8 de agosto de 2014

Sandman, Overture # 03. Neil Gaiman e J. J. Williams III (Vertigo)

Se bem que prometêramos seguir o exercício de ler, aqui, cada um dos comic books que comporiam esta concentrada saga (ver aqui para os números 1 e 2), a verdade é que à medida que eles surgem, há inevitavelmente uma diminuição do que há a dizer. Pois pouco nos importa uma interpretação página-a-página, ora tentando adivinhar pistas futuras ora desvendando rotas de influências e fontes intermináveis. É desde logo uma certeza que Sandman tem de ser forçosamente uma rede densa de intertextualidade, já que é essa a sua própria razão de ser, enquanto produto de ficção e, no interior da sua diegese, é ele a fonte de todos os textos... (Mais)

Sobre este terceiro número, talvez o mais surpreendente seja a sua fraqueza quer a nível da intriga central quer também em termos de complexificação psicológica do protagonista. Como já havíamos indicado, Overture desenvolve-se num momento diegético anterior às “lições” da série principal, por isso este Sandman encontra-se ainda antes de ter aprendido alguma coisa sobre humildade – apesar de se demonstrar aqui uma tentativa gorada – e se aproximar do seu papel final martirizado. Um dos efeitos dessa posição é encontrarmos, com mais presença, um soberano sem grandes dúvidas e mais decidido nas suas acções, mas em outros aspectos acaba também por simplesmente repetir dimensões já consabidas. Até mesmo a parte em que ele dá a sua gargalhada repete algo que já havia ocorrido numa das primeiras histórias (quanto ele luta com o Sandman de Kirby).

Portanto, uma boa pergunta a colocar na leitura desta história é: o que aprendemos de novo em relação à personagem? A resposta é, infelizmente, pouco.

Quer dizer, Gaiman aproveita-se da matéria já disponível na saga original para recuperar alguns desses elementos – personagens e eventos – e fazer avançar, ou pelo menos criar a ilusão de avanço, na intriga de Overture. No entanto, é de notar que tendo atingido já meio-caminho desta narrativa, ainda não se construiu um arco narrativo perfeito, ou uma tensão central, mas apenas uma discussão (consigo mesmo) e uma viagem. Além do mais, não adiantaria discutir que nem todas as histórias precisam de ser lineares ou concentradas, pois não estamos aqui no território do experimentalismo ou na fabricação de novas formas, mas no seio de um determinado mainstream.

É por isso que surgem as três Euménides, e se fazem referências a várias das forças cósmicas pertencentes ao universo da DC (os Lanterna Verdes, por exemplo) mas também à Marvel (de forma subtil no texto e nas imagens, citam-se Galactus, o Surfista Prateado e o contributo geral de Kirby), de maneira a ancorar a possibilidade de spin-offs futuros (ou uma qualquer coesão cósmica interna, como já foi tentada noutras histórias curtas de Sandman por Gaiman, ou em TheEternals). Mas há mesmo uma maior procissão em que os autores citam brevemente entidades que atravessam o universo alargado de que aqui se trata, e que não deixa de ser uma estratégia típica de Gaiman: através de um elenco, de uma listagem curta que surge como uma espécie de epigrama textual, expande-se rapidamente as implicações e personagens envolvidas no evento que, aparentemente, estaria no centro da narrativa. Mas o mais importante nestas citações e re-integrações é precisamente provocar junto aos leitores um enquadramento mais ou menos familiar, de histórias anteriores, diferentes e maiores, para depois inscrever a “diferença”.

Como convém nestas narrativas, também são explicadas as “origens” de alguns dos elementos que já eram conhecidos, mas cuja fundação estava oculta. É o caso dos portões de marfim e de corno, de que Homero falara, que são associadas aqui a dois inimigos de Morfeu. Por ocasião de um conto contado pelo Rei dos Sonhos a uma jovem personagem encontrada na viagem, permite-se uma das favoritas estratégias de Gaiman, e apropriadas a esta personagem, que é a “história dentro da história”, ou nível hipodiegético, num termo mais científico. Em quatro páginas, esse episódio de um pretérito mais-que-perfeito em relação à história principal é “despachado”, assim como se reduz a uma só frase a origem do conhecido capacete de combate de Sandman. Na verdade, é uma pequena desilusão que esses pormenores sejam tratados desta forma demasiado célere e elíptica, desejando-se antes que Gaiman seguisse precisamente aquela forma magnífica da “descrição em acção” de Homero, em que um qualquer objecto é descrito enquanto ele é feito (como a cena famosa do escudo de Aquiles)...

A construção das coisas é, assim, pouco tamisada.

No que diz respeito à camada visual, é inevitável, mais uma vez, recordar os vários episódios de Promethea. Mas onde a enciclopédia de magia de Moore dirigia os instrumentos de Williams de uma forma evidentemente simbólica e funcional, em que cada elemento (forma, composição, estrutura, geometria, cor, figura, atributos, etc.) seguia regras iconográficas, talvez até a um ponto de ruptura da subtileza, mas por isso reforçando a ideia de enciclopédia, no caso de Overture essa concatenação de elementos acaba por apenas se revestir de um papel decorativo. Recordemos o que Renaud Chavanne escreveu em Composition sobre algumas pranchas aparentemente idênticas: “O que emana destas construções é uma imensidade, uma desmesura que difunde o sentimento do desaparecimento da tira [a “banda” desenhada] em proveito de uma construção global, de uma organização de vinhetas liberta da tira [strip], parecendo que elas foram colocadas antes de mais na óptica de ocuparem a páginas, ou mais exactamente a dupla página”. Mas acrescenta o autor, antes de partir para a análise dos seus exemplo, “Todavia, essa impressão, fortíssima, não resiste ao estudo da composição e às modalidades da leitura” (173-174).


Aquilo que “salta à vista” é que com a excepção da primeira e última páginas do comic book, necessariamente isoladas, todas as outras são duplas páginas, e organizam as vinhetas das mais variadas formas, ora em estruturas geométricas ora em construções mais orgânicas. Mas desarrumarão ou abrirão elas a protocolos de leitura mais complexos? Irmanados com a história contada? Ou é simplesmente uma estratégia de “encher o olho” em relação a uma intriga em que pouco se desenvolve, independentemente do número de elementos que se vão empilhando?

Em termos estruturais, a verdade é que se estão a seguir convenções bastante familiares. Voltaremos a este ponto já de seguida.

Por agora importa dizer que neste número, existem ainda, como nos casos anteriores, toda uma série de citações visuais, sendo talvez a de Moebius (por uma via mesclada entre Arzach e Blueberry) a mais gritante. Conforme o nível diegético desejado, Williams segue um estilo mais naturalista, cheio de traços para criar detalhes nos rostos, mostrando um Sandman quase digno de um Alex Raymond ou Milton Caniff (não fossem os elementos fantásticos), ora retira as linhas a negro para deixar estruturas coloridas e vítreas, ora espalha feéricas aguarelas nebulosas, ou subsume as figuras a um enquadramento limitado a um conjunto de cores. Desta forma, não apenas se cria uma estrutura mais ou menos clara entre presente narrativo, passado, passado corrigido, isto é, os tempos diegéticos, como também entre acções e citações, ou seja, já a um nível de representação ontológica em relação à intriga central. Não deixa esta diversidade de incutir alguma beleza, talvez excessiva, ao livro, mas é mais discutível se estamos perante uma estrutura propriamente elegante ou se apenas um exercício hiperbólico de capacidades, como vimos.

As “molduras” ou as estruturas que subjazem as duplas páginas (uma mão nas pranchas 6 e 7, o mapa nas 12 e 13, as composições de triângulos encaixados um pouco por todo o lado) não são nada mais do que ornamentos. Poder-se-ia esperar, por exemplo, que estas formas e molduras pudessem cumprir um papel de elucidação da acção ou dos espaços, ou que até incutissem algum dinamismo às acções mostradas (como o artista fazia em Batwoman), mas elas acabam por exercer mais um fascínio centrífugo, do que de focalização do que está representado no “interior”. Como as molduras de vinhetas em forma de pedras coloridas que fariam parte da paisagem desértica atravessada pelas personagens, que acabam por, neste caso em particular, não tanto “abrir” precisamente a ideia de deserto, mas enclausurar esse espaço que imaginamos imenso em parcelas diminutas. E as formas geométricas livres da “história da princesa”, opondo os azuis (a parte “boa” da história) e os cinzentos (a parte “má”) é demasiado óbvia.

Talvez, em retrospectiva, toda esta travessia de matérias várias venha a fazer sentido num crescendo. Por agora, sigamos.

Nota final: mais uma vez, foi utilizada uma cópia digital para colher as imagens. 

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