9 de novembro de 2014

The Rise of Aurora West. Paul Pope, JT Petty, David Rubín (First Second)

As afinidades entre Paul Pope e David Rubín não são poucas nem negligenciáveis na apreciação das obras de ambos. É então sem grande surpresa, no fundo, que encontramos frutos do seu encontro, permitidos pela forma como o mercado actual da banda desenhada permite uma circulação cada vez mais sólida e diversa de autores entre países que, até há uma década, se encontravam relativamente “isolados” em matéria de criação, salvo casos pontuais. Não há hoje necessidade de “emigrar” para vingar ou entrar em mercados internacionais. E ao vermos o tipo de intensidade emocional e regresso a um certo prazer juvenil em El heróe e Battling Boy, já para não falar das pesquisas intertextuais e citações integradas respectivas, quase se poderia dizer que era inevitável o seu cruzamento. Ei-lo. (Mais)

Se Battling Boy tinha um formato já pequeno, que o aproximaria dos livros de luxo japoneses, mais do que os trade paperbacks dos comics norte-americanos, The Rise of Aurora West é ainda mais pequeno, num formatinho de bolso, a preto-e-branco e um trabalho convencional mas excelente de cinzentos, que recordará ainda mais outras práticas editoriais que não as usuais dos Estados Unidos. Esse aparente pormenor é um facto que aproxima este projecto daquela ideia de “estilo global”, que já havíamos debatido noutros momentos, e na entrevista com D. Mazur e A. Danner. Os três autores reunidos neste projecto, o autor das personagens, Paul Pope, o argumentista deste episódio, JT Petty, e o artista galego, David Rubín, cada um a seu modo revelavam já nas suas obras a potencialidade de uma convergência de características que haviam medrado em territórios (quase) isolados historicamente, logo, o “casamento” é desprovido de grumos e o resultado é ainda mais acutilante nessa direcção.

Este volume, em termos diegéticos, integra-se num “antes” em relação a Battling Boy (o livro), mas não poderia ser chamado propriamente de “prequela”, uma vez que a personagem principal não é Battling Boy (a personagem), ser semi-divino, mas antes a filha do herói Haggard West, Aurora. Se bem que o pai esteja vivo e activo nesta história, é a focalização dela que comanda toda a narrativa. Desta perspectiva, desde logo, percebemos que o objectivo deste projecto é de facto sublinhar a importância das personagens mais novas. Se Haggard West se inscreve em toda uma tradição de heróis de grandes aventuras e super-heróis (Adam Strange, Batman, Rocketeer, etc.), rapidamente entendemos que ele é menos importante – em Battling Boy por estar morto, em Aurora West por ser secundário o seu papel – do que os coadjuvantes mais jovens, os “sidekicks”. Battling Boy surge também como filho de um poderoso deus, mas a sua missão na Terra, em Arcopolis, é solitária, e os caminhos que Aurora procura são igualmente isoláveis da vontade do pai. Se na história da banda desenhada de super-heróis os sidekicks haviam surgido, de certa forma, como modo de conquistar uma franja de leitores mais jovens (com a invenção de Robin, a Newsboy Legion, Bucky, Jimmy Olsen, etc.), contemporaneamente o mercado permite que haja uma produção dirigida directamente aos leitores mais jovens, sem passar necessariamente por ingredientes apelativos aos mais velhos. Existem mesmo as categorias de “teens” e de “YA” (“Yong adults”) nas secções de “graphic novels”, um nicho cada vez mais explorado nos Estados Unidos – no Japão, isso é um dos pilares do seu mercado particular – de modo diverso, inteligente e de alta qualidade. A First Second é, na verdade, uma das editoras mais activas nesse nicho especial.

Nada disto significa, porém, que os adultos não retirem um imenso prazer de ler estes livros, o que é assegurado de forma espectacular por um projecto como este. Mas não está isolado: The Wrenchies de Farel Dalrymple, ou Eu mato gigantes, de Kelly e Niimura (recentemente publicado em português pela Kingpin) são casos também paradigmáticos, e dos quais falaremos em breve. Já em géneros mais “sérios”, ou graves, encontraremos nas primasTamaki um excelente exemplo.

The Rise of Aurora West passa-se nos momentos finais da vida de Haggard West. Ele ainda está activo, e ainda treina de forma intermitente a sua filha e sidekick, Aurora. Os esbirros de Sadisto parecem estar a construir uma máquina qualquer, a partir de vários pedaços que vão obtendo através da rede de monstros que assola a cidade de Arcopolis. Os raptos de crianças continuam, sem que se compreenda a razão. Tudo é ominoso e, na óptica dos leitores informados pelo primeiro livro, apesar de saberem qual é o trágico desfecho desses planos, não deixam ainda assim se serem movidos pela intriga, o suspense e o modo como os autores conseguem deixar ainda muitas pistas que precisam de uma resposta, mas vão complicando o “universo narrativo”. A existência de variadíssimas analepses (“flashbacks”) – alguns provenientes da memória normal de Aurora, outros acedidos através de métodos mais mágicos – permite-nos ganhar uma camada adicional da vida pessoal destas personagens, dando ainda mais textura ao livro, que apenas numa consideração rápida, superficial e distraída, é que poderia ser chamado de “simples”.

É muito curioso que Battling Boy coloque essa mesma personagem no centro da atenção, mas não negue um papel importante a Aurora. Aqui, estando o miúdo semi-deus ausente, a importância da figura feminina é ainda mais sublinhada. Desenganem-se, porém, aqueles que pensam que essa questão do género é explicitamente indicada, através de discursos, de gozos, etc. Bem pelo contrário, é um ponto assente logo à partida e não tem que ser discutido. Não há nada de facto a dizer. Isso torna um livro destes bem mais feminista do que aqueles títulos que muitas vezes são vendidos como tal, mas onde a misoginia ou pelo menos belos princípios bem-pensantes e sexistas ainda se mantêm vivos e activos.

O desenho de Rubín encontra-se aqui naquela sua característica de ocupação quase total das vinhetas não apenas com as figuras e os espaços, mas toda a espécie de pormenores que garantem um peso sólido às cenas, e uma personalidade ao universo. Uma textura material, vívida, cheia de fluidos e sujidade, tal como a nossa existência empírica, sendo essa uma das outras características que unem Rubín a Pope em termos visuais. Rubín não torce, digamos assim, nenhum dos seus métodos de trabalho para se aproximar do projecto do autor norte-americano, mas talvez possamos encontrar na incrível diversidade de estratégias de composição uma forma de desenvolvimento (em 150 páginas, há muito espaço para experimentar soluções diversas, que se coadunem com cenas de alto dinamismo em planos oblíquos, a cenas mais tranquilas em ortogonias clássicas, passando por splash pages, cenas de flashbacks “mágicos” aliando um motivo (um puzzle) aos enquadramentos, etc.). Também se poderiam apontar alguns momentos em que o registo se simplifica, em planos gerais, e outros onde os pormenores dos rostos se tornam extremamente intensos e detalhadamente esculpidos, mas isso faz parte precisamente da flutuação dinâmica de uma banda desenhada deste género.

No caso deste volume, ao contrário de Battling Boy, há um pequeno número 1 na lombada que faz adivinhar a continuidade da série. Veremos agora qual o segundo episódio das séries-irmãs a surgir primeiro.

Gostaríamos de terminar por deixar uma referência à edição brasileira de Battling Boy: com a brilhante trouvaille do título Bom de Briga, a edição em português é excelente, primorosa em termos materiais, divertida e fluida na língua. Seria magnífico se encontrasse alguma circulação entre os nossos leitores mais jovens portugueses (tal como aconteceu a toda a geração de jovens leitores das décadas de 1970 e 1980 com as publicações da Abril). Ou pensar numa edição nacional?
Nota final: agradecimentos à editora First Second, pela oferta do livro; assim como à Companhia das Letras, pela oferta da sua edição de Bom de Briga. Imagens provenientes de ficheiros digitais. 

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