8 de agosto de 2013

A minha avó Conceição. Topedro (auto-edição)

Em mais do que um aspecto, o projecto contínuo de Topedro assemelha-se a algumas das dimensões experimentadas na obra de Edmond Baudoin. Não estamos a querer criar quaisquer laços, directos ou não, de “influência” ou de relações “modelo-variação”, já que a abordagem estrutural, figurativa, estilística e até mesmo sócio-económica do autor português é drasticamente distinta da do francês. Simplesmente queremos apontar uma afinidade de construção ou de atenção que existe entre ambos (e outros autores), nomeadamente no que diz respeito a um certo ar de continuidade de volume para volume - reforçada, no caso de Topedro, pelas características físicas gerais dos seus livros - e da assunção de uma “memória de família”.
Numa outra ocasião, falámos das memórias ou biografias familiares como aqueles trabalhos em que o círculo da experiência da família é tangente, por razões óbvias mas também artística, à do próprio autor. Nestes casos, elaboram-se narrativas (ou outro tipo de projectos) nas quais o autor participa enquanto sujeito autobiográfico, mas pode haver uma deslocação do foco, da agência dos eventos, para um outro sujeito. Se pensarmos em autores como Art Spiegelman (Maus), david B (L’ascencion du haut mal), Paul Horschmeier (Mother, Come Home), Chester Brown (I Never Liked You), Vicent Vanoli (Pour une poignée de polenta), Alison Bechdel, entre muitos outros, entenderemos o tipo de deslocação que está aqui implicada. É como se a memória apresentada e transformada em texto se alargasse ligeiramente para fora do território do “eu” para ir ao encontro de um Outro, mas que neste caso seria sempre um Outro no interior de uma esfera a que se pode dar o nome de “família”.
Uma primeira inflexão desse conceito está desde logo previsto nos sujeitos que Topedro visita neste pequeno volume. Apesar do título, este livro tem na verdade um conjunto de sete pequenos relatos, cada um dedicado a uma personagem diferente, a saber, “A minha avó Conceição”, “O primo Joaquim”, “A tia Júlia”, “A Palmira”, “O Sr. Eduardo”, “O Mariano”, e o cão, “O Janota”. Nem todas estas pessoas têm elos de sangue com o protagonista (se aceitarmos estarmos perante o “pacto autobiográfico”, fazendo coincidir o autor que assina como Topedro, o “eu” que narra que se instala nas pequenas diegeses), mas todas elas acabam por gravitar em seu torno, nas memórias da infância, da adolescência, de um tempo pretérito, aliado também a deslocações geográficas, que acabam por coalescer numa ideia alargada de “família”.
Se Baudoin também criou livros em primeiro lugar sobre as suas próprias experiências, ora veladas ora assumidamente na primeira pessoa, rapidamente começaria a explorar histórias envolvendo os seus familiares: o avô materno, depois o paterno, a mãe, o pai, o irmão, os filhos, as companheiras… A associação a essas memórias de  família, e até mesmo a locais particulares é também seguida por Topedro, que vai aumentando a esfera dos seus relacionamentos, quase que obrigando a uma leitura conjunta dos livros (ainda que nada nos permita de assumirmos que “conhecemos” o autor empírico, sujeito independente e autónomo da imagem que se vai criando ao longo das leituras dos livros). Forma-se uma biografia diversificada. E, tal como havíamos pensado em relação a Baudoin, também sentimos aqui que estas flutuações entre vários objectos/sujeitos, este oscilar entre tempos diversos, estas travessias de espaços e relacionamentos, acabam por fortalecer uma assunção última, que é a da humildade e pertença ao género humano. Os autores não pretendem distinguir-se acima de nada, nem distinguir o que lhe pertence acima do que não lhe pertence, mas pretende distinguir tudo como seu, e esse objectivo é cumprido pela produção dos seus livros. De certa forma, é como um pequeno gesto - e estas histórias vão das 12 páginas da avó Conceição às apenas 2 do Mariano e do Sr. Eduardo - que apontasse para estas pessoas e se se afirmasse “este é meu”.
O aspecto físico da publicação, já de trás, continua a mostrar esta espécie de canhenhos nos quais são capturadas as memórias intempestivas, de forma caligráfica: a linha urgente, as formas quase incompletas, as rápidas pinceladas de aguadas para dar volume, cor ou padrões, o cenário quase mínimo, a letra cursiva, a composição de página fragmentada, os textos quase lacónicos e de informações em bruto. O que aumenta essa ideia de programa necessário à salvação da memória, no momento em que ela assalta aquele que rememora. Como se estas pessoas não fossem mais do que fantasmas, que urge captar e transformar em linhas decididas em papel, para que as possamos ler e partilhar. Através do acto da escrita e desenho das histórias, estas pessoas apenas nos chegam a nós por serem dele, do autor, e daí que se fortaleça essa mesma pertença familiar.
Nota final: agradecimentos ao autor, pelo envio do livro.

1 comentário:

topedro disse...

a autoria tem pouca autoridade sobre as leituras, seja institucional, carismática (no meu caso), ou de conhecimento;
mas registo, por curiosidade, a identificação com "...uma assunção última, que é a da humildade e pertença ao género humano." e com a consideração que se lhe segue...
e já agora o agrado por o meu livro ser objecto duma leitura perspicaz e com pistas didácticas que até a mim são úteis.

obrigado, Pedro