30 de abril de 2014

Demeter. Becky Cloonan (auto-edição)

Em termos superficiais, Demeter coordena-se com os dois outros títulos que a artista auto-publicou nos últimos anos, a saber, Wolves e The Mire. Há mesmo quem fale de uma trilogia, apesar de não existirem elos directos, pelo menos diegéticos, entre estas narrativas. Existirá, decerto, uma certa ambiência, que bebe de ideias, sempre vagas e não exploradas em termos de contextualização histórica específica, de uma Europa do norte medieval, prestes a sair das “Trevas”, mas onde ainda resistem elementos provindos dos contos tradicionais, das religiões antigas pagãs, da magia da terra e de sombras menos benfazejas que habitam a noite. E sempre para se concentrar em contos curtos centrados em relações amorosas e destinadas à tragédia, ou pelo menos a estranhas felicidades. A autora parece interessada em explorar toda uma série de ideias feitas e imagens pré-fabricadas, não tanto para as subverter, mas para criar pequenos relatos sobre uma emoção. Nesse sentido, em nada difere da tradição que parece mimar, precisamente. (mais)
Por outro lado, oscilando cada um destes projectos entre as 20 e 30 páginas, podemos perfeitamente imaginar que a sua auto-publicação em comic book é uma forma da autora experimentar uma solução financeira (o seu moto, também repetido noutras esferas, é “auto-publica ou morre”), vendendo também a edição digital, e que poderá vir a agregar-se num volume, por uma editora estabelecida. Seja como for, a atenção que lhe tem sido dada graças aos prémios Eisner, por exemplo, são algum garante da sua sobrevivência crítica e económica. Além do mais, vivendo o mercado norte-americano ocupado sobretudo ora por séries de comic books com histórias “épicas” e infindáveis, ou graphic novels de grande sofisticação narrativa e emocional, de quando em vez é uma pequena alegria ver um gesto destes, simples, abdicando de complexidades, e concentrado no seu propósito. Aliás, Cloonan, com estes seus livritos, e alguns outros exemplos esparsos (mesmo no interior de séries mais longas), conseguem atingir intensidades bem mais altas do que por vezes projectos mais longos, no seio da indústria norte-americana, sobretudo aquela obcecada com personagens-propriedades...

Demeter conta a história de uma mulher, Anna, vivendo perto de uma falésia, à beira-mar, com o seu homem, Colin, um pescador. O seu amor parece bem plantado, mas rapidamente nos apercebemos que existe um escolho. Sendo uma história curta, não há grande complexidade na sua estrutura maior, mas Cloonan, mais uma vez, tira partido dessas expectativas e até mesmo fórmulas para criar o melhor possível os ambientes que pretende. Bem vistas as coisas, a sua abordagem é económica: duas páginas, uma com um desenho e a ficha técnica e outra com uma espécie de poema-epígrafe podem ser vistas desde logo como parte da diegese, preparando a promessa da história. Depois, em quatro páginas apenas, já estamos inteirados sobre as personagens, a sua relação e o que a periga. Não deixa de ser algo desconcertante que a autora, ciente da beleza dos seus desenhos suaves, num belíssimo equilíbrio entre uma figuração influenciada pelas décadas de contacto com a shoju mangá e a arte de linhas densas dos comics americanos, opte por sempre representar personagens impossivelmente belos e jovens. Mas em que é que isso difere dos contos tradicionais, de que bebe? A “fractura” que Cloonan opera sobre essas imagens feitas está na forma como distribui os silêncios e os afastamentos das personagens, os momentos de pausa, de sonho, memórias e “fugas” em relação aos eventos principais – muitas vezes através de uma simples técnica de tornar os desenhos em cinzentos quase transparentes.

Se esses intervalos se impõem, é porque eles vivem no meio de uma intricada rede de enclausuramentos. Veja-se o modo como ela separa interiores e exteriores, ou modos de visão das personagens e o que vêem através de vinhetas separadas pelas janelas, com grossas linhas diagonais, ou mesmo losangos negros, desequilibrando a “grelha” da página.

Esta escolha leva a que haja uma concatenação de enquadramentos, enquadramentos dentro de enquadramentos, os quais contribuem para uma espécie de ritmo visual à narrativa, aquilo que Groensteen chamaria de tressage (entraçamento). E de facto, esse entraçamento é quase literal, e corresponde à sensação da personagem, presa a um espaço doméstico que imagina protector o suficiente. Por outro lado, há também outras formas de mostrar passagens entre espaços, mesmo que não contíguos, nas splash pages em que temos uma qualquer distribuição triangular no topo “despejando-se” na parte inferior da página: o casal abraçando-se sobre as ondas sobre a fronte febril de Colin, Anna na praia, sobre as pedras, com o olhar perdido sobre o mar para onde Colin regressou, a imagem final, a contra-capa...

A forma possessiva como Anna deseja manter Colin consigo é notável pela quantidade de imagens em que os vemos abraçados, estejam a dormir, a aproximar-se um do outro, a fazer amor, ou simplesmente tentando proteger-se. Esta importância do corpo é ainda sublinhada pela insistência de vinhetas que focam somente as mãos, como se estas fossem (e são-no) metonímias da presença táctil, do elo desejado, mas também da perda final. Demeter é aliás um excelente exemplo, porque curto, para uma análise formal, e também uma compreensão de que um cômputo de quantidade não é suficiente para a interpretação de uma obra, se não estiver aliado a questões de composição de página, focalização e perspectiva, emprego diegético, ordenação narrativa, e de estilo mesmo. Tem de ser uma convergência de atenções diferenciadas que vão encontrar essa importância do toque.


O título remeterá, imaginamos, para a função distribuitiva e de justiça “ctónica” da deusa grega, mas nada disso é explorado de modo directo ou óbvio. Bem pelo contrário, Cloonan opta sempre por uma certa vagueza que, se por um lado disfarça a simplicidade do seu gesto narrativo e de composição, por outro aumenta-lhe a possibilidade de interpretação. Pois essas simplicidades não são nunca sinónimo de fraqueza alguma.

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