7 de março de 2015

Wuvable Oaf. Ed Luce (Fantagraphics)

Um ex-lutador de wrestling profissional, simplesmente chamado Oaf, retira-se devido a um escândalo sexual com um árbitro. Dessa maneira, ele regressa à sua vida simples e pacata, guiado pelo seu pai adoptivo, a cuidar de um verdadeiro exército de gatos, cada qual com características únicas, e a fazer pequenos bonecos de peluche, atufados com o seu próprio pêlo, que cresce a velocidades estonteantes. Lenta mas seguramente, apaixona-se pelo frontman, Eiffel, de uma banda homocore chamada Ejaculoid. (Mais) 
Como sinopse, pensamos que a que providenciámos é bastante esclarecedora, mas como poderão imaginar não é de forma alguma suficiente para descrever a gloriosa e bem-humorada aventura que o autor tece com a sua personagem. A Fantagraphics tem feito toda uma série de aproximações a um grupo significativo de autores de banda desenhada que tem trabalhado em mini-comics auto-editados, e que vão angariando atenção crítica pelos seus próprios meios, mas que ainda assim ganham uma visibilidade e viabilidade económica bem maior com um selo editorial deste calibre. Se a editora tem um papel preponderante na banda desenhada nos Estados Unidos, as suas acções continuam a trilhar os mesmos processos ainda que adaptados à realidade contemporânea. Ed Luce, o autor de Wuvable Oaf, é então um dos autores que se reúne nessa família alargada.

Existindo sob a forma de todo um conjunto de pequenas publicações, cerca de uma vintena, este volume junta muito do seu material, criando a ideia de um projecto de longo fôlego. Porém, há muitas características da produção original que não se perdem na transposição. Os episódios do romance entre Oaf e Eiffel é a linha principal, por assim dizer, mas de forma alguma o “assunto” do livro nem a única matéria explorada. Construído com uma estrutura complexa, alternando os capítulos com páginas soltas, splash pages, histórias curtas e desvios diegéticos, há uma espécie de mosaico narrativo que apenas no balanço final nos dá a ver a origem da personagem, a sua vida profissional como wrestler, a sua vida actual e quotidiana, a sua relação com os inúmeros gatos, os cruzamentos com os mundos das artes, da música, os pontos de encontro gay (sobretudo bear, não se vê nada twink ou femboy) e outros da cidade em que vive (uma São Francisco algo distorcida), etc. Chegamos mesmo a viajar no futuro muito longínquo, para descobrir o que acontecerá quando a Terra estará na mão de tribos de gatos e cães super-evoluídos e lutando entre si, e que levam à ressurreição de Oaf como o paladino dos felinos. Mais, e bebendo em grande parte de muitos dos mecanismos-chavão dos super-heróis (Luce criou imagens com a personagem que citam o Hulk e Crise nas Infinitas Terras), há uma versão “à la high fantasy” de todas as personagens.

A cultura musical tem aqui também um papel preponderante, e coloca territórios aparentemente separados num mesmo plano de existência, convivência e prazer. Oaf, por exemplo, é um fã incondicional de Morrisey. A banda Ejaculoid define-se como sendo de “progressive disco grindcore”, mas membros da banda também propõem a ideia de serem “aggro techno hardcore” ou “black spazz-metal queercore”, o que abre espaço a discussões cada vez mais atomizadas sobre estilos musicais. Vemos muitos concertos e actos como os das Muff’n’Pop Grrlz, Sphincterine, etc. Trocadilhos e nomes de bandas improváveis (ou expectáveis, na verdade) pululam pelas páginas. Em retrospectiva, tendo nós visto a primeira imagem de Luce associada ao projecto Henry & Glenn Forever & Ever, dos Igloo Tornado, em que os dois ícones macho do rock agressivo são um casal comovente, esta linha temática não é surpreendente e é responsável pela riqueza do livro.

E há um episódio, a nosso ver magnífico na representação do prazer da música em banda desenhada (o que é raro, apesar de tudo) em que a banda Ejaculoid procura o melhor som e coordenação dos talentos de cada um, que é uma espécie de lição enlatada da diversidade musical – Prince, Mötley Crüe, Pixies, Nina Hagen, e GG Allin na mesma frase? - e de como a ideia de “orgia” pode ser produtiva para a criação de novas direcções (se bem que a imagem de Wendy O. Williams, dos Plasmatics, a sodomizar Oderus Urungus, dos Gwar, poderá deixar marcas indeléveis).

O autor consegue então, ao longo destas páginas, e através das suas histórias curtas com ligações paralelas e fugas, tecer um mundo em que a sub-cultura (este termo não tem um juízo de valor, é empregue no sentido de Dick Hebdige, no sentido de ser um posicionamento oblíquo em relação à hegemonia através do “estilo”, e isso englobará a expressão da sexualidade) bear gay, a paixão pela música, o conhecimento das cliques de várias círculos e dos cantinhos da cidade, um interesse vivo pelos clichés de toda uma série de géneros de banda desenhada e cinema popular, etc., se encontram numa coesão forte, divertida e até comovente. A timidez de Oaf é sempre motivo de surpresa e o modo como negoceia a aproximação a Eiffel demonstra a atenção particular do autor em construir  uma história romântica.

A inscrição concêntrica possível não seria apenas na banda desenhada que contem personagens homossexuais – o que pode incluir até mesmo alguns dos aproveitamentos superficiais da política do momento pelo mainstream de super-heróis -, ou naquela que é criada no seio dessa cultura, agregando ou não géneros normalizados como a ficção científica (o caso de Artifice). Luce, até pela pertença à sub-cultura homossexual dos bears, encontraria em Tom of Finland o seu primeiro cultor. Este artista, aproveitando ou seguindo as linhas culturais de um George Quaintance, Dom Orejudos e Art-Bob (todos cruzando-se na mítica Physique Pictorial), traria porém uma dimensão dramática maior, graças às suas bandas desenhadas, mais tarde com projectos específicos como Kake, Pekkas, Jack in the Jungle, etc. E uma das dimensões mais dramáticas de Tom of Finland é a da violência, com inúmeras cenas de violações e abusos (mesmo que terminem em encontros de satisfação mútua e feliz, partem de uma realidade que merece alguma crítica, como aquela feita por Adam Thorburn). No entanto, se essa violência iria ganhando cada vez mais proeminência nalguma produção de banda desenhada (veja-se o trabalho do autor japonês Gongoroh Tagame), Ed Luce apaga-a, trazendo a lume as suas personagens num mundo mais emotivo que de gratificação superficial. Há cenas de sexo, mas não são pornográficas, explícitas. Além disso, isso é feito numa abordagem, ou estilo, mais adocicado, arredondado, cute, cómico, a preto-e-branco (salvo uma meia-dúvida de páginas, em que uma série de segundas cores planas têm um significado curioso e totalmente narrativo, tornando-a num experimento simples mas efectivo). Como se a escola de Luce fosse sobretudo informada por uma banda desenhada de expressão infanto-juvenil à la John Stanley para chegar a este conteúdo bearcore.

Uma última observação sobre Tagame et al. A esmagadora maioria do público generalista conhecerá a “utilização” de histórias entre dois homens no género de manga conhecido por yaoi, de que Heart of Thomas é um exemplo histórico. No entanto, enquanto género sobretudo de mulheres para mulheres (não exclusivamente, como é óbvio), a homossexualidade aí surge antes como um factor de possibilidade de aumento de romantismo não-sexualizado, na verdade. Mas existe banda desenhada feita por homossexuais de temática homossexual, como é o caso das mangás de G. Tagame. Se esse material esteve até recente data apenas disponível através das scanlations em sites especializados, existem dois projectos relativamente recentes, e com o dedo de Chip Kidd, que colocaram esse material, sob a forma de volumes consideráveis, acessíveis a um público alargado. Falamos de Passion, publicado pela PictureBox, e Massive, da Fantagraphics. O primeiro é exclusivamente dedicado a Tagame, com as suas histórias de extrema violência entre bears, e Massive é uma espécie de antologia introdutória a uma alargada constelação de autores japoneses, de variados graus de qualidade, géneros e humores, e que faz um excelente trabalho sobre o estado da arte deste sub-género e da problemática “abertura” dele na cultura japonesa (quem tiver oportunidade de o ler, repare como a maior parte das fotografias dos autores disfarçam ou ocultam totalmente os rostos), através de ensaios e entrevistas.

Nota final: agradecimentos à editora, por disponibilizar o livro em forma de pdf. 

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