11 de julho de 2014

Hoje sinto-me... Madalena Moniz (Mini Orfeu)

Quando escrevemos sobre Children’s Picturebooks, de Salisbury e Styles, havíamos notado a presença de um projecto, à altura “escolar”, de Madalena Moniz. Na secção dos comentários correspondentes, a notícia de que o livro estaria a ser produzido para publicação pela Mini Orfeu não se fez esperar e aqui surge ele. A ideia de “escolar” não tem nada de pejorativo, tal qual o havíamos debatido no texto anterior, e é particularmente significativo, sobretudo para a instituição em si, que a qualidade dos livros produzidos no seio desses projectos apresentem desde logo características suficientemente musculadas que façam adivinhar a sua circulação mais alargada. Isso estava patente desde logo no livro de Moniz. (Mais) 

O livro em si sofreu alterações a todos os níveis, quer em termos da língua – tratando-se de um alfabeto, a escolha das palavras teve de procurar caminhos que não o inglês – quer em termos da composição e das próprias imagens. Pode-se dizer mesmo que o livro original foi antes a semente que, após o filtro editorial – sendo essa precisamente a sua função -, desabrochou num livro acabado e novo. A estrutura continua a ser muito simples, mas efectiva. Cada página dá continuidade ao título, que passa a ter uma relação textual intrínseca e interna ao livro, e não somente uma relação indexical. Nesse aspecto, desde logo, o livro tem uma estratégia textual-estrutural pouco comum. A palavra, o adjectivo, que configurará os sentimentos da personagem – a qual, continuando a ser um menino, não tem já o nome proposta na versão primeira – surge sob a forma da letra, desenhada com um padrão, textura ou material que remete à imagem, incutindo uma natureza material concreta à palavra. A imagem, ocupando toda a página da direita, dá corpo ao sentimento, quase sempre procurando relações metafóricas, ora mais naturalistas ora mais fantásticas.

A autora não está interessada em criar uma personagem propriamente dita, não lhe dando qualquer biografia ou identidade moldada, mas existem suficientes pormenores visuais que permitiram uma micro-narrativa, ou adivinhar alguns aspectos da sua vida. No entanto, isso não é importante, sendo-o antes a sua transformação numa cifra, que será preenchida por cada leitor. Essa ideia de “preenchimento” é mesmo levada de uma forma literal quando, no final do volume, se apresenta um espaço para ser preenchido pelos leitores com as suas próprias notas sobre os seus sentimentos diários. Mesmo que não tenha um propósito pedagógico propriamente dito (logo, tornando-o mais significativo), ainda assim Hoje sinto-me... pode ser empregue como um instrumento de aprendizagem bastante claro, quer das letras em si, das palavras em si. Existem aquelas talvez menos comuns (“audaz”, “revoltado”, “baralhado”) até a termos internacionais (“k.o” e “x.l.”, que talvez demonstrem alguns limites na busca das palavras), passando mesmo por sentimentos que merecem maior contextualização e esforço (“genuíno”, ou “torto”) até aos mais estrambólicos (“jupiteriano”).

Os desenhos da autora são feitos a tinta-da-china e aguarela, sendo este o material que mais ocupa o corpo das imagens. Madalena Moniz não se inscreve na escola mais em voga da ilustração portuguesa – a escola “geometrizante” e de cores puras, como já repetimos noutras ocasiões -, mas bem pelo contrário parece cultivar uma abordagem mais suave, texturada. Há um labor paciente em desenhar os fios de cabelo, as ondas individuais de um mar, as folhas de uma árvore, os padrões dos azulejos, os reflexos de um papel de embrulho de bombons, as mãos carimbadas no chão, as pedras maiores e menores que compõem uma imensa parede, e depois dar-lhes, a cada uma dessas superfícies, cores específicas e matizadas. Além disso, o uso quase revezado – nas páginas “das imagens” - de composições cheias e de grandes áreas de vazio, ou ainda de distribuições equilibradas, incute um ritmo interno ao livro, mesmo que ele possa ser lido sem seguir a ordem alfabética/estrutural.

O próprio rosto do protagonista e de outras personagens é muito simples (a escolha dos “botões-negros-como-olhos”), mas eficaz e contrastivo na economia da composição e outros objectos. De certa forma, talvez haja aqui alguma associação, quiçá nostálgica, a uma certa ilustração de há uns 40 anos. Pensamos sobretudo em Dick Stenberg, que ilustrou toda uma série de pequenos livros de lições emocionais que foram publicados entre nós numa colecção da Editorial Presença e Martins Fontes a meados dos anos 1970. Se esses livros tinham ecos cristãos, mas procuravam sobretudo aquelas repercussões mais universais, este livro de Moniz está despojado de um contorno mais religioso e espiritual, mas não é menos emotivo e tocante por isso.

Não sendo o primeiro livro da autora, que lhe angariou atenção e um galardão, será este porém que a colocará numa senda mais pessoalizada, ao mesmo tempo que vem trazer uma pequena inflexão à nossa “carteira” de ilustradores contemporâneos.

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro. 

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