26 de dezembro de 2014

Nowhere Men, Fate Worse Than Death. Eric Stephenson e Nate Bellegarde (Image)

Apesar do título desta série remeter a uma ideia de impotência (pelo menos, sob a forma da citação que representa), de inocuidade, podemos entendê-la de três formas distintas e paradoxais, mas todas válidas. Estes “homens de nenhures” são o grupo de cientistas que são afectados por um misterioso vírus e que se vêem obrigados a mudarem de espaço continuamente, mas todos esses lugares que não estão assinalados nos mapas. Ou, os “homens de nenhures” são antes os génios científicos que estão por detrás de todos os eventos mostrados, inclusive as maleitas do primeiro grupo, e cujo dom é precisamente o da ubiquidade das consequências das suas acções. Ou ainda, numa leitura mais frágil, são antes todas estas personagens que vivem num estado muito desequilibrado e incerto na sua vida editorial. Se é bem possível que apenas o hipotético desenvolvimento da série (ver nota final) possa confirmar, desmentir, transformar as seguintes notas de leitura, avançaremos como se se pudesse ler este primeiro volume como uma obra fechada, terminada, singular. (Mais)

Agregando os seis primeiros comics books desta série que pode ou não ter continuidade (ver adiante), o livro não deixa de ter uma premissa relativamente formulaica, associada a toda a tradição dos super-heróis, com particular destaque para o Quarteto Fantástico (cientistas expostos à radiação cósmica) e aos X-Men (jovens cujas súbitas mutações lhes permitem capacidades extraordinárias). A outra dimensão que emoldura a narrativa é de que os cientistas têm níveis de popularidade e celebridade apenas idênticas às dos nossos entertainers (o que leva imediatamente à conclusão de que realmente vivemos num universo bastante pobre quando as pessoas mais célebres são as mais cultural e intelectualmente medíocres e socialmente ridículas), encontrando-se as raízes dessa popularidade no quarteto de cientistas que desenham a espinha dorsal deste universo, um quarteto cuja comparabilidade aos The Beatles é por demais clara numa série de aspectos. Depois seguem-se toda uma série de elementos que, não sendo propriamente originais, se encontram aqui juntos para tornar densa a trama, desde teorias da conspiração aos limites da ciência, passando por relações com o poder económico, etc.

Esses ingredientes não apenas fazem de Nowhere Men (relembremos, outra referência aos Fab Four de Liverpool) uma série de ficção científica de grande interesse, e cujo centro de atenção é precisamente a vida social, laboratorial, administrativa, da ciência, como contribuem para que a Image seja, neste momento, a melhor editora mainstream a trabalhar para esse campo-género na banda desenhada norte-americana. Com títulos tais como The Manhattan Projects (fc de aventura e humor), Saga (fc telenovelesco e fantasioso), Prophet (fc weird), Supreme: Blue Rose (fc metatextual), Lazarus (fc e ciência política-económica) e também Copperhead, Drifter, Low, Ody-C, (todo o espectro de aventuras e fc), haverá toda a sorte de intensidades, elementos e estratégias narrativas para impedir que se façam juízos absolutos, é natural, mas em contraste com outras editoras que trabalham o género de forma mais convencional (a Dark Horse em primeiro lugar) ou subsumido a outros géneros (a Marvel e a DC, claro), encontraremos aqui uma escolha de qualidade. O facto do arguumentista ser o editor da Image responsável pela escolha de muitas das equipas de sucesso sob a sua direcção fazem imaginar que ele de facto terá uma excelente capacidade de conduzir um processo de fabricação dos elementos para um resultado óptimo.

Contudo, o que torna Nowhere Men particularmente significativo, a nosso ver, e a torna uma série uns furos acima das restantes é sua estrutura narrativa. Não a torna tão imediata e divertida como The Manhattan Projects, nem tão vanguardista como Supreme: Blue Rose, ou tão empolgante como Prophet e Lazarus, é verdade, mas é essa faceta a celebrar deste projecto. Numa abordagem formal, matemática, que não olha para a forma como cada linha de entrosa uma na outra, notar-se-á como a esmagadora maioria da atenção das pranchas representando acções no presente se centra na equipa de cientistas que sofre as tais mutações, com um número bem menor, por uma vintena, nos cientistas centrais. Esse cômputo justifica-se, para já, na particularidade de que o primeiro grupo é maior e espalha-se na superfície do planeta, obrigando a uma maior dispersão. Mas a verdade é que apesar dessa diferença (umas sessenta e tal páginas contra quarenta e tal) não explica a força gravítica em torno do grupo menor, que afinal é central e move os fios de todas as acções, de modo ora concertado ora antagónico entre si.

Uma outra linha surpreendente é que existem em pontos estratégicos analepses (é discutível se todos se tratam de “recuos” cronológicos, mas tratemo-los como tal para simplificar) mostrando os primeiros momentos gloriosos dos quatro cientistas centrais. É surpreendente porque esses flashbacks ocupam apenas sete pranchas (duas páginas duplas), ainda que existam materiais adicionais sob a forma de artigos de jornal, entrevistas a membros individuais ou pessoas relacionadas com eles, anúncios e posters dos seus produtos, capítulos de livros discutindo-os ou à companhia de alguma forma, etc. que chegam a um total de quarenta e uma páginas. Algumas das quais em densos textos, mais uma vez análogo ao que se passara em Watchmen, mas exercendo um grau de centralidade na construção dos significados menos premente, como veremos. Apesar de serem muitos poucos passos na história real pretérita da equipa original, e muitos os “documentos” excessivos aparentes, o que resulta é um efeito de importância absolutamente fulcral para todas as etapas do trabalho que eles desenvolveram, numa primeira fase, juntos e, numa outra, já separados.

Apesar da centralidade do efeito causa-consequência, e do modo como toda e qualquer acção é fruto de um esforço planeado e cuidado, a ideia que temos é a de uma aturada construção psicológica destas personagens. Nenhuma delas toma verdadeira dianteira moral ou de acção, e se nenhuma delas é o “herói” ou sequer o “vilão” – na verdade, a obra é de alguma frieza emocional, não se procurando criar grandes efeitos de simpatia/empatia com nenhuma das personagens, o que pode ser sinal de alguma estranha sofisticação -, todas elas exercem o seu fascínio e importância. Os diálogos, por exemplo, são sobretudo centrados na construção paulatina das personagens e na geometria relacional entre elas (cada grupo em si e entre os grupos), mais do que numa computação linear em direcção à intriga e ao avanço das acções. Seja como for, uma leitura atenta da construção das páginas e o modo como as estruturas se repetem, procuram variações, versões contrárias, etc., numa clara exploração do que Groensteen chama de tressage, mas que também poderá ser visto de modos ainda mais formais (capicuas visuais, exercícios oubapianos, etc.), abrirá caminho a entender-se que as acções se engrenam de modo muito intricado.

Os materiais que se encontram acessíveis de uma maneira ou outra do processo de trabalho entre os dois autores permitem-nos compreender que o contributo de Bellegarde (e as cores límpidas e legíveis de Jordie Bellaire) é bastante significativo. Se esta série tinha começado com o desenho de Terry Stevens, em duas histórias curtas adicionais à série Invincible, o seu relançamento com o desenho mais cristalino, quase "linha clara", de Bellegarde da-lhe uma espécie de descriminação dos objectos que sublinha ainda mais a atmosfera conspiradora. Em vez de criar essa ideia através de atalhos visuais, como o alto contraste de Stevens, linhas excessivas nos rostos das personagens, etc., Bellegarde prefere iluminar todo e qualquer pormenor. Nesse sentido, tem quase um gosto europeu, recordando-nos mesmo Luiz Eduardo de Oliveira, o qual, sendo brasileiro, encontrou um ponto de encontro quase perfeito dessas linhas de tradições distintas nas suas séries de ficção científica. Isso permite que haja uma aproximação mais simples, convidativa, à acção para depois melhor nos surpreender com as reviravoltas e desvios inesperados. 

Nowhere Men é uma estranha pequena obra que, no seio do mainstream, leva tempo a medrar na sua estrutura e também exige tempo da parte do leitor. Como dissemos, existem vários aspectos que colocam Nowhere Men directamente numa filiação a Watchmen. Como também já apontáramos, o projecto tira partido de um efeito de referencialidade tentado por Moore e Gibbons ao acumularem, no interior da narrativa, páginas que remetem para outros tantos objectos do interior desse universo diegético, mas como se tivéssemos acesso directo a eles. Expliquemos melhor. É conhecida a estratégia de mostrar uma personagem a ler um livro ou um artigo de jornal que não corresponde à nossa “realidade”, mas que ainda assim contribui para a espessura naturalista desse universo de referências. As mais das vezes, os autores mostram numa vinheta a personagem segurando esse objecto, e há uma ou outra citação através dos balões de fala. Um grau ligeiramente mais complexo é quando olhamos “por cima do ombro” da personagem, ou temos acesso a um qualquer efeito de “ver através dos seus olhos”, levando àquele mecanismo que Martin Schüwer chama de “vinhetas semi-subjectivas” na qual, citando Deleuze, o teórico alemão explica que a perspectiva “não se funde com a pessoa ou se mantém fora dela, mas está com ela”. Hergé, por exemplo, utiliza esta técnica bastas vezes. Mas o que sucede em Nowehere Men (não é inédito, mas é utilizado constantemente) é que as páginas do comic são ocupadas integralmente pelas páginas desses outros objectos: páginas de revistas, jornais, livros, posters, anúncios (alguns dos quais jogam em espelho, outros explicam melhor uma situação, outros apenas expandem o universo narrativo mas abrindo mais questões, etc.). Nesse momento, portanto, é como se o leitor atravessasse um pequeno limiar, penetrasse naquele mundo narrativo e lesse directamente os objectos que ali se encontram.

Para além dessa função de efeito de referencialidade e de complexificação material, esses documentos também contribuem para a expansão da história, uma vez que vão revelando algumas implicações, desenvolvimentos e novas associações entre os “Beatles” e outras personagens, ou a sua companhia e o mundo em geral. São variadíssimos os detalhes revelados, as referências internas desdobradas, etc. Tony Venezia, num artigo sobre um outro título de Alan Moore, Halo Jones (desenhado por Ian Gibson), explica como “a banda desenhada arquivística como a de Moore abre espaço, através de formas ficcionais, à acumulação generativa de pormenorização documental associada a práticas historiográficas, produzindo tensões entre fragmento e todo, imagem e texto, passado e presente e, claro, entre texto material e contextos cambiantes”. Existem grandes diferenças na forma como esses “materiais de arquivo” são apresentados e funcionam entre Watchmen e Halo Jones, mas se em termos superficiais, materiais, os de Nowhere Men estão mais próximos da obra mais famosa de Moore e Gibbons, o seu efeito é porém menos concentrado, por assim dizer. Ao passo que em Watchmen todo e qualquer elemento, como é sabido, se coordenava entre si criando uma imagem fractal complexa (em que o mais ínfimo pormenor espelhava uma macro-estrutura, e um grande evento influenciaria uma pequena acção, e uma consequência no passado se tornaria a causa de algo no futuro), em Nowhere Men as coisas têm um efeito mais disperso.

Uma vez que este trade paperback indica ser o primeiro volume, e os autores revelaram repetidamente o interesse em dar-lhe continuidade, é prematuro fazer esta leitura “isolada”, mas tendo em conta que os mesmos autores batalham com problemas pessoais (sobretudo Bellegarde) para voltar à carga, pode haver o risco de o arco ficar por aqui. Se isso se confirmar, é possível que algumas destas pistas de leitura façam sentido a longo prazo. Caso contrário, haverá espaço para revisão. A primeiríssima (e também a última, apesar de forma alterada) página mostra um poster da equipa central convidando as pessoas a juntarem-se a eles. Aceite. 
Nota final: utilizámos ficheiros digitais. 

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