21 de abril de 2014

Piteco, Ingá. Shiko.

Num quadro de discussão atreito a estes livros produzidos pela MSP, será algo inevitável criar uma apertada rede de relações, se bem que nada nos pode impedir de necessariamente fazer outro tipo de ligações, ora com outras obras dos mesmos autores, ora num plano nacional, ora de género, etc. Mas se nos ativermos a estes grupos, diríamos que Ingá está mais próximo de PavorEspaciar, tal como Laços cria uma dupla com Magnetar. A razão destes “pares” deve-se ao facto de que neste livro, tal como no caso do de Gustavo Duarte, estarmos perante uma história dinâmica mas de trama necessariamente linear. Quer dizer, não poderemos olhar para Ingá na expectativa de vermos um exercício de sofisticação no que diz respeito a metalinguagens, jogos pós-modernos, reinvenções “não-naturais” da narrativa e por aí fora... Bem pelo contrário, a narrativa parece criada precisamente para que se possam atravessar vários espaços, cada qual revelando mais uma personagem, sobretudo todas aquelas que compõem a “matéria” da “Turma do Piteco”, e as quais vão sendo introduzidas à la deus ex machina. Mas essa estrutura clássica é perseguida com grande mestria. No interior dessa circunferência, Shiko assegura-se que os ingredientes estão nos sítios certos, nos momentos certos e de forma a que a trama seja necessária em si mesma, jamais parecendo uma lista a ser garantida.(mais)
A primeira característica que, perdoe-se a verdade à la Palisse, “salta aos olhos” neste livro é a qualidade visual de toda a matéria, que a torna particularmente distinta da “escola” a que MSP nos tem habituado, o estilo “limpo” ou “industrial” infantil. Shiko é detentor de um traço que encontra um bom equilíbrio entre o realismo – as cores, em vivas e compelxas aguarelas, delineando bem os contrastes de luz, volumes, tornam sólida essa abordagem, sem deixarem, aqui e ali, de revelarem os seus contornos materiais, deixando ver a textura do papel, os gestos dos pincéis, a acumulação de matizes – e uma aproximação mais “abonecada”, sobretudo quando existem grandes planos dos rostos em cenas mais dramáticas e de acção. A sua escolha em raramente desenhar pestanas nas personagens tornam algumas dessas cenas um pouco estranhas, muito contrastivas do resto da economia visual da história, mas são apenas momentos pontuais e que trazem uma espécie de humor às acções. Nesse sentido, nesse equilíbrio, Shiko recorda autores muito diversos, desde “clássicos contemporâneos” como José Ortiz/Segura (cuja referência não é difícil de adivinhar, ao detectarmos o cameo de Burton & Cyb na curta história do Astronauta com que Shiko participou em MSP Novos 50 [ver imagem alusiva neste parágrafo]) ou pesos pesados do mainstream internacional dos nossos dias como Olivier Coipel e Esad Ribic.

A trama em si tem pouco de complexo, tratando-se de uma missão de resgate (tal como em Laços) e de saída de um lugar inóspito contra um inimigo implacável (tal como Pavor e Magnetar); mas estas outras aproximações dizem mais de uma constante cultural, de fórmulas narrativas das quais é difícil de escapar no interior de certos géneros, do que uma constatação de inscrições similares entre estas obras tão díspares. Mais uma vez, o interesse deste livro estará menos na premissa central, do que na forma como o autor reemprega todo este manancial retirado de um universo já formado para construir algo de novo, ou pelo menos com um novo fôlego. E Ingá, em contraste com todos os outros volumes, é aquele que mais surpreende no “desvio” operado pelo autor sobre a matéria original. A reapropriação no caso de Piteco, uma personagem que nos perguntamos se terá o mesmo “peso” que as outras empregues até agora, pela parte de Shiko, é aquela que parece moldar-se mais de acordo não com a moldura já existente pelas décadas de produção de Mauricio e o seu estúdio mas com uma vontade autoral.

Estas imagens são colocadas em estruturas classicizantes, em que as páginas apresentam composições regradas, legíveis, que asseguram acima de tudo o propósito narrativo dos elementos. Nesse aspecto, há toda uma dedicação ao programa, o que torna a leitura dinâmica e até mesmo célere.

Uma das outras estratégias com que Shiko cria esse tal “desvio”, e que tanto pode ser vista como interessante mas também como cliché hoje em dia é a carta jogada da diversidade cultural no interior da economia ou política da representação. Shiko opta por uma abordagem algo estilizada e “ethnic-cool”, mas tanto aberto a fantasias clássicas do género (de Tarzan a Warlord) como a uma sensibilidade política actual (com tribos etnicamente diversificadas, uma distribuição não-simétrica entre sexos, etc.). Esta atitude “corrige” aquela invisibilidade mencionada na introdução a estes projectos, de certa forma.

Mas a maior trouvaille de Shiko está, claro, na integração da Pedra do Ingá, que é um artefacto existente, situado na Paraíba, cidade nordestina. Ou seja, encontra-se aqui um update e transformação muito inteligente da personagem do Piteco – cujos anacronismos funcionam na perfeição no seu contexto original, de humor infantil, mas ganhando um outro peso actancial nesta versão mais moderta e madura -, um aproveitamento de um legado cultural, até pessoal, do autor, uma inscrição no tecido cultural-histórico real do Brasil, e uma reelectrificação de um seu mistério. Esta Pedra, espécie de muro com mais de vinte metros de comprimento e totalmente coberta de petróglifos que ainda não foram decifrados, e que parecem datar de há milhares de anos atrás (estudos contraditórios apontam para um intervalo de 6 a 2 mil anos, o que é demasiado em termos de margem de erro), constitui um desses mistérios que permite não apenas teorias e posições científicas rivais (cruzamento transatlântico de fenícios versus culturas autóctones) como as mais expectáveis fantasias para-científicas (aliens, what else?).

Shiko não pretende de forma alguma aqui fazer uma proposta ancorada na história, mas criar uma fantasia desabrida, que reemprega elementos das histórias originais de Mauricio de Sousa, ou pelo menos os seus ambientes e personagens, que integra essa Pedra de uma maneira acabada.

Nota: agradecimentos à Panini Brasil, a André Diniz, Pedro Franz, Maria Clara Carneiro, e Sidney Gusman, pela ajuda em obter os livros, e algumas outras questões. Escusado será dizer que nenhuma das nossas posições e/ou leituras responsabiliza terceiros. 

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