15 de junho de 2015

A Bíblia de Lôá; 2 vols. Dulce Maria Cardoso e Vera Tavares (Tinta-da-China)

Declaração de interesses: tendo sido convidado para fazer parte do júri do Prémio Nacional de Ilustração deste ano, organizado pela Direcção-Geral dos Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas, recebi o conjunto de livros concorrentes. Tendo escrito já sobre alguns deles, cabe-me agora a oportunidade (e responsabilidade?) de abordar alguns dos títulos que me parecem mais interrogantes da sua própria natureza. É o que farei nos próximos dias.

Se no princípio era o verbo, faz sentido que comecemos precisamente por dois livros que desejam revisitar uma certa ideia de origem, de inocência até do acto criativo, mas onde o verbo e a imagem se desenrolam em conjunto. (Mais)

Dulce Maria Cardoso, romancista arguta do nosso tempo e cujos livros escavam algumas das faces incómodas dos sentimentos e da história recente portuguesa, a qual nem sempre é abordada pela memória mais desperta e esclarecedora, revisita com estes dois livros (parte de uma série que terá continuidade) as tradições textuais das religiões judaico-cristãs, utilizando a matéria verbal do dito Antigo Testamento como elemento permutável e cambiável para construir uma nova narrativa, associável a toda uma linha da literatura dita juvenil. Se repetimos o “dito”, dever-se-á o facto de que se aceitamos que esses ou aqueles textos possam ser adjectivados de uma determinada forma (“infanto-juvenil”, por exemplo), essa só pode ser entendida como uma descrição que permite compreender alguns dos mecanismos estruturais, e não enquanto ditame ou limitação determinante nem do seu público nem de uma atitude apriorística em relação ao texto. Servirá este volume como forma de introdução aos contos da Bíblia? Não. [e seria produtivo um estudo comparado com outros projectos que o são de forma clara, como é o caso de alguns concorrentes deste ano ao PNI] Trata-se de uma aventura empolgante da sua protagonista? Não. Tratar-se-á de uma revisão cultural e relativista de uma dos pilares da nossa sociedade? Talvez, mas não de uma forma nem programática nem redutora.

A Bíblia de Lôá centra-se numa jovem menina que, numa tarde, como tantas outras meninas, se põem a rabiscar numa folha branca. Os desenhos, os mundos que aplica com brio e cor, ganham uma vida própria, uma existência tangível, na qual a protagonista consegue mergulhar e, dessa forma, dar uma outra continuidade aos seus esforços de criação. Mas mais importante, isso também lhe permite encetar diálogos com esses mesmos objectos e criaturas criadas, aprendendo talvez a conhecer-se a si mesma nesses actos de resposta. Neste sentido, não nos parece haver grande diferença entre Lôá e o Deus da Bíblia.

Não será com inocência que ao nome da protagonista se preste aos mais convolutos desdobramentos. “Loa”, tal qual, poderá cobrir toda uma série de produções discursivas que tenham a ver com o acto de louvar, o qual pode ser feito, em relação ao recipiente dessas palavras, a um vivo como a um morto, e de forma tão desinteressada como interesseira. Em termos poéticos mais específicos, é também a parte introdutória de uma composição mais alargada e na qual ocorrerá aquele mecanismo retórico conhecido como captatio benevolentiae, isto é, a parte de um discurso em que se diz algo que tente capturar a simpatia do público, a sua atenção e aceitação tácita do que se discorrerá a seguir. Isto é, um acto de pedido de algum amor, que não é senão aquilo que os deuses mais desejam e, talvez, aquilo que o Deus da Bíblia mais procura junto aos seus acólitos, por vezes de modos rocambolescos. Se ligarmos a palavra ao seu correspondente latino, laus, e pensarmos em termos de estrutura textual, é uma simetria elegante também apontar como algumas composições terminavam precisamente com a fórmula Laus Deo, “louve-se a Deus”. Os círculos aqui estão sempre a completar-se.

Mas esta personagem mostra-se logo afastada dessas regras, mesmo ao nível gramatical, já que possui dois acentos gráficos no seu nome (algo que não é permitido na língua portuguesa), a um só tempo incutindo-lhe uma particular presença gráfica mesmo ao nível da verbalidade, ou melhor dizendo, dando um peso e visibilidade gráfica ao seu nome, e provocando uma estranheza a nível fonético que ainda assim remete mais uma vez para o universo de referências a que se reporta. Recordemos como na origem dos nomes divinos da Bíblia judaica encontraremos muitos “Ba'al”, “El”, “Elohim” e derivados. No livro, ainda aparecerá uma figura aparentada à serpente sibilante, a reflectora “Sôssô” e a figura masculina criada, “Êló”, e outra feminina, “Élá”. Tudo isto cria redes intertextuais bíblicas complexas, desde a resposta ensimesmada, repetidora e vexante de Deus para Moisés, no Monte Sinai (basicamente um “Eu sou eu”), às complexas geometrias entre figuras masculinas e femininas que se espraiam nas várias narrativas da Bíblia, explícitas ou não, passando por todos os cumprimentos e saudações que compõem os elementos principais das narrativas.

O encontro entre a ciência literária e a interpretação bíblica é já bastante antigo. Aliás, a verdadeira crítica literária nasce com a hermenêutica, e não admira portanto que se retorne, vez atrás vez, à Bíblia como texto-Ur para desdobrar instrumentos e compreensões que se podem ir alterando graças a toda uma série de factores. O estudo da perspectiva feminina da Bíblia não é tampouco uma invenção nova, e não foi preciso The Book of J, de Harold Bloom, por exemplo, para assinalar os papéis importantes que estão reservados às figuras femininas da Bíblia, mesmo que textualmente, e em termos de poder social, pareçam sempre subalternas face às figuras masculinas. Mas essa é uma discussão que nos afastaria do objecto em si, e a outros caberá uma leitura destes volumes à luz dos instrumentos fornecidos por esta disciplina específica. Seja como for, o traço que devemos ter em conta é o desvio (pequeno? Fundamental?) para uma figura feminina enquanto demiurga e condutora da narrativa, o que em si pode funcionar como fonte de responsabilização e capacitação (aquilo que inglês se chama de empowerment) dos leitores (não é por acaso que usamos o masculino “plural”).

A linguagem em si – primeiro ponto de aproximação - emprega formas simples e sucintas, procurando seguir algumas das estruturas mais simplificadas do Antigo Testamento. Afinal de contas, o número de espaços, objectos e personagens é reduzido a uma cena constrita, a partir da qual a “magia” é a sua desdobragem sucessiva. Porém, é perfeitamente expectável que haja algum escavar a língua para que se introduza algum grau de diferença entre aqueles mitos herdados ao longo de milénios e o estado da linguagem da contemporaneidade. Daí que haja algum jogo de trocadilhos, sobretudo a dois níveis. Em primeiro lugar, e informado de forma óbvia pela Alice de Carroll, sobretudo do segundo livro, algumas das palavras surgem invertidas, e onde os Testamentos remetem às religiões e povos do Livro, Lôá segue o caminho que lhe é ofertado pelo “Orvil”, percorrido pelo “sapil” da demiurga. Por outro lado, algumas palavras são cortadas ou grafadas de maneira a que, se as podemos ler no seu sentido mais imediato e contextual, obrigam-nos também a entender que segundo jogo se pretende sublinhar. Daí que o espaço percorrido seja o do “Para-isso”, o que nos levaria a ler também várias linhas de associação.

Criando o mundo a partir de uma folha em branco do seu caderno ou livro, soprando sobre ele, Dulce Maria Cardoso une o sopro de Yahweh (e outras figuras) ao dos actos demiúrgicos solitários de outros deuses e ainda ao próprio acto de criação a que a escritora e a ilustradora se entregam a cada novo projecto. Mas ao contrário de uma certa angústia ou melancolia mallermiana, Lôá entrega-se antes ao imediato prazer de preencher rapidamente o mundo, não sem dúvidas, mas com uma certa alegria urgente, própria das crianças. É isso o que nos remete, por sua vez, à trilha visual.

As ilustrações de Vera Tavares têm aquela qualidade de achatamento total que se lhe conhece, sobretudo nas capas dos livros que produz na Tinta-da-China, inclusive dos da escritora. A construção das imagens é feita através de manchas semi-geométricas, fragmentadas de cores planas, sobrepostas e interrompidas por pequenos entalhes, também ele simplificados: círculos para os olhos, por exemplo, inscrevendo a autora em toda uma tradição de ilustradores que representa os olhos deste modo, o que cria uma certa distância e teatralidade afastadas do naturalismo. Mas esse passo atrás, digamos assim, do mais imediato realismo, não só é cumprido pela linguagem do texto que vai discorrendo, como por todas as outras estratégias visuais e compositivas: todas as letras, do título ao texto passando pela ficha técnica, é sempre do mesmo tipo, ainda que em tamanhos e cores diferentes, mas encaixando-se nas páginas e coordenadas com as imagens que ocupam todas as duas páginas, ou espraiando-se de uma para outra, como se se repetissem padrões próprios das iluminuras medievais, numa estranha mistura entre a escola irlandesa (em termos de espalhamento do texto e imagem, mas não dos pormenores filigranados e brilhantes), e a espanhola (as cores planas e simples, as figuras algo toscas e hieráticas, mas não a concentração da mancha).

Em alguns casos, a ilustradora opta mesmo por repetir algumas das palavras do texto, mas sem que estas sejam reduzidas neste, criando um outro nível de reflexão e devolução dos ritmos das palavras, dos ecos e dos espelhos. Dessa forma, é como se algumas das palavras ganhassem o mesmo peso dos outros objectos tangíveis na realidade da história, o que não deixa de ser uma consequência “natural” neste mesmo universo narrativo, como vimos.
Leia-se este projecto de uma forma mais espiritual ou mais lúdica, ou preferencialmente em que uma certa consciência cultural mas também transcendental nasça dos jogos, A Bíblia de Lôá é, desde logo, um projecto desconcertante no panorama da literatura (ilustrada) para os leitores mais jovens, sem traços de didactismo mas procurando tocar num ponto mais profundo do entendimento, pela parte mais importante: colocar perguntas.

Nota final: agradecimentos à DGLB, pelo convite e, claro, pela passagem dos livros.  

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