17 de abril de 2014

Antologias MSP.

Em quatro publicações com centenas de gestos diferentes entre si, é algo difícil fazer um juízo global, e inevitável que se sintam diferentes intensidades a nível narrativo e/ou visual, que fazem imaginar a possibilidade de um crivo mais rigoroso. No entanto, o objectivo de todas as antologias era duplo: por um lado, permitir um novo “fôlego” a estas personagens através do seu uso por autores alheios à política de estúdio da MSP, e por outro servirem também de uma espécie de embaixada da cultura contemporânea dos quadrinhos brasileiros, tudo isto sob o signo, ou desculpa, de uma homenagem às personagens e ao seu autor, por altura das comemorações. Estamos a falar aqui dos três títulos MSP por 50 artistas, MSP por + 50 artistas e MSP por 50 novos artistas, já que Ouro da casa trabalha exclusivamente com os artistas que trabalham no estúdio MSP, mas dando-lhes a oportunidade de “assumirem” uma linguagem própria, fora do “estilo” oficial (house style).(mais)
No entanto, perguntamo-nos qual será a pertinência a longo prazo de ambas essas vias, já que uma “embaixada”, mesmo dando palco nacional a alguns artistas que trabalham sobretudo a nível regional naquele país imenso, não subsumiria a produção de tantos autores a um tema desde logo espartilhado, mas antes aos ritmos e vontades criativas individuais dos artistas, e o “fôlego” apenas se verificará a longo prazo se se der continuidade às “graphic novels”, ou a outros eventuais gestos que possam surgir. Isto é, tratar-se-ão estes de um episódio curto na longa vida da “indústria” MSP, ou poderá este ser um novo passo de diversificação na sua produção?

Não conhecendo o trabalho de muitos destes artistas, arriscaríamos a seguinte afirmação: nenhum dos autores procurou alterar o “dispositivo” das suas linguagens próprias para se aproximarem do “house style” da MSP, mas apenas abriram espaço para que os “corpos” das personagens (e eventos, se os aceitarmos como módulos recorrentes e variáveis: o rapto de Sansão, o desvio de Cascão da água, etc.) entrosassem nesse mesmo “dispositivo”. Esta última palavra merece alguma explicação. Ele quer dar conta de todos os elementos, apenas isoláveis na análise, posterior à criação que o artista tem à sua  disposição e são por si usualmente empregues, até mesmo fora da consciência da sua separabilidade analítica: os pormenores de figuração, a composição de páginas, as perspectivas e planos no interior das vinhetas, os jogos de cor e de sombra e de linguagem, as opções de simbologia própria da banda desenhada e de onomatopeias, os temas recorrentes e os laços de intertextualidade, etc. Mas também as condições materiais da leitura, desde o suporte (papel e tintas, classicamente) à luz, posição do corpo, atenção, etc.

Adrian Martin, num artigo sobre cinema, intitulado “Turn the Page, From Mise en scène to Dispositif”, explica esse conceito (cujas raízes conceptuais se partilham entre Jean-Louis Baudry e Foucault) da seguinte forma: o dispositivo é “literalmente qualquer coisa que tem a capacidade, de alguma maneira, de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar ou assegurar os gestos, comportamentos, opiniões ou discursos dos seres vivos”. Neles, Martin arrolará o habitual, das confissões religiosas às instituições escolares e prisionais, as fábricas e as disciplinas, os tribunais e os manicómios, enfim, as heterotopias de Foucault, espaços que de facto têm tempo e lugar mas nessa mesma existência disciplinam os outros espaços. Mas além disso, o crítico também falará de “a caneta, a escrita, a literatura, a filosofia, a agricultura, os cigarros, a navegação, os computadores, os telemóveis”, etc.” O cinema é um desses dispositivos, compreendendo não apenas todos os aparelhos técnicos que facilmente se imaginam, mas tudo o que há em torno do cinema para o tornar cinema: do argumento ao trabalho de actores aos actores eles mesmos à recepção. E o mesmo pode ser dito da banda desenhada.

Nesse sentido, é curioso, ou seria curioso, entender em que medida é que os artistas ora encontram nestas personagens e matérias narrativas formas para explorarem o seu próprio caminho autoral, ou até vida pessoal, ra procuram respeitar as regras da casa, ou que tipo de equação é que se forma nesses encontros. Eles são muito diversos.

São por demais as histórias que se entregam a homenagens relativamente simples, ora com as próprias personagens celebrando o aniversário da carreira de Maurício, ora existindo crossovers entre as personagens da MSP e as propriedades intelectuais dos autores (os casos de Ziraldo, Lailson, Christie Queiroz) ou com que os autores costumam trabalhar (Ivan Reis), também se dando o caso de colocar estas personagens em ambientes ficcionais provindos de obras ou géneros famosos (são várias as versões, por exemplo, de cruzamento com Alice no País das Maravilhas). Não se pode ver nessas escolhas um problema, claro está, uma vez que é mesmo esse propósito destas edições (tal como havia sido ainda mais na colecção Mônica 30 Anos): tornam-se, portanto, um ponto de encontro particular.

O mesmo se poderia dizer daquelas histórias que colocam as personagens numa idade adulta e que “redescobrem a infância” por vários caminhos, remetendo precisamente a leitura das aventuras originais ou contemporâneas da MSP num campo nostálgico dos envolvidos (veja-se no texto anterior a questão das relações amorosas). Há ainda um número substancial de narrativas que mostram, de uma forma ou outra, a própria figura de Maurício como uma espécie de Demiurgo do universo (em que as personagens habitam), ou artista moldador da sua matéria expressiva, fazendo com se misturem laivos místicos, metalinguísticos e fantásticos nesses mesmos relatos. Por exemplo, Maurício surge como “pai” das personagens, ou mestre, constelação ou capaz de mover os céus. Neste enquadramento, estamos dentro de um campo muito convencional de homenagens (um pouco como o cliché de, quando algum autor importante morre, as homenagens mostram as personagens a chorarem ou a se despedirem do autor…).

Muitas destas histórias curtas, ou mesmo ilustrações isoladas, vivem numa economia narrativa do “conflito interpessoal central”, que tem sido a fórmula constante de tanta ficção popular, seja na literatura ou no cinema e na banda desenhada, apesar de existirem alternativas. E a Turma, como vimos, vive no coração dessa estrutura. Afinal de contas, não estamos perante experimentalismos a esse nível, sensibilidades menos comuns, buscas pela expansão das possibilidades expressivas e mesmo poéticas da banda desenhada. Nem no material original nem mesmo nestas homenagens. Estamos antes num campo mais circunscrito aos géneros existentes, mesmo que atravessem várias plataformas de redesign (no estilo, cores, narrativas, etc.), reformação (de “gibis” a “livros”), reformulações. Mas “formulações” quand-même.

No entanto, apesar destas descrições generalistas, existem autores que tomaram o seu tempo para de facto lançarem as personagens dos estúdios de Maurício de Sousa em situações diegéticas totalmente inéditas, interessantes e que prometem em si mesmas um desenvolvimento imaginário curioso, o qual se viria a verificar parcialmente nos projectos MSP Graphic.

Um outro ponto de contenção, que abordámos apenas superficialmente no texto de introdução, tem a ver com a representação racial. Apesar da diversidade étnica do Brasil, olhando para a constituição da turma principal, não pode deixar de ser curioso que ela responda a uma representação de uma classe média branca. Essa não é uma questão de somenos importância. É significativo que apenas exista, historicamente, uma personagem negra, Jeremias. Assim como o é que seja focada, nas antologias, exclusivamente por André Diniz, também não sem significado na acção política e social desse autor, que em Morro da Favela cria um espaço privilegiado para abrir espaço de voz a quem usualmente a não tem, uma criação de condições para que as pessoas possam assumir uma voz na primeira pessoa, autêntica, mesmo que atravessa vários graus necessários de factura ou estruturação literária. Além do mais, Jeremias inscreve essa personagem numa tradição africana, incorporando a lenda do monstro Kammapa, dos contos da África do Sul. Olhando para as quatro personagens principais, também não deixa de ser curioso que Cascão possa ser lido de formas não-previstas, preparando-nos sem surpresas de maior que ele seja ora tratado como uma personagem negra assumidíssima por um número de autores (Luciano Félix, Rafael Coutinho, J. Márcio Nicolosi, Romahs, Galvão) ou de formas mais subtis ou ambíguas por outros (Luciano Irrthum, Daniel Brandão, Paulo Visgueiro, João Montanaro, Estevão Ribeiro e Leo Finocchi, e o próprio André Diniz). Nesta constelação de autores, portanto, alguns deles parecem ter consciência, ou pelo menos, avançado pequenos modos de inquirir a dimensão racial da Turma.

Mas não é só. As diferenças a nível da classe social podem também emergir, misturadas com aquela representação “neutra” que mencionámos. Uma das histórias mais bem conseguidas nestas antologias, e que, mais uma vez, quase obriga a reescrever as histórias passadas, as convencionais e oficiais iluminadas por uma nova luz, é a de André Kitagawa. Ora Kitagawa cria toda uma série de pormenores na representação icónica, simbólica e social, que dá mais “corpo”, detalhes que “ancoram na realidade” estas ruas e edifícios. Ao mesmo tempo largando as personagens nesses espaços, recriamos o contexto social. 

A narrativa em si também foca num ponto que, parecendo “típico” – a conhecida característica da “fobia ao banho” de Cascão -, é transformado. Vemos Cebolinha, Mônica e Magali e aproveitarem a possibilidade de tomarem banho na piscina do velho vizinho, mas Cascão a evitar esse contacto, e apenas a rondar a turma… Mais tarde, já no Outono, ele acaba por poder “mergulhar” na piscina vazia, cheia de folhas secas (ou húmidas?). A leitura, porém, que se torna possível é uma espécie de vergonha do menino pobre de estar com os meninos mais ricos, e apenas na ausência do contacto com o privilégio destes é que ele se sente totalmente livre para expressar uma sua alegria própria e um acesso a um espaço proibido socialmente. 

Há casos, porém, em que os conflitos sociais não-ditos das histórias são suspensos, para se tecerem histórias de uma carga emocional inédita nos materiais originais (que, pelas suas abordagens mais convencionais e simplistas, mergulham mais rapidamente no melodrama, numa cadeia de emoções simples, ou mesmo simplistas, do que numa pesquisa sofisticada da realidade humana). Nessa dimensão, é talvez a história de Tiago Elcerdo, por exemplo, a que se providencia como uma história magnífica, totalmente deslocada do ponto de vista das personagens usuais, e criando a “backstory” que leva o Sr. Lau a proteger com tanto acinte a sua goiabeira do Chico Bento e amigos...

Apenas deixaremos uma breve palavra sobre a antologia Ouro da casa, surpreendentemente a menos conseguida das antologias (por haver limitações auto-impostas da parte dos seus autores?, por haver já um treino mental a não cruzar uma certa linha editorial?, por hábito?). Esta antologia torna-se mais interessante pelas informações que revela de algum dos bastidores da Maurício de Sousa Produções do que pelos gestos a integrar este novo corpo de trabalho. Sem esquecer o nível de informação breve e “interessante” de uma revista popular, mostra-se rapidamente o processo de trabalho usual (com muitos conteúdos remetidos ao site específico), as biografias dos colaboradores do volume, sempre com chamadas para o trabalho na MSP, e espraiam-se nas próprias histórias algumas informações da vida longa destas produções. No entanto, sem querer imaginar que existam pressões nesse sentido, nem “segredos ocultos”, e mesmo aceitando que o propósito comemorativo deverá sublinhar todo o esforço, a contínua apresentação de homenagens ao próprio Maurício de Sousa enquanto “pai”, “criador”, “génio”, etc., ou de possibilidade de regressar à infância com a leitura destas histórias, ou dos ingredientes mais usuais de cada personagem, torna algo maçuda a leitura deste volume. Além do mais, o cômputo final em termos artísticos e literários é raramente surpreendente, se não mesmo confrangedor nalguns casos, trabalhando-se sempre num registo seguro e mínimo, mas mais uma vez isso não é de admirar uma vez que temos toda a equipa (dos desenhadores propriamente ditos aos coloristas ou pessoas com outras funções) a desenhar. 

Na diversidade de gestos, haverá intensidades para todos os gostos, naturalmente, como já havíamos dito. Elas criam a possibilidade de imaginar o que seria uma economia de produção diversa, que permitisse uma contínua contribuição da parte de autores alheios à MSP, no regime de “work for hire”, mas antes no de “possibilidade de diálogo”, na fabricação de histórias com estas personagens, espaços e realidades fictícias. Algo semelhante à diversidade de estilos que ocorrem nas versões de banda desenhada de várias séries de animação da Cartoon Network, ou projectos de humor afectos à DC (Bizarro Comics), Marvel (Strange Tales) ou Hellboy (Hellboy Junior). E não poderiam existir aqui expectativas de ver pesquisas fora da economia dos seus leitorados mais expectáveis. Mas mesmo no interior desse espartilho, as antologias acabam por revelar menos surpresas do que poderia ser.
Nota final: agradecimentos à Panini Brasil, a André Diniz, Pedro Franz, Maria Clara Carneiro, e Sidney Gusman, pela ajuda em obter os livros, e algumas outras questões. Escusado será dizer que nenhuma das nossas posições e/ou leituras responsabiliza terceiros. 

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