pessoal, mesmo que por vezes essas confusões e novelos tenham os seus nódulos de interesse (Final Crisis e, mais recentemente, The Multiveristy, ambos escritos por Grant Morrison, ou essa espécie de meta-comentário que foi Supreme: Blue Rose, de Warren Ellis e Tula Lotay, onde se explora um tema idêntico àquele previsto em Night on Earth), a esmagadora maioria dos títulos atascados na “continuidade” são profundamente aborrecidos, por serem formulaicos, pouco inspirados e, muitas vezes, francamente pobres em termos da linguagem possível da banda desenhada, mesmo no seio do mainstream. Daí que a atenção se torne mais vincada quando se tratam de títulos relativamente isolados ou projectos que trabalham fora dessas balizas. Como é o caso de Earth One.

Geoff Johns é um desses autores extremamente adorado pelos fãs hardcore de banda desenhada de super-heróis, e cujo currículo se espalha por praticamente todas as personagens-chave da DC, mas não apenas. E se houver alguma característica a que se possa reduzir a sua multifacetada produção, seria a da “acção épica”, e da introdução de forças cósmicas, o que parece ser um elemento comum deste género, mas em Johns sempre esteve num grau de energia particularmente intenso. Daí que a forma como ele parece explorar outro tipo de intensidade, mais realista, mais de lume brando, com Batman (uma personagem com que apenas esporadicamente trabalhou), é bastante surpreendente e com resultados, parece-nos, suficientemente bons no interior da economia do que se propõe. Sendo este volume uma continuação da mesma premissa e narrativa iniciada no anterior, remetemos ao texto que lhe diz respeito, concentrando-nos somente em alguns pontos deste novo livro.

Ao contrário da trilogia dedicada ao Super-homem no mesmo enquadramento, escrita por Straczynski (longe dos seus melhores trabalhos), que apresenta sucessivos episódios quase indiferenciados entre si em termos estruturais e emocionais, confusos em termos de acção, e por demais claros no seu maniqueísmo de pacotilha, Johns (e Frank) gerem os seus passos de um modo mais calmo. Não há dúvida, porém, de que há um avanço em termos diegéticos. Se o primeiro volume tinha na capa a promessa do que surgiria na forma de Batman a partir da tragédia do jovem Bruce, este segundo coloca a realidade do vigilante contra as várias personagens com quem não apenas se relaciona e influencia como também criam uma espécie de patchwork que contribuem, igualmente, para a fabricação da sua própria personalidade. Como é de esperar, esses novos passos consistem em todos os elementos expectáveis: desafios cada vez maiores e extremos, a re-introdução de personagens “clássicos”, uma tensão crescente entre a relação de Batman com os seus supostos aliados e a cidade em geral, o próprio entendimento da sua missão e limites.

Mas ao contrário também de uma série desastrosa como Gotham, que praticamente é um insulto à inteligência dos seus espectadores, e ao bom gosto da escrita e desempenho de actores, a introdução das personagens é feita aqui precisamente nessa via: a de dar a ver personagens, personalidades relativamente desenvolvidas e com vozes próprias e no próprio processo do seu crescimento. Não deixa de ser curioso mostrar Batman não apenas a falhar em alguns aspectos físicos (um combate, condução agressiva, abrir uma fechadura, etc.) mas no próprio labor intelectual necessário à investigação policial. Num momento, ele chega mesmo a dizer que não é função dele ser detective, o que se torna risível na expectativa dos leitores, que projectam aí o futuro eventual desta personagem (ou desta versão da personagem). No caso presente, encontraremos ainda Killer Croc, Enigma, Catwoman e outros nomes reconhecíveis, nem todos cumprindo o mesmo papel que ocupam no “universo de continuidade”, mas por isso mesmo oferecendo facetas novas e curiosas. Croc, por exemplo, não surge necessariamente como um vilão tremendo, mas sim alguém que merece a nossa simpatia por se encontrar em vários mal-entendidos, surgindo então como uma variação curiosa. Outras variações, tal como aquela prometida pelo Duas-Caras, é bastante diferente e promissora. É aqui que reside grande parte do prazer da leitura: é descobrir as mesmas coisas mas com as suas diferenças. Mas mesmo que esse jogo se possa repetir (em Elseworlds e tantos outros projectos), a forma como o jogo é cumprido pode ser drasticamente diferente também. O modus operandi de Johns e Frank poder ser visto como “normalizado”, “usual”, sem dúvida, mas não é nem banal nem incompetente.

Johns acaba mesmo por, dando continuidade aos graus de realismo – se aceitarmos que alguém se vestiria de morcego de cabedal para combater o crime – que foram sendo incutidos sucessivamente por O'Neill e Adams, Miller e Nolan, colocar algumas questões prementes neste universo de referências, como já o fizera no volume anterior. Por exemplo, os vilões são desmistificados no seu aspecto mais fantástico, com Enigma surgindo como pura e simplesmente um criminoso interessado em disfarçar os seus verdadeiros intuitos sob uma capa aparentemente criativa. De resto, tal qual o Joker de Nolan se auto-proclamava um génio do casos apesar de ser o mais completo e obsessivos dos planeadores. E não deixa de ser algo vexante que alguns dos enigmas apresentados jamais tenha resposta, colocando o ónus total nas mãos dos leitores em compreenderem as soluções do que ficou por responder. Mais, os contornos das consequências políticas do volume anterior continuam, aumentando assim o escopo da acção do herói, que não fica apenas pelo mais chão dos crimes.

Frank continua a sua competência máxima, se bem que possamos falar de alguma exaustão ao encontrar uma tipologia de expressões que se repete vezes sem conta mesmo no interior de uma só obra. Porém, isso é algo inevitável na banda desenhada ela mesma, e o grau leve de melo-dramatismo das expressões que Frank incute nestas personagens é apropriado ao género, redimido pela sua quase perfeita representação das posições dos corpos, sobretudo nos momentos descontraídos, e de interacção entre as personagens (como o primeiro encontro entre Batman e Croc). A generalizada cor glauca que atravessa todo o volume não destoa mas tampouco torna o projecto mais rico. Temos novamente um clássico e eficaz balanço entre vários tipos de composição, da prancha mais regular às mais oblíquas linhas para incutir acção, sequências “sem som” para aumentar a urgência – ou dar a ideia de montage -, splash pages e double spreads, etc. Se bem que também aqui possa haver algum recorrente mecanismo – três splash pages centram-se na “obra” de Enigma – a leitura rápida e apelativa disfarça essa urgência.


Tratar-se-á Batman. Earth One de um desses projectos que reescreverão a mitologia da personagem? Não nos parece. Substituirá o papel fundacional que outros títulos porventura possam ter nessa mesma história (a nosso ver, como Batman: Year One ou The Killing Joke)? Duvidamos. Mas trata-se sem dúvida de um desses gestos que, contribuindo para mais uma diferença não-canónica, um desvio que trilhará o seu próprio caminho, confirma o tal fascínio que a personagem exerce nos seus leitores e ainda na estranha potencialidade narrativa aberta que este território permite.  

10 comentários:

Loot disse...

Sou dos que acaba por ir mais para estes actos isolados do que os inúmeros eventos - salvo excepções - como os mencionados (secret wars, etc) que exigem outro nível de atenção e que, da minha experiência, até têm um retorno menor.

O Earth One poderia afastar leitores no sentido de ser MAIS uma história sobre a origem do Morcego. Pior, quando saiu o primeiro volume pouco tempo depois temos nova origem por Scott Snyder no título principal... Pessoalmente o Johns pode ser uma estrela na DC (e dou-lhe crédito, principalmente no Green Lantern), mas não o achava grande escritor da personagem Batman. Está melhor, contudo, e este Earth One, como Batman de um outro universo, é bom. Não é um Ano Um - totalmente de acordo - mas também não tinha de o ser.

Por acaso, não estava a pensar pegar no vol. 2 mas o texto mudou-me as ideias. E o Gary Frank à partida é sempre muito bom neste registo.

Gabriel

Pedro Moura disse...

Caro Gabriel,
Não sendo eu um fã do Johns - no mainstream hardcore prefiro outros autores -, acho que este livro é uma versão competente. Eu sei que há quem goste muito do Snyder, mas vejamos: uma das coisas que exerce grande fascínio sobre determinadas personagens, nomeadamente o Joker ou o Wolverine, é o facto de NÃO sabermos nada sobre as suas origens reais, ou pelo menos não estarmos seguros. É graças a essa ambivalências que vamos nós preenchendo as lacunas com várias possibilidades e, a partir delas, "engrossar" as personagens. É por isso que "The Killing Joke" funciona tão bem, ao criar uma ilusão de desvendamento, mas sublinhando a continuidade da ambivalência. Claro que, enquanto leitor alimentado nos anos 1980 por estas coisas, também adorei "A arma x" e coisas quejandas, que lá foi levantando o véu, mas tenho em mim que a forma nítida e definitiva como se tem resolvido as origens destas personagens recentemente retiram-lhe algum do charme. Na verdade, banalizam-nas.
É também curioso que, desde "The Dark Knight Returns" que se deu início a um lento mas paulatino edifício de explicação, quase passo a passo, da origem do Batman: Miller introduziu a cena do assassinato, e desde então essa cena tem sido revisitada por quase todos os autores sempre com novos elementos. Mas chega a um ponto que não podemos desdobrar mais sem embater contra uma sensaborona explicação. Daí que partir para versões alternativas, Elseworlds, What ifs?, etc., pode criar novas narrativas interessantes. É o caso de "Earth One", a meu ver. É genial? Não, nem perto, mas é bem feito, bem construído, inteligente na forma como baralha os elementos conhecidos, e o Gary Frank é, bom, talvez esteja a ser um fã acrítico, mas gosto muito da forma "calma" como que ele trabalha estas personagens (também gosto, na mesma lavra, do B. Hitch, algo mais "octanado", ou o F. Quitely, que abusa dos "esteróides", mas são ambos claros...).
É exactamente o contrário de "Superman: Earth One". Se estes são composições melódicas, com zonas de baixa intensidade mas tensas e com súbitas pulsões, criando um ritmo ameno, "Superman" é sempre "épico" ao ponto de se tornar "patético". "Patépico"?
Abraços,
Pedro

Loot disse...

Completamente de acordo. Principalmente no que toca ao Joker. Podem haver muitos críticos dos filmes do Nolan, mas lá que o senhor soube pegar na personagem soube. O mistério em torno do seu passado é uma grande força. Por isso é que o Joker sempre me pareceu o maior inimigo de Batman, porque este passou a vida a tentar estudar a mente criminosa e de repente encontra alguém que não compreende. Nesse sentido Moore foi triunfal conseguindo providenciar um passado interessante e ao mesmo tempo tirá-lo. Ou melhor, nunca é realmente provado que a história é real. Claro que posteriormente a DC edita coisas como "The man who laughs" (título nada inocente :D ) que fazem da história de Moore, à partida, uma verdadeira. Mas aí o autor de Watchmen não tem culpa.

Eu gostei quando o Snyder criou o Court of Owls, conceito interessante que me faz lembrar uma maçonaria que até ao vigilante de Gotham passou despercebida. Já a origem - o Year Zero - tem alguns problemas e como faz várias referências ao trabalho de Miller, deixa-nos mais com uma ponta de saudosismo na memória do que entusiasmo pela aventura em si. Não era bem isto não... Mas é verdade que esta personagem e o seu universo continuam a ter qualquer coisa que fascina (o batman tb deve muito ao leque de vilões).

O Superman Earth One nunca li, pelo que escreveste, acho que vou continuar por aí.

abraço

Pedro Moura disse...

É isso mesmo. Mesmo respeitando o Brubaker, as decisões de "ancorar definitivamente" as coisas não apenas retiram poder à obra anterior como até provam que não são capazes de criar um caminho próprio (coisa que, a seu modo, este "Earth One" consegue). Quanto ao Snyder, era preciso discutir mais, pois há muito que se lhe diga, mas eu acho um bocado patético. Mas enfim, 30 anos a ler episódios em que "tudo mudará para sempre" de 6 em 6 meses insensibilizam-nos para essas ginásticas... Quanto ao leque de vilões, não pode ser apenas isso, porque senão a ideia original ainda hoje tinha o mesmo sucesso: Dick Tracy. Acho que é o fato de cabedal, com ou sem mamilos. Ou então, "It's the car, right? Chicks love the car"...

JoseFreitas disse...

É por essas e por outros que o Batman parece emergir sempre como uma das mais poderosas personagens de super-heróis, porque aceita bem o contínuo recontar de histórias sobre o mesmo tema, sempre com variações, e sempre empurrando para o lado dele como símbolo, ou arquétipo de algum tipo de personagem. Com o Batman pelo menos, muitos argumentistas (e sobretudo a própria editora) aceitaram o seu lado múltiplo- Devo dizer que gostei do Earth One, mas sem adorar, e acaba por não se erguer ao nível que poderia ter atingido. Pedro, leste o Whatever Happened to the Caped Crusader do Gaiman?Juntei-o ao Batman and Son do Morrison na colecção DC da Levoir, e acho que é um dos melhore álbuns possíveis sobre este lado multifacetado do Batman.

https://m.facebook.com/notes/jose-hartvig-de-freitas/batman-para-sempre/655736517789154/

"Tal como Morrison, Gaiman parte dum princípio simples e que presta homenagem a toda a mitologia do Batman: a ideia de que todas as histórias publicadas são, de algum modo, reais, que todas elas existiram de facto na continuidade da personagem. Mas como é que isso é possível? Como é que se consegue unificar as histórias do Batman original, com as da Segunda Guerra Mundial, com o tratamento que Neal Adams lhe deu nos anos 70, e com o Batman negro e terrível de Frank Miller em O Regresso do Cavaleiro das Trevas, e com todos os outros Batmans dos últimos setenta anos? Unificam-se na morte, e é esse o segredo que é revelado a Bruce Wayne na história, e mais uma vez a ligação ao evento original, criador, da morte dos pais, é explícita."

Pedro Moura disse...

Olá, Zé. Tens razão, e esse encontro "na morte" é bem visto. Mesmo assim, não sou o maior apreciador do "Whatever happened..." que não se decalca na história do Moore e Swan sobre o Superhomem (a qual lida apenas com uma fase: a da Silver Age), mas se espraia nessas fases todas. O Morrison, nesse aspecto, sabe navegar um pouco melhor. O Gaiman quer fazer uma espécie de vaudeville, mas pergunto-me se é assim tão bem sucedido com isso (sobretudo porque não suporto a arte do Kubert). Seja como for, é uma pequena gema, com essas facetas todas juntas. Falta apenas é o Batman-Zebra, ou aquele que dormia na mesma casa do Robin... ah, pois.

JoseFreitas disse...

Sim, o Morrison está muito à frente, por isso o meu texto é mais sobre o Batman and Son do que sobre o Whatever Happened... porque o Batman and Son foi o primeiro tijolo no imenso e fantástico edifício que o Morrison construiu do Batman. Ele foi o primeiro a fazer aquela "quadratura do círculo" que era pegar em TODAS as histórias do Batman e transformá-las em "canónicas": o MXPTLQ e o Batmite e o Batman no mundo extraterrestre como alucinações psicadélicas de experiências de isolamento sensorial, as fases psicológicas do Joker e as suas mudanças de personalidade e aquele momento incrível - e brilhante - em que ele QUASE se transforma num super-heróis, etc... Isso foi o momento tremendo do Morrison, embora... o Gaiman consegue em dois números fazer uma espécie de resumo poético da "ideia" daquilo tudo (e tenho pena de que não gostes do daquele Kubert, eu não adoro mas não desgosto).

Só tenho pena não ser viável fazer uma colecção Batman do Morrison em cerca de 10 a 12 volumes, com tudo,do RIP à viagem no tempo ao Regresso do Bruce Wayne ao Batman and Robin e ao Batman Inc.!

Correndo o risco de puxar demasiado a brasa à minha sardinha, deixo-te com mais dois textos meus sobre a obra do Morrison, que continua a ser o melhor desconstrucioista, e reconstrucionista, dentro do género dos super-heróis.

"...Mas por mais que Terra Dois reflicta muitas das preocupações pós-modernas e desconstrucionistas da história de super-heróis moderna, e que ela constitua uma reflexão meta-ficcional sobre elas, é ao mesmo tempo um tour de force maravilhoso: restaura a nossa fé nos clichés da história de super-heróis, permite-nos continuar a aceitar o pressuposto "ingénuo"de que nestas histórias o Bem triunfa sempre, e reconcilia-nos com isso,mantendo a suspensão de cepticismo que é o garante da dimensão mítica destas histórias, ao dar-nos uma explicação meta-ficcional para esses pressupostos, e ao permitir uma reflexão sofisticada e filosófica que "desculpa" a ingenuidade destas histórias! Como diz Julian Darius na sua análise do livro, Terra Dois permite "que os leitores deixem de necessitar que os heróis percam uma luta de vez em quando, para poderem ser mais realistas, e leva-os a reflectir sobre as implicações desses mesmos heróis serem invencíveis, uma reflexão que não é menos sofisticada!..."

https://m.facebook.com/notes/jose-hartvig-de-freitas/a-liga-da-justi%C3%A7a-para-al%C3%A9m-do-bem-e-do-mal/650449138317892/?refid=21

"...Grant Morrison regressava assim ao tema que lhe é mais caro, o da imortalidade dos seus heróis preferidos e da sua perenidade como ideias, ou mesmo ideais. E a sua abordagem foi dupla. Por um lado, afirma mesmo a imortalidade do Batman como ideia no próprio universo em que ele existe. Bruce Wayne não foi morto, foi antes atirado para um passado distante por Darkseid, de onde regressará aos poucos, passando por várias épocas diferentes, e plantando em cada uma delas a ideia dum vingador com a identidade de morcego. Desde a estátua dum morcego gigante que ele deixa numa pré-história distante até às lendas dum caçador de bruxas que acabou por fazer um pacto com um demónio com forma de morcego, e sob a forma de pirata, de cowboy e detective ao longo das eras, Bruce Wayne transformou-se numa espécie de Serpente Ouroboros mordendo a sua cauda, tornou-se ele próprio a sua causa e a sua inspiração e fechou o ciclo, fazendo do Batman uma figura intemporal sempre presente em Gotham. Como diz Alfred a certa altura "Esta região em particular parece ser assombrada por morcegos" [Bats would appear to haunt this particular region...]. Como se Bruce Wayne já estivesse pré-destinado para ser o Batman desde sempre... algo que ele próprio garantiu na sua fatídica viagem ao passado...."

https://www.facebook.com/notes/1073500426012759/?pnref=story

JoseFreitas disse...


Como nota de rodapé, o meu filho (na altura com 10 anos) achou as duas histórias do Batman and Son e do Whatever Happened MUITO boas, embora achasse esta última... bizarra... mas recusa-se a continuar a ler o Batman and Robin. Se o Cirque de l'Étrange já o tinha deixado meio perplexo (e assustado), o Flamingo testou um pouco a sua capacidade de achar piada a uma história tão pesada e terrível!

Pedro Moura disse...

Falar sobre o Morrison, como o fizeste e como o fiz em relação a "The Multiversity" levará sempre a essa conclusão: ele não apenas gosta de super-heróis, como activamente acredita que eles são modelos de comportamento ou ideais para uma melhor humanidade. É interessante jogar algum contraste com outros autores, como Moore, desencantado com o estado actual da indústria (apesar dos nostálgicos "1963" e "Tom Strong"), o Ennis, que espuma raiva em relação a estas personagens, ou o Ellis, algo cínico, no fundo. Depois há os competentes, e que gostam de trabalhar na indústria. E então há o Morrison, louco furioso que os quer arvorar mesmo em algo que ultrapassa a mera indústria e já entra verdadeiramente em território mítico - o que eles NÃO fazem, apesar de da boca para fora toda a gente falar deles como "mitos modernos". É o que dá não compreender verdadeiramente o funcionamento e os mecanismos dos mitos, mesmo até pós-Barthes.
E a forma como ele integrou toda a história bizarra anterior é curiosa, sim, pois elas existem: afinal, são histórias publicadas. E, se me permites, já tinha aventado esse assunto igualmente há uns anos atrás, quando falei de um livro sobre o Morrison. E tem a ver mesmo com uma longa exploração dele, pois a ideia do Joker "sofrer" de uma super-personalidade já vem desde "Arkham Asylum"...
Bom, quanto ao miúdo... atenção aos traumas mais tarde!
pedro

JoseFreitas disse...

O trauma grave para o meu filho seria não ler as histórias do Morrison (e do Ellis, por quem tenho um softspot, porque acho que ninguém percebeu como ele a intersecção entre super-heróis e ficção-científica, e a necessidade de lhe dar uma camada de pintura "relevante", em termos sociais e políticos!