13 de junho de 2014

Iba. Pierre Maurel (Casterman)

Iba é um daqueles projectos simples que é prova da convergência das variadas “linguagens” internacionais da banda desenhada. Se Neil Cohn vai longe demais na sua preconização de “línguas” diferentes entre banda desenhada norte-americana, japonesa, etc., não deixa de ter razão numa perspectiva mais ou menos generalista de que existem estratégias bem diferentes entre essas tradições. Estratégias que diferem não apenas nas técnicas de desenho, de cor, de sombras, de composição de página, de escolhas de perspectivas oculares, mas também no que diz respeito a questões de representação, formatos e políticas editoriais, contexto de divulgação, exposição e distribuição, maior ou menos esbatimento de públicos diferenciados, possibilidades de exploração intermediática, e uma série de outros factores. Não sendo possível isolar esses elementos de uma forma sistemática e muito menos “científica”, há ainda assim suficiente força para que possamos dizer “isto é bd europeia”, “isto é mangá”, etc. (Mais) 


Mas é inegável existirem autores que trabalham para essa convergência. Pode ser uma questão de emprego de estilos, ou de misturas de géneros narrativos, ou referências, mas também pode ter a ver com uma cultura necessariamente de um diálogo mais presente, célere, e mesclado. Assim, encontramos em nomes e abordagens tão diversas como as de Paul Pope, Alessandro Barbucci e Barbara Canepa, David Rubín, Giannis Milonogiannis e até nalgum Rui Lacas essas linhas entrosando-se entre si: figuração “à japonesa”, dinâmica “à americana”, storytelling “à europeia”, ou outras distribuições. Pierre Maurel tem uma abordagem ao desenho que recorda as variações “caligráficas” sobre a linha clara de um Matt Madden ou Jessica Abel, o primeiro David Lapham, alguma Carla Speed McNeil: contornos negros e fechados, figuração simples, mas sempre com pequenas linhas nervosas que traduzem o trabalho do punho sobre o papel, rápido, flexível e pessoal. Um equilíbrio muito produtivo entre vinhetas quase desprovidas de peso senão a da personagem e outras criando uma dimensão de referencialidade muito potente. Páginas compostas de forma regular e rítmica contrastando com outras abordagens mais dinâmicas e dramáticas. Uma atenção para com o mais mundano dos espaços ou acções para depois as dissipar com invasões do mais inesperado fantástico. Nessa mistura, encontramos alguns dos passos para esse “estilo global”.

A dimensão de produção também não é alheia a essa tendência, já que Iba foi publicada em primeiro lugar num formato digital. A Casterman começou a publicar uma série de volumes reunindo em papel das histórias que foram publicadas anteriormente na revista online ProfesseurCyclope. Trata-se de um projecto colectivo, fundado por uma série de alguns autores de expressão francesa que trabalham em territórios intermédios entre o comercial e o circuito independente, interessados em explorar linguagens relativamente acessíveis em termos narrativos e estilísticos esta arte, e que encontram nesta plataforma uma possível solução de sustentação financeira, de produção e de público. Porém, a edição em papel representa sempre um outro tipo de visibilidade.

Maurel é autor de um outro livro, memorável, Blackbird, que nasceu no espaço dos fanzines e fala dessa mesma cultura de fanzines, ainda que a projectando num hipotético e distópico futuro, no qual esses objectos e transformam numa ferramenta de resistência política muito forte. Não deixa de ser ainda estranho ver esta “passagem” para um género mais normalizado, de aventura ou horror. Iba é uma narrativa centrada numa jovem mulher, Élise, que é aterrorizada por uma outra mulher, a que poderemos, talvez, chamar de “fantasma”. A organização temporal do livro, dividido em vários capítulos (que correspondem ás unidades que foram sendo publicadas na revista online), não é de forma alguma linear, e essa complexa rede de avanços e recuos vai complicando paulatina e significativamente a relação entre as mulheres. Essa relação é muito complexa,e leva a que a cada capítulo, façamos leituras radicalmente diferentes sobre a “moral” de cada personagem, não estando nenhuma delas, quer as principais quer as adjuvantes, livres de simpatia ou aversão da parte dos leitores. Não existem papéis unidimensionais, nem purezas ou maldades de espírito absolutas.

Iba recorda em alguns aspectos os livros de terror de alguma banda desenhada japonesa, sobretudo aquela tradição que une Kazuo Umezu a Junji Ito. Num mundo aparentemente normal e sem qualquer diferença com o nosso, a irrupção do fantástico é brutal e destruidora. Mas Maurel está mais interessado em entender como é que o mundo responderia a esse desafio do que a se abandonar a toda a variação gore usual na banda desenhada japonesa. Aliás, a ligação com o “mundano” é precisamente o elo mais forte que ancora Iba na tradição europeia. Uma das cenas mostra o espírito vingativo de Iba a entrar pela janela da protagonista, que caberá aos leitores interpretar se corresponderá somente a um sonho, uma “visão” ou a acontecimentos reais. Mas é impossível a qualquer leitor dos clássicos não encontrar nessa cena um eco, senão mesmo uma citação intertextual, com a cena do sonho de Tintin da entrada de Raspar Capac no seu quarto, em As 7 bolas de cristal. Tardi havia criado uma idêntica homenagem em Adèle Blanc-Sec e é difícil não acreditar nesse mesmo papel dessa cena neste outro livro contemporâneo. Ao mesmo tempo, esse “eco”, como lhe chamaria Pierre Fresnault-Deruelle, é uma clara associação e inscrição de Iba na tradição europeia.

Sendo um projecto de alguma simplicidade estilística e narrativa, é essa mesma limpidez que garante algum charme a Iba. A sua leitura descomprometida leva ao entendimento dessa tendência convergente da banda desenhada actual, em que menos importante do que a sua reinvenção ou crise está o encontro de algum tipo de homogenia e legibilidade.

Nota final: agradecimento à editora, pela oferta do livro. 

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