20 de agosto de 2014

Domovoi. Peter Bergting (Dark Horse)

Este livro é uma aventura leve, envolvendo fantasia, uma literal fuga do mundo real, passagens por entre ingredientes clássicos da literatura infanto-juvenil, e uma abordagem artística e técnica totalmente devotada à legibilidade máxima. De certa forma, poderíamos dizer que não é “nada de novo”, mas essa asserção não é em si mesma suficiente enquanto leitura e muito menos como juízo de valor. (Mais) 

A protagonista deste livro de umas 130 páginas é Jeannie, uma jovem mulher, a qual descobrimos viver num mundo “normal”, dos seres humanos e da vigília, mas que tem uma forte relação com um mundo fantástico, de animais falantes, criaturas mágicas e espíritos. As “passagens” possíveis não são tanto abordadas de forma directa e expositiva, como através de subtis pistas visuais espalhadas sobretudo no início do livro, mas que se tecem com outros momentos igualmente. Herdeira de um objecto mágico da parte da avó, uma poderosa feiticeira cuja morte desencadeia as acções de perigo que impulsionam o evento mecânico no centro do livro, Jeannie vê-se obrigada a tomar o caminho da aventura. De certo modo, é a maneira que ela tem de reclamar o legado da linhagem a que pertence. O objecto em si é uma espécie de semi-MacGuffin: são ossos, e colocam-na numa rivalidade contra outro poderoso feiticeiro, Bolshoi Korol. No final, descobriremos até que ponto eles são centrais em relação à trama e à forma como colocam estas personagens num mesmo caminho, mas esse aspecto é bem dirigido pelo autor.

Nesses sentidos, então, a estrutura narrativa e mesmo a inscrição de género é clássica, clara e óbvia. Todos os ingredientes da literatura fantástica encontram-se presentes, desde o animal adjuvante, o sábio companheiro (o tio), que vai expondo e explicando o mundo desconhecido no qual a protagonista penetra, até mesmo aos esbirros do vilão que se tornam numa espécie de guias e ajudantes, e muitas vezes fonte de humor (de base linguística, de acção, de atitudes, etc.). Assim sendo, Domovoi é um excelente texto de banda desenhada para jovens que se interessem por estes temas em geral. Não atingindo os níveis épicos de Tolkien, Lewis, Rowling, mas devedor do campo literário composto por esses autores, Domovoi deseja claramente cotejar esses imaginários.

Mas Bergting tem algumas facetas menos comuns e que o tornam relativamente interessante. Apontar o facto de se tratar de uma heroína feminina, apesar de não ser algo de totalmente original (nem contrastante, como o foram nas suas respectivas épocas os papéis de Alice, Dorothy, Anne of the Green Gables, Pippi Meias-Altas, e Merida “Brave”), ainda é necessário, mas não, felizmente, com a mesma intensidade de há uns anos, inclusive, ou sobretudo, no campo da banda desenhada de aventura mainstream. Talvez a principal característica diferenciadora seja a ausência de conflitos físicos directos ou pelo menos explorados em pormenor. Existem embates, sim, e até mesmo com alguma violência – armas de fogo, atropelamentos, ferimentos, sangue e mesmo “mortes” -, mas eles não se encontram no centro de cada episódio, como matéria fetichista que vai pontuando a estrutura da história. Digamos que estão presentes por serem necessários – seriam escusados, claro está, e é possível imaginar uma narrativa sem conflitos violentos mas construídos de formas alternativas, bastando O vento nos salgueiros ou O feiticeiro de Oz como exemplos -, mas não tomam grande parte da atenção do leitor. Esta centra-se sobretudo nos diálogos e relações entre Jeannie e as demais personagens, e as consequências no seu crescimento interior, psicológico, emotivo, intelectual e existencial. Não se tratando de um complexo Bildungsroman, ainda assim há claramente essa ideia no nervo do livro.

Já seria discutível se existe alguma aliança intrínseca entre a escolha de uma personagem principal feminina e esta outra forma de resolução dos conflitos que não passe necessariamente pela esfera física e violenta. Existem casos disso, claro está, mas as mais das vezes pertencem essas opções a fantasias masculinas (Tomb Raider, a Alice de Tim Burton, na banda desenhada Rat Queens, etc.). Estamos em crer que Domovoi tenta inscrever-se numa maneira de agregar e manipular estes elementos clássicos de uma forma ligeiramente mais progressiva.

Sistematicamente debatemo-nos com termos como poleviki, psoglav, o “décimo reino” [thrice-tenth kingdom], etc., o que faz apontar para toda uma série de contos tradicionais russos e mitologias do leste europeu. Apesar de jamais ser indicado textualmente, várias informações extra-textuais (e as paisagens urbanas?) mostram como a acção se inicia na cidade de Estocolmo, por isso poderemos entender Domovoi (uma palavra que não apenas remete a uma classe particular de espíritos, idênticos aos lares latinos, como à noção de, precisamente, “lar”) como um ponto de encontro entre duas culturas que nem sempre viveram nos mais pacíficos dos termos. Essa dimensão, porém, tem de ser suspensa, pela ignorância que temos sobre esse assunto. Fica, todavia, uma impressão de conto tradicional em toda a narrativa, ou pelo menos dos ecos que sobreviveram desses contos tradicionais e que conseguem sobreviver na cultura contemporânea. Pois Domovoi pertence ainda a essa tendência contemporânea de tecer os ecos de um pretenso mundo mágico tradicional na textura mais banal do mundo actual.

O final da história é algo acelerado, até mesmo a um ponto quase de incompreensão. Não apenas existem alguns fios por apanhar e concluir, como há uma certa insatisfação na resolução narrativa, mas a força do autor estará mais na criação de ambientes e situações gerais do que numa atenção pormenorizada para a tessitura e geometria da narrativa. Até a relação entre a capa e o "miolo", depois de lido, não deixará de suscitar perguntas sobre a sua exactidão. O autor não está particularmente interessado em criar mecanismos metatextuais, se bem que a segunda página mostra na última vinheta um jornal (?) aberto que revela uma página de banda desenhada, possivelmente, composta da precisa maneira do que aquela que a contem: tratar-se-á de uma forma de criar uma ilusão em mise en abîme, uma revelação do carácter fantástico e auto-referencial da aventura que se seguirá?

As influências, ou pelo menos forte diálogo e afinidades, de Mike Mignola e toda a constelação de artistas relacionados com o universo expandido desse autor, são patentes de forma bastante clara. E isso não surpreenderá ao se saber que o artista está envolvido nos novos desenvolvimentos em torno da saga Baltimore e outros títulos mais ou menos fantásticos da editora. Com destaque especial para The Portent, Ashes, do mesmo autor, de que daremos conta já de seguida. Apesar do autor ter já publicado outros trabalhos de forma mais independente no seu país natal, aquela filiação é notória em várias dimensões. Não apenas na figuração, entre opções realistas e mais estilizadas, a pender para o cartoonesco, como a nível da cor, de limitadas mas coerentes famílias tonais, com súbitos apontamentos mais expressivos (seguindo lições de Dave Stewart?), a nível da presença do texto, com esparsos diálogos e ritmados, a forma como deixa respirar as personagens ou objectos nos seus enquadramentos, até mesmo ao ponto de espargir cenas de acção mais intensas com vinhetas silenciosas e de pormenor de objectos, espaços ou atitudes das personagens. O uso equilibrado entre composições de páginas mais cheias e dinâmicas e outras com splash images de maior tranquilidade, a fabricação de espaços diegéticos claramente apresentados, o que reforça a facilidade com que o leitor se vai deslocando entre as várias paisagens geográficas e os saltos temporais que lhes estão associados, e a forma geral como o autor emprega os instrumentos gráficos e convencionais da banda desenhada tornam este texto muito legível, reforçando aquela ideia de ser algo particularmente criado para um público mais jovem, e que poderá partilhar com a protagonista algumas das preocupações, aqui transfiguradas num contexto de fantasia.


Entre o livro ilustrado infantil e a banda desenhada, Domovoi é um daqueles trabalhos leves que, ao lado de This One Summer, Battling Boy ou Spiral-Bound demonstra que ainda existem autores a explorar de que maneira estes métodos convencionais podem ser articulados para um público mais jovem, não se escusando de problemas mais complexos mas abordando-os de formas mais simplificadas. 
Nota final: imagens de ficheiros digitais.

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