10 de maio de 2014

Contemporary Comics Storytelling e Studying Comics and Graphic Novels . Karin Kukkonen (University of Nebraska Press/Wiley-Blackwell).

Num espaço de um ano, Karin Kukkonen, que tem já uma carreira relativamente conhecida no campo dos estudos de banda desenhada através de alguns dos seus brilhantes papers, e o seu Metalepsis in Popular Culture, publicou dois livros que, sendo bem distintos entre si, se unem pelo seu campo (trans)disciplinar. O espaço de investigação de Kukkonen é informado pela narratologia contemporânea, sobretudo onde ela tem vindo a ser inflectida pelos contributos do cognitivismo.

Ambos, parecem-nos, são estimáveis à sua maneira. Contemporary Comics Storytelling (CCS) é o mais teórico, fruto do trabalho académico de Kukkonen, logo necessariamente mais denso e focado mas desenvolve de uma maneira teoricamente sólida os pontos principais. Studying Comics and Graphic Novels é mais próximo de um “manual”, desenvolvido no seio de cursos introdutórios de nível universitário (ver entrevista, abaixo), mas ainda assim entrega-se a algum grau de complexidade teórico. Não o abordaremos em pormenor, dizendo apenas que, a um só tempo, ele providencia close readings curtas mas magníficas, sem ter vergonha de se aproximar de dimensões mais complicadas. Um problema inerente a ambas as edições é o seu preço (o segundo volume, que custa quase 30 Euros, não tem sequer 200 páginas), o que os torna proibitivos fora dos contextos educativos (bibliotecas) em que se integrarão, o que pode ser visto como um obstáculo compreensível, e que não conseguirá eliminar a ideia generalizada, mas não totalmente errada, que as obras de Scott McCloud continuarão a ser boas referências populares de introdução. Seja como for, este segundo livro de Kukkonen vem unir-se a esforços como aqueles dos livros de Ann Miller, Smith & Duncan, Magnussen & Christiansen, entre alguns outros. (mais)

A autora afasta-se claramente de discussões essencialistas, considerando a banda desenhada como literatura, ou como parte da literatura, preferindo focar-se nas formas como ela responde a desafios relacionados com a literatura: “Textos, e as suas características, a forma como eles se relacionam com os leitores, e pela forma como participam nos diálogos culturais, convergem aqui. Ver a banda desenhada como literatura significa considerar a forma como estes aspectos interagem” (pg. 2). E na conclusão, Kukkonen também sublinha este aspecto, “porque as suas estratégias narrativas complexas permitem-lhes participar e reflectir os debates culturais contemporâneos”. Em suma, alguma banda desenhada “é literatura” (177). Também em Studying a autora advoga uma mescla entre instrumentos advindos da análise literária e dos estudos cognitivos que possam levar a uma visão concertada de “as nossas interacções variadas com a página à nossa frente, a complexidade das inferências feitas e refeitas, e os múltiplos caminhos possíveis que podemos estabelecer na página” (pg. 149, numa conclusão intitulada “A banda desenhada como literatura”).

O primeiro capítulo de CCS intitula-se “Como analisar cognitivamente a banda desenhada”, e utiliza uma estratégia muito curiosa: partindo da famosa análise de Umberto Eco da primeira página de Domingo de Steve Canyon, de Milton Caniff, no seu ensaio seminal “Uma leitura de Steve Canyon” (1964, editado em Portugal em Apocalípticos e Integrados), Kukkonen mostra como algumas das ferramentas do cognitivismo podem ser utilizadas para irem mais longe ainda, e até mesmo corrigir alguns dos pontos dessa abordagem semiótica clássica. De uma certa forma, a autora vai para além da consideração de toda a informação presente nas páginas da banda desenhada como parte de um código dado, envolvendo-se com as inferências que os leitores fazem a partir das pistas visuais, verbais e estruturais. Depois dessa análise e bebendo de outras fontes teóricas, a conclusão momentânea apresenta-se: “Apesar de [os estudos de Teun can Dijk e Walyer Kintsch] separarem analiticamente construção e integração, eles são bastante claros sobre o facto de ambas interagirem através do processo de leitura: as características textuais são necessárias para activar schemata [uma padrão com o qual criamos categorias, como a dos géneros literários, por exemplo], mas por sua vez os schemata determinam que características textuais são processadas pelos leitores” (27). Uma das consequências disso é que “os potenciais de sentidos múltiplos e de complexidade cognitiva são parte integrante da nossa entrega cognitiva com um texto, e não somente uma sua adição excepcional” (38).

O “particular problema ou conjunto de desafios de interpretação” que a autora decide discutir nos três capítulos principais de CCS, ou os conceitos-chave, são a intertextualidade, os mundos fictícios [storyworlds], e as mentes ficcionais. E os textos que ela escolhe para cada um desses quadros analíticos são todos séries de comic books mainstream norte-americanos contemporâneos, a saber, e respectivamente aos conceitos-chave: Fables, de Bill Willingham e uma série de artistas, Tom Strong, de Alan Moore et al., e 100 Bullets, de Brian Azzarello e Eduardo Risso. Na verdade, a cada passo a autora refere-se a todas as séries para falar de um ponto similar que está a analisar, mas são cada um desses casos de estudo analisados sobretudo sob o foco daquelas noções citadas. Uma das primeiras dimensões que se salienta no estudo delas é que é menos importante a contextualização histórica, editorial, autoral, dos títulos eleitos - por exemplo, integrando Fables numa fase pós-Gaiman da Vertigo, e encontrando no ponto de partida da série uma herança quase directa de The Sandman - do que uma concentração quase absoluta nos princípios analíticos eleitos. Aliás, como escreve a própria autora, já na conclusão, ela segue “vias de inquirição que são conduzidas por um problema particular ou por um conjunto de desafios interpretativos” (177), seguindo dessa forma as noções de David Bordwell de uma “pesquisa a meio-caminho” [middle-range].

O capítulo que se centra na série Fables intitula-se “Textual Traditions in Comics. Fables, Genre, and Intertextuality.” Nele, a autora estuda a forma como as histórias, os “arcos narrativos”, sobre as personagens de contos de fada vivendo na Nova Iorque contemporânea, não apenas citam a matéria textual e muitas vezes imagética desse género em particular, como o cruzam com outros domínios, do policial à high fantasy, narrativas de guerra ou horror. O que isso permite é que a leitura se venha ligar à controversa “memória cultural” (controversa porque levanta toda uma série de questões críticas complexas), a qual é segundo Kukkonen “um agregado de textos e as suas representações mentais que podem ser relacionadas a uma comunidade particular e as suas atitudes e ideologias” (58). A autora aqui bebe das pesquisas de Jan Assmann, mas ela própria já havia escrito largamente sobre este aspecto em “Popular Cultural Memory” (além deste livro se basear na dissertação de doutoramento da autora, ela já havia publicado papers com partes da investigação); e mais uma vez volta à questão de como os schemata criam não apenas expectativas, como nos fazem contínua e sistematicamente reconstruir os géneros (comparamos e expandimo-los a cada texto novo) como nos permitem integrá-las nas nossas conversas do dia-a-dia (v. pgs. 67-69).

O capítulo que lida com Tom Strong explora a ficcionalidade, os mundos ficcionais e a imaginação. O cerne aí é que a “mimese tem duas dimensões, preferencialidade e experiencialidade, e o mundo ficcional não deveria apenas referir-se à nossa realidade mas também ser experienciada como real. Em segundo lugar, as nossas mentes parecem ser bem capazes de processar qualquer coisa como sendo apenas possível no interior de um domínio limitado, precisamente como um mundo ficcional” (89). Tant pis para os ainda-platónicos que insistem nos perigos da ficção, aqueles que vêm relações causais e imediadas entre a leitura de um texto e a vida real, como se uma ilusão total fosse possível.

Bem pelo contrário, a ficção mostra dessa maneira a sua utilidade mental, psicológica e até de sobrevivência. “Uma das razões pelas quais a literatura, de acordo com esta visão, melhora a 'aptidão' é que a ficção 'abrange os sistemas emocionais desligando os sustemas de acção' [uma citação de L. Tooby e J. Cosmides, do crucial ensaio “The Psychological Foundations of Culture”]. A literatura ajudaria os humanos a praticar as suas capacidades de resolução de problemas ao provocarem inferências e construirem o modelo mental do mundo ficcional, e a praticar as suas capacidades empáticas de interpretação-da-mente através da compreensão das mentes ficcionais” (94).

Um outro ponto forte na análise da autora é, quando discute a questão dos multiversos na banda desenhada – que não são algo de estranho como o é ainda no campo da literatura, isto é, é um uso desviante de uma certa norma -, a distinção emocional que ocorre quando nos confrontamos com versões diferentes na superfície – no caso, um Tom Strong com outro nome e uniforme, até outro corpo – ou com escolhas na vida da personagem – Tom Stone não se apaixona por Dhalua no seu mundo alternativo. Não só as divergências dos acontecimentos é mais aceitável que a das emoções (103), como as “respostas emocionais [dos leitores] são bem mais difíceis de afectar em cenários alternativos do que o contorno básico do mundo” (104). À guisa de conclusão, o que isto significa é que, nesta banda desenhada, e noutras, “a metaficção”, em vez de surgir como algo que nos afasta de uma entrada no mundo ficcional, como ocorre na literatura e no cinema, são fenómenos de afastamento e concentração no tecido textual, “é reconciliada com a imersão do leitor” (110).

Finalmente, o capítulo que aborda 100 Bullets é conduzido pelos conceitos das “mentes ficcionais”, “caracterização” e, mais importantemente, pelas consequências “éticas” envolvidas nessa história. Como se sabe, o início ou premissa central dessa série é a de colocar personagens, aparentemente mundanas, face a uma escolha tremenda. No entanto, “[e]m vez de apenas apresentar as opções claramente circunscritas do exercício mental, 100 Bullets apresenta aos leitores um opulento conjunto de pistas das mentes ficcionais das personagens, das suas experiências, e um sentido de imediaticidade sobre os temas maiores envolvidos” (130).

Baseando-se nos estudos de Lakoff e Johnson (e o fundacional volume Metaphors We Live By), a autora explora como esta série em particular responde de formas judiciosas e particulares às metáforas conceptuais (quadros latos a partir de uma metáfora que depois ganham várias expressões específicas) ou “mapeamentos metafóricos convencionais”, surgem então o conjunto seguinte: a vida social é uma transacção económica, a vida social é um jogo, a vida social é uma guerra (é uma convenção escrever as metáforas conceptuais em maiúsculas, para as distinguir das expressões metafóricas da linguagem (veja-se a nota 9, pg. 203; e a introdução do livro citado). “Ao longo da série, os leitores podem esperar que as metáforas conceptuais sejam representadas, e 100 Bullets começa a empregar esta expectativa como uma estratégia para aumentar a tensão da narrativa” (149). Quem a leu até ao fim, sabe como rapidamente as construções no início, os “casos”, foram encaixando numa história mais unificada, e como essas mesmas questões iniciais aumentam de intensidade e nível.

As análises de Kukkonen não a impedem de abordar outras dimensões, como “a violência gratuita, o sexismo e o niilismo” das séries, sobretudo 100 Bullets, mas esse não é o seu propósito central em CCS. Bebendo de Contigency, Irony, and Solidarity, de Richard Rorty, a autor cita: “a sua ‘utopia liberal’ seria habitada por pessoas que 'combinam compromissos com um sentido de contingência desse mesmo compromisso'. Nenhuma das nossas escolhas morais são baseadas em valores morais maiores e absolutos; eles são contingentes ao nosso próprio ambiente cultural e social” (175). Existem também várias questões que cada um dos pontos levanta, mas teríamos de os abordar um a um e entender quais as suas limitações, sobretudo no que diz respeito à aplicabilidade a obras que vivem na margem da narrativa e das estruturas narrativas mais usuais.

CCS é um livro que, acima de tudo, tem de ser lido e “aplicado”, não apenas no sentido de o transformar numa caixa de ferramentas prontas a utilizar, ou uma sebenta de ideias, mas antes um conjunto de questões que nos podem guiar a ler outros textos e tentar compreender até que ponto é que podem ser, esses mesmos instrumentos, testados, expandidos, corrigidos ou criticados, com outras dimensões e desafios. Em termos gerais, todavia, é nossa impressão que um dos objectivos centrais da autora é conseguido ao longo da sua argumentação. A da valorização da leitura como parte integrante do desenvolvimento humano, cognitivo e imaginativo, sendo duas faces da mesma moeda. O nosso confronto, acompanhamento e até entrega emocional a estas personagens torna-nos seres mais ricos e complexos. Desta forma, “as mentes ficcionais não são apenas um elemento importante da experiência da ficção; são também uma chave com a qual analisamos a sua dimensão ética” (176).

Como noutras ocasiões anteriores, a autora dedicou algum tempo a responder a uma simples entrevista, que poderão encontrar aqui.
Nota final: agradecimentos a ambas as editoras, pelas ofertas dos livros respectivos, e à autora pela disponibilidade. 

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