23 de setembro de 2014

Through the Woods. Emily Carroll (Faber & Faber)

Quando discutimos alguns webcomics, mencionámos muito rapidamente o trabalho de Carroll, como um desses casos que não tirava particularmente proveito de todas as possibilidades expressivas, estruturais ou tecnológicas de publicar online o seu trabalho, ainda que existissem algumas estratégias de apresentação singulares. O fenómeno da edição em papel de determinados trabalhos apresentados originalmente na rede também não é particularmente novo, e já tivemos oportunidade de apresentar alguns livros que atravessaram esse processo, e comentar o que isso pode significar na relação contínua entre os diferentes mundos de edição, as formas de produção, circulação, publicação e comercialização do trabalho de banda desenhada, e por aí fora. Em relação ao livro de Carroll, concentrar-nos-emos no seu conteúdo, dizendo apenas que o objecto em si, o livro, é lindíssimo, com uma dustcover onde o título e os ramos das árvores, em baixo, têm um ligeiro volume que convidam a uma certa apreciação e prazer tácteis. (Mais) 

Carroll tem criado variadíssimos trabalhos curtos, como parte até mesmo da sua aprendizagem enquanto autora de banda desenhada, que notavelmente nasce do seu interesse pela ilustração, quase sempre associada a determinados tipos de literatura (de contornos mais ou menos genéricos e populares) ou de uma cultura, inclusive visual, coerente em relação ao seu imaginário. Os contos reunidos neste volume, apesar de no sub-título apenas se apresentarem como “histórias”, estão na verdade acorrentados a alguns conceitos, e vivem num intervalo de estruturas e elementos que os colocariam no seguimento das tradicionais Märchen, fairy tales ou “contos de fada” e os de terror. Na verdade, poderíamos mesmo dizer que se concentram no “lado negro” dos contos tradicionais, nas suas soluções sangrentas e implacáveis, que foram sendo paulatinamente apagados à medida que eles foram sendo reescritos para as sucessivas sociedades burguesas que os foram adoptando como parte do seu discurso de educação e controlo social.

Uma das maneiras que estas histórias se associam a essa tradição narrativa, oral e/ou literária, é pela matéria verbal. O inglês de Carroll (a autora é canadiana) é extremamente simples, no sentido de usar frases curtas e directas, num daqueles tons “universais” de contos de fadas (igualmente imitado por outros autores de algum sucesso contemporâneo, estando Neil Gaiman na linha da frente). No entanto, nada dessa simplicidade determina uma falta de complexidade noutros aspectos. Kafka era também um autor que usava um alemão seco, por assim dizer, para que os factos ficcionais funcionassem da forma mais objectiva possível. É precisamente isso o que ocorre nestes cinco contos. “Objectivo” no sentido de concreto, palpável, atingível. Não estamos no território do fantástico propriamente dito, uma vez que os eventos retratados têm mesmo lugar nestes pequenos universos. O que é surpreendente é a forma como as criaturas ou a atmosfera do maravilhoso, neste caso criaturas e atmosferas de horror, se imiscuem, ora de forma subreptícia ora súbita, no que pareciam mundos idílicos, e a forma incontestável e irrecuperável com que as protagonistas nelas tombam.

Alguns leitores, inclusive Craig Thompson (num dos blurbs da contra-capa), cita Gorey como uma das referências visuais. Não é mal-visto, no sentido em que ambos, Gorey e Carroll, parecem querer criar sempre histórias num passado mais ou menos identificável em termos de imaginário (já que pouco importa a correcção histórica). Os dois autores, também, parecem ter preferência por um inglês aparentemente vitoriano mas para perscrutar aspectos negros da literatura infantil que terá nascido nessa época (mas não se reduzia, de forma alguma, a contos delicodoces e ingénuos). Assim como uma apetência por mundos sociais relativamente privilegiados ou, quando o não são, reduzidos a uma ideia romântica. Para depois trincá-los melhor nas mandíbulas do nocturno.

No entanto, em termos estritamente visuais, não podíamos estar mais afastados de Gorey. Onde este autor usa personagens fixas em poses rígidas, quase caricaturando um estilo de teatro antigo, Carroll opta por uma fluidez total das suas esguias figuras. Onde Gorey preenchia toda e qualquer área das suas páginas com trabalhos de apertadas e obsessivas tramas, Carroll têm uma apetência maior por cores nítidas e planas, ou zonas indistintas cobertas de negro ou de branco, com poucas vinhetas por página, por vezes mesmo usando uma dramática dupla página, espalhando o texto, expressivo e caligrafado, através das imagens. E o uso da cor, de texturas e transparências feéricas contribuem sobremaneira para a personalidade de cada uma das pequenas narrativas. Mais, a autora usa padrões, fusões entre planos, jogos visuais metafóricos, e usos estratégicos dos vários níveis de composição para garantir uma diversidade de efeitos. 

O estilo da autora, em termos gerais, inscreve-se numa família cada vez mais alargada de artistas jovens que nascem numa cultura onde a ilustração livre é cultivada não apenas em contextos escolares e educativos, ou mesmo profissionais, mas no seio de uma cultura concentrada e comunitária, através de plataformas digitais (tumblr, flickr, blogs, etc.), onde se flexionam os músculos do desenho e do diálogo possível entre indivíduos e a cultura popular através de “fanart”, “submissions”, etc. Se por um lado isso é um convite a toda a liberdade e idiossincrasias e traços individuais na arte criada, ao mesmo tempo isso leva muitas vezes a ferramentas idênticas ou a características comuns: uma certa forma de usar a cor de modo diverso e brilhante, uma estilização barroca e geométrica, uma escolha por um conjunto de temas mais ou menos expectáveis e conhecidos, uma balanço entre o cool, o cute e o hipster. Nada disso, porém, é ou garante ou obstáculo a outras qualidades que depois se possam eventualmente conquistar com o trabalho efectuado. Carroll é um desses casos que tem tanto de oportunidade ganha como de trabalho feito. As histórias escritas por ela não deixam de mostrar alguma sombra de contemporaneidade, sobretudo o facto de todas as protagonistas – pois com a excepção de uma história, todas as personagens principais são mulheres ou raparigas – acabarem por tomar iniciativa, e revelarem alguma independência, mesmo que isso não signifique a sua absolvição ou salvamento de um fim cruel. O que, aliás, é quase exigido neste género. Carroll providencia-nos menos com versões modernas de contos de fadas, versões contemporâneas irónicas ou pós-modernas, do que com contos morais e de admoestação que atravessaram o filtro do fantástico à la EC Comics ou The Twilight Zone.

Das cinco histórias, apenas uma está ainda disponível no seu site (“His Face All Red”), e a comparação entre a disposição das vinhetas aí e no livro demonstrará a diferença espacial possível, mas também o baixo grau de significação que ambas têm no cômputo da diegese. Isto é, não estamos propriamente a falar de uma autora que tire partido das questões de composição para fortalecer as capacidades expressivas e/ou narratológicas da banda desenhada que pretende tecer. “The Prince & The Sea” é uma das histórias que tira partido dos formatos da rede, mas não é compilado nesta antologia.

Through the Woods apresenta uma literal mão-cheia de contos que sublinham os contornos assustadores dos contos de fadas, desprovidos de qualquer moral ou valor pedagógico, a não sei que se pretenda simplesmente alertar o último perigo que nos espreita a vida, como o lobo diz no epílogo à colecção. Podem tanto servir de uma espécie de correcção à nostalgia protegida como de novos contos para crianças actuais dispostas a que não se lhes ampare totalmente o caminho por ilusões ou falsas promessas de que tudo acabará bem. Não, nada nunca acaba bem. Por isso há que levar a vida a bom termo. E se a vida pode ser entendida metaforicamente como um caminho pelo meio da floresta, este livro seria um bom conselho.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro. (imagens colhidas na internet)

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