8 de novembro de 2013

Mais alguns títulos académicos (parte 2)

Crockett Johnson and Ruth Krauss. How an Unlikely Couple Found Love, Dodged the FBI and Transformed Children’s Literature. Philip Nel (University Press of Mississippi). Esta biografia não é apenas sobre a escritora Ruth Krauss e o ilustrador Crockett Johnson, autor de uma muito celebrada tira de banda desenhada, Barnaby (se  bem que hoje pertença mais aos anais da história e dos investigadores, ou de um certo grupo discernido de artistas e leitores, do que à dita memória colectiva, mais ocupada com a “sopa do dia” [e que pode ser apontado como um dos cultores originais do "minimalismo", com Otto Soglow, Bushmiller, entre outros]), mas antes sobre a unidade que ambos constituíram enquanto casal e equipa autoral. Com mais de 250 páginas de texto (e toda uma série de complementos bibliográficos excelentes em termos de arquivismo, uma vez que o autor da monografia utiliza toda a espécie de material informativo possível, desde correspondência íntima a notícias públicas da época), o livro apresenta-se em 28 pequenos capítulos, profusamente ilustrados com fotografias e desenhos (tudo a preto-e-branco, com uma qualidade mediana, mas digamos que suficiente para informar) para acompanhar os caminhos convergentes desses criadores. E se ambos os autores tinham uma carreira a solo, já em si mesma importante, com livros ilustrados, poemas, teatro e banda desenhada, as mais das vezes dirigida a um público infantil, a sua união tornou as forças individuais num dínamo que influenciaria toda a produção subsequente. De certa forma, pode-se dizer, e Nel assinala isso, que Krauss e Johnson contribuíram sobremaneira para a introdução de um certo estilo na literatura (no seu sentido mais alargado em termos de género e formato) infantil a que se poderia chamar “pós-moderno”: um certo uso descontraído e parcimonioso da língua, um uso judicioso do formato e espaço permitidos pelos “picture books”, e personagens crianças que, nas palavras  de Sendak, têm uma “ferocidade natural” (apud 6), e que permitem que se criem narrativas a partir das suas perspectivas, e não da dos adultos moralizantes. Ruth Krauss tem dezenas de livros publicados, alguns dos quais ilustrados por nomes sonantes da história da ilustração norte-americana, mesmo com cruzamentos noutras áreas artísticas, como Ad Reinhardt, Mary Blair e Maurice Sendak, que é revelado aqui como uma espécie de discípulo do casal. Johnson, por sua vez, é sobretudo recordado por Barnaby mas também Harold and the Purple Crayon, que é um desses livros que surge obrigatoriamente em listas da história do livro infantil do século XX, e com razão de o ser.

Atraindo uma certa intelligentsia, como a  escritora Dorothy Parker, que escreveu sobre Barnaby, o casal esteve envolvido também com um certo activismo político, informado por tendências de esquerda como eram possíveis nos Estados Unidos, o que lhes causou alguns dissabores na era de McCarthy. Mas além das suas actividades políticas, os livros que criaram juntos têm contornos, temas e tratamentos que podem ser vistos como estando imbuídos de um certo espírito de resistência e contrários a quaisquer formas de opressão. A leitura, mais que política, ideológica, não é despropositada de forma alguma em relação aos livros do casal (não o são em relação a nenhuma obra, claro, mas há uma certa nitidez neste caso). Essa dimensão melodramática é de certa forma sublinhada no longo subtítulo (e na contracapa), de forma a tornar mais apelativo o livro, sem dúvida, uma vez que a dimensão mais importante parece ser o desenvolvimento intelectual, criativo, artístico, destes dois autores em conjunto. Alguns materiais, como sketches, notas de texto, entrevistas, etc., iluminam a forma como os autores colaboravam ou criavam uma obra a quatro mãos. Seguramente que este será um livro interessante para aqueles leitores interessados particularmente nestes autores, mas também um capítulo da história da banda desenhada e da literatura ilustrada norte-americanas, e ainda os processos políticos do governo, e a forma como intervinham em todas as dimensões da sociedade. Uma fotografia de Jacqueline Kennedy com uma das filhas, descontraídas e com um dos livros do casal, parece servir de imagem de uma espécie de um espaço privilegiado, mas que custou a conquistar [a capa é de Chris Ware, confesso fã de Johnson, como aliás se deve notar]. 

O homem que rabiscava. Vida e obra de  Ivan Saidenberg. Lucila Simões Saidenberg (auto-edição). Uma vez que esta se trata de uma biografia daquele escritor de HQs brasileiro feita pela própria filha, há desde logo uma dimensão que se adivinha aproximar-se da hagiografia. O livro estreito (cerca de 70 páginas) é composto por uma prosa escorreita, de breves parágrafos separados e organizados cronológica e tematicamente, o que permite uma leitura célere e simplificada. No entanto, precisamente por se concentrar no percurso biográfico (de Campinas a Israel e de volta ao Brasil), e procurando em todas as pistas vividas no dia-a-dia o futuro que se conhece (esse pretérito dos leitores e da autora), há uma dispersão por toda a espécie de episódios que um outro tipo de abordagem editorial teria procurado evitar e encurtar, e ligações menos imediatas. Por problemas encaixam-se, por exemplo, algumas das histórias que são retiradas de prováveis conversas repetidas com o pai e são impossíveis de confirmar. Se na primeira pessoa, um testemunho de observação de OVNIs até pode passar por uma fantasia de criança, sobrevivência da imaginação (ou noutro contexto, elemento que constrói uma vivência à margem dos consensos), em segunda mão ganha contornos estranhos e inverificáveis. No entanto, este não pode ser um argumento crítico em relação ao projecto, já que ele é claro no seu propósito. Muitos dos trechos estão escritos na primeira pessoa, fala-se de episódios caseiros, o que aliado aos testemunhos de amigos e familiares tornam este num projecto de amor por um saudoso autor. Além disso, Lucila Simões Saidenberg criou um site onde dá continuidade ao seguimento da construção e defesa da memória da obra do pai, e dá mais notícias sobre futuros desenvolvimentos.

Porém, já todas as informações concernentes à sua carreira profissional, a entrada e saída em plataformas editoriais, as revistas, as relações com outros autores mais ou menos conhecidos, as colaborações (Renato Canini, que faleceu muito recentemente, "durante" esta nossa leitura, na linha da frente, tendo ambos criados, a nosso ver, as melhores histórias do Zé Carioca, alvo de um nosso trabalho), os métodos de trabalho, as produções artísticas e as criações originais ou sobre personagens-marcas registadas da Disney (confirma-se aqui que o Morcego Vermelho e Pena Kid são da sua lavra), são a matéria central de aproveitar a um público de interesses mais académicos. O contexto brasileiro fica deveras mais rico com esta abordagem, já que muitos crêem que os anos de 1971-1984, precisamente o período em que “Said” trabalhou para a Disney/Abril, foram a “época de ouro”. Se é um exagero, pelo menos no que diz respeito à produção brasileira dessa mesma casa, talvez o seja menos, e se confirme até pela sua circulação regular e universal em Portugal. Muitas  das histórias mais rocambolescas e espatafúrdias, e salutarmente hilariantes, de algumas das personagens, Zé Carioca, Peninha, Professor Pardal, Pateta, Pena Kid, Morcego Vermelho, e o impagável Sr. X, dessa fase, são da pena deste autor (sustentadas pelas imagens de Canini, mas também Sérgio Lima, Primaggio Mantovi, Carlos Herrero, Saidenberg criou quase 1000 histórias). Nessa editora, criou ainda histórias de contornos menos humorísticos, ora com as aventuras do Zorro (com desenhos de Rodolfo Zalla), ora com o projecto “de vanguarda”, Crás!, mas também se abordam as colaborações com outros projectos, como O Pasquim, vários jornais locais,

A proverbial “água na fervura”, claro, é inteligentemente deitada pela autora, que não oculta os problemas inerentes às práticas de empregabilidade da época (Saidenberg é despedido da Abril em 1984, possivelmente para não completar dez anos de trabalho, o que lhe daria outro tipo de estabilidade…).
Uma segunda parte é composta por um trabalho escrito e desenhado por Saidenberg, intitulado No Reino das Maravilhas. As aventuras de Rei Napo, o Leão, sendo uma tira humorística, mas de contornos que permitem interpretações de crítica política contra o regime militarista da época (sendo imediata a referência a Pogo, claro). Publicada no City News, um jornal de Campinas, entre a Janeiro a Agosto de 1984, trata-se de uma obra de estilo caligráfico, de duas tiras sobrepostas criando uma composição rectangular (o que a irmana a muitas tiras deste tipo, como o português Abutre, a título de exemplo). Desta forma, o livro não apenas recupera um importante trabalho do autor, como relança a ideia da necessidade de ofertar ao grande público não apenas a recuperação da memória como a circulação crítica das obras e dos autores. Finalmente, uma terceira parte ainda apresenta uma série de colunas do autor, publicadas no Jornal de Hoje, contando "A História dos Quadrinhos no Brasil", que mereceria, por si só, considerações autónomas.

Textual and Visual Selves. Photography, Film and Comic Art in French Autobiography. Natalie Edwards, Amy L. Hubbell, e Ann Miller, eds. (University of Nebraska Press). Apesar de nos estarmos aqui a referir ao volume inteiro, o nosso interesse em “recebê-lo” tem a ver com um único ensaio, colocado em último lugar na colecção, da própria Ann Miller, uma das convidadas das últimas Conferências de Banda Desenhada, e editora deste volume. Em “Autobiography in Bande Dessinée”, Miller dá, por um lado, continuidade a algumas das pistas narratologia começadas publicamente em Reading Bande Dessinée e, por outro, prometidas de serem estendidas no seu próximo projecto com Bart Beaty. Os aspecto mais importantes, a nosso ver, é, em primeiro lugar, o facto de entender como é possível que uma autora, mesmo num texto curto, conseguir criar pistas estimulantes e interpelantes sobre todo um território, ao mesmo tempo que providencia um balanço exímio. Em segundo, tem a ver com o enquadramento da banda desenhada como mais um meio de criação de identidade, que é o alvo e todos os ensaios, que abordam obras literárias, fotográficas, cinematográficas, documentais, e de projectos artísticos complexos como os de Sophie Calle ou da inefável Agnès Varda. Ou seja,, em vez de esperar que se façam sempre colecções monográficas dedicadas exclusivamente à banda desenhada, é ver esta integrada em contextos mais alargados. As editoras, na introdução, citam Michael Sheringham de French Autobiography, de maneira a explicar a noção de “eu textual” [textual self], o qual é “extraído selectivamente do fluxo de uma vida interna e externa, construída na linguagem e moldada numa narrativa”, e a qual “deve… sacrificar inevitavelmente a autenticidade. A produção do eu como um constructo textual é, então, uma forma de alteridade [othering]” (3). Ao lermos estas ideias à luz das considerações de El Refaie, entendemos logo as crises envolvidas no nexo das questões de verdade legal, autenticidade artística e textualidade. Seja como for, ainda que tratada apenas por um dos ensaios, a banda desenhada, surgindo ao lado de obras respeitadíssimas, surge como um território passível das mesmas interrogações.

Iniciando-se com uma breve descrição histórica, sobre o desenvolvimento do género autobiográfico no espaço francófono, a autora rapidamente aproxima-se dos pontos nevrálgicos que identifica nele, uma vez que este meio “trabalha através da metonímia e tende a pôr de lado o documentarismo em nome de uma verdade emocional” (da introdução conjunta, 25), fechando de novo naquela problemática inicial. Esse abandono do documental, ou da verdade judicial justifica-se pela banda desenhada “não se basear no registo mecânico [e portanto no qual] a semelhança é uma questão de grau, e os artistas preocuparem-se com moldar um sentido interno do eu tanto quanto, ou até mais, do que das características exteriores” (243). Os artistas utilizarão, inclusive na autobiografia, máscaras, referentes icónicos, manchas ou aquilo que nós mesmos chamámos noutro contexto de “fantasmas de tinta”. “A criação de um eu autobiográfico”, escreve Miller, “depende do potencial do meio para a selectividade e a modalização” (249). É assim que neste curto texto, analisando autores como Vanoli, Konture e Trondheim, se auscultam essas facetas mutáveis do eu construído textualmente.
Nota final: agradecimentos a cada uma das editoras ou mesmo autores respectivas, pela oferta dos livros, ou projectos em pdf.

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