16 de julho de 2013

Zines da Morta, sob o signo do sexo.


Uma vez que o evento Feira Laica terminou como tal, a Feira Morta herdou alguns dos seus elementos. Deixo à discussão de pessoas com maiores conhecimentos qual a transformação profunda, se bem que imaginemos que a Morta teve uma dimensão musical mais desenvolta, e que em termos comerciais – para os vendedores de publicações, zines, múltiplos, etc. – a situação não tenha melhorado. Não obstante essas limitações de organização e de público, aqueles que publicam edições independentes, sobretudo fanzines de ilustração e banda desenhada, ainda vêem este pequeno certame como um local ideal para fazer lançamentos. Passamos à discussão de algumas publicações lá encontradas, algumas das quais novas, outras que já estavam disponíveis anteriormente, outras a que não tínhamos tido acesso, etc. Avisa-se, claro, que existiam muitas outras publicações, mas não se puderam adquirir todas. Curiosamente, muitas delas versam de uma forma ou outra questões sexuais.

Lovebirds (The Human Ornament). Astromanta (Clube do Inferno). Comecemos pelas publicações do Círculo do Inferno, a que já havíamos feito menção, por ser uma plataforma informal de um punhado de artistas que criam fanzines a solo ou em colaboração entre si, mas que parecem criar um quadro de alguma consequência nessa mesma organização (tumblr). Depois de um zine exclusivamente dedicado a um riff sobre temas e figuras de uma certa mangá, em colaboração com Hetamoé, o autor vira-se para uma breve história “desviante”. Astromanta explora aqui uma certa virulência do sexo, em torno de relações homossexuais BDSM. A representação das personagens – uma personagem obesa e peluda, aparentemente pobre, a caminhar sobre paisagens urbanas desoladas, a utilizar transportes públicos, e o “homem-ornamento” jamais revelando o seu rosto sobre a máscara SM, e uma terceira mais “despachada” – cria um ambiente social algo negativo, o que poderá iluminar uma perspectiva desequilibrada sobre este universo. Não é clara a intriga, assim como não é clara a hipotética resolução. Sentimos que a personagem obesa se sente triste, ou culpada do acto, e que o “homem-ornamento” parece ser indiferente ao que lhe sucede ou à sina dos seus companheiros ou clientes ou usadores, preocupado talvez apenas com a sua satisfação comercial e divulgação mediática. Porém, tendo apenas 25 imagens (uma vinheta por página), estamos em crer que essa ambivalência é propositada na economia do pequeno livro, querendo antes criar um ambiente irresoluto e aberto. A atenção para com a forma (menor que A6, cantos exteriores arrendondados, papel de gramagem superior e rosa) é significativa, e dá um toque de romanticismo ou intimidade totalmente ausente na intriga, aumentando a ideia de comentário enviesado. Os desenhos recordam de alguma forma Pepe del rey, mas sem a mesma desenvoltura ou intensidade; há antes uma suficiente conquista do que se quer representar, mas sempre deixando uma película de low fi muito atinente ao objecto todo. 
Onahole. Hetamóe (Clube do Inferno). Este zine é mais clássico no seu formato de fotocópias A4 dobradas e agrafadas (na imagem inicial, no canto inferior esquerdo) e, no mesmo registo cru e gestual que o projecto anterior: imagens feitas a linhas espontâneas, tintagem com caneta, criação de texturas básicas com sujidades (corrector branco, grafite, tinta, toner?), com figuras parciais apenas revelando as partes do corpo necessárias à intriga minimal, e com uma composição simples mas evocativa (nalguns aspectos, recorda a abordagem de Aidan Koch, mas sem a mesma calmia poética, antes procurando um incómodo, nervoso trilho), cria desde logo um campo de referência de estilo mangá para mergulhar imediatamente na sua matéria. “Onahole” é o nome que se dá a um produto em silicone que serve para a masturbação masculina, uma espécie de vagina (ou ânus, ou outras versões mais complexas) e é o mote da publicação. Esta história oscila entre texto manuscrito em letras imensas ou dactilografado, acreditando que mima uma alteração na forma como uma mesma voz se dirige à hipotética protagonista ou então alterando as vozes dos participantes. E as imagens mostram flores, um cavalo numa floresta, um pénis intumescido, uma jovem rapariga com ar de adolescente mangá perdida e, numa cena, aparentemente em dor (possivelmente de uma penetração forçada ou dolorosa). Ainda mais dúbio que Lovebirds, também esta pequena narrativa cria uma ideia de alguma violência sexual, ainda que não seja decisiva qualquer leitura. Até certo ponto, o que se cria aqui é um espaço de indeterminação mas cujos elementos são suficientes para que se forme uma ideia dessa mesma violência sexual, e tentamos imaginar quem é o perpetrador e quem a vítima (se bem que pelos pesos sociais, não seja difícil adivinhar). Recorda um pouco a animação Lechapeau de Michèle Cournoyer, mas em que as transformações entre os objectos heteróclitos são apenas decifradas por intermédio do enigma criado na sequencialização das imagens, e a noção é mais indefinida. Se explorarmos a ideia de que estes objectos, os onahole, são apenas uma reificação absoluta e espectacular do corpo feminino, a violência está na sua própria existência e fabricação. Porém, a associação a flores e a repetição da palavra “growing” talvez queira apontar uma outra direcção: a da celebração da descoberta, sendo este um dos seus possíveis caminhos.
Radiation 1. Mao (Clube do Inferno) A associação deste fanzine à ideia de sexo talvez seja mais dúbia e frágil. No entanto, arriscamo-nos a encontrar nos interesses do autor, provindos da publicação anterior, aspectos de uma biologia alienígena de onde flui a compreensão de que o sexo é, para além de uma excelente forma de reprodução que leva à diferenciação dos espécimes, divertido. Até que ponto estará Mao aqui sob o signo de um projecto como Bleu, de Trondheim? Também esse outro projecto parecia explorar a ideia de uma banda desenhada abstracta com criaturas minimalmente construídas (manchas de cor, no caso do autor francês). Esta banda desenhada não apresenta qualquer cenário ou elementos ancoradores, mas o tipo de composição “retórico” e judicioso incute um decidido desígnio de significado: a partir de uma estrutura rectilínea (biopolímeros?, aminoácidos?, que sabemos nós?) surge uma célula (?), que se multiplica e diferencia, até se formar numa espécie de organismo, que parece absorver outro idêntico para se transformar, para daí vermos uma dança entre formas ou criaturas diferentes num sistema ecológico abstruso. As formas diferenciadas nascem de uma hipotética radiação, de uma mutação causada externamente, ou dos encontros (que imaginamos sexuais) entre si? Estaremos de facto a testemunhar funções biológicas, desde a alimentação a simbioses e parasitismos a reprodução, morte e algum tipo e organização social? Ou simplesmente um delírio de formas de linhas sobre papel? A numeração deste zine faz-nos imaginar uma continuação que nos poderá ajudar a decidir, mas não há dúvida de que se faz aqui uma celebração do vivo, terminando numa apoteose de formas orgânicas, organizadas numa sinfonia visual.
9:2:5. André Pereira (Clube do Inferno) O último zine deste colectivo informal não toca no mesmo tema. Bem pelo contrário, foca numa realidade muito comezinha dos nossos dias e lugares. Um primeiro factor que interessa salientar é o facto de que todas as páginas, de capa a capa, apresenta uma grelha regular esquadrinhada de 4 por 4 vinhetas rectangulares, com algumas excepções onde uma série de vinhetas se funde numa maior (quase sempre horizontal). Além disso, mesmo durante a diegese central, o autor não as preenche a todas, criando uma velocidade arrítmica, e causando transições problemáticas mas cheias de significado - para além de pausa, criam um espaço de reflexão e distanciamento entre as “partes”. Pelo contrário, porém, o autor não se coíbe de fazer variar a distância entre a perspectiva e as personagens, usando desde focalizações distantes e panorâmicas a dramáticas aproximações. Podemos dizer que 9:2:5 é uma obra autobiográfica, se bem que esta informação exige alguma informação extratextual e quase biografista. Talvez o único dado relativamente público seja o de que André Pereira se encontra a trabalhar (desenho) num dos livros que compõe a grande saga de Super Pig, a personagem de Mário Freitas, editada pela Kingpin, e essa produção seja matéria no fanzine. A partir daí, poderemos acreditar no “efeito de realidade” sobre as outras informações aqui exploradas. No entanto, o autor não parte de um registo naturalista: à la Warren Craghead, por exemplo, ele cria espaços apenas usando pormenores deles, sendo suficientes para criar a ideia de amplitude, distância ente objectos ou relacionamento deles com os protagonistas; não se coíbe de empregar efeitos fantásticos ou “típicos” da banda desenhada de humor para dar conta de comportamentos banais humanos, desde perscrutar uma bancada cheia de livros a jogar no computador (League of Legends, pelo aspecto da coisa e o linguajar à volta), mas acima de tudo utiliza estratégias de repetição do posicionamento dos corpos e das focalizações para dar conta de um aborrecimento tremendo. Podemos dizer que não se passa nada em 9:2:5 mas essa é mesmo a importância crítica do zine, é que, por um lado, por mais que nos esforcemos – e esse esforço pode parecer quase invisível e “slacker”, mas a ironia é que as pontas daquele que existe estão lá de facto - não se passa nada, e, por outro, no não se passar nada poderá passar-se alguma coisa digna de observação e, claro está, e eis a prova, de transformação em matéria de banda desenhada.
Basket666 e Italian Chocolate. Daniela Viçoso (auto-edição). Estes dois fanzines são antes dois doujinshis, isto é, “fanzines” em japonês, uma vez que participam da cultura à escala global mangá. Uma vez que já tecemos considerações breves e superficiais sobre o papel da mangá fora do Japão, e o peso que tem na economia dos contextos nacionais e o valor que assume junto ao seu público imediato, tudo questões analisadas por sociólogos ou outros investigadores, lancemo-nos directamente à leitura das duas publicações. De acordo com as informações acessíveis (blog, tumblr da artista, e outro), estas parecem ser as primeiras publicações de Daniela Viçoso, sendo a primeira uma colaboração com Catarina João [ver secção dos comentários]. No seguimento do que dissemos a propósito de TheHeart of Thomas, estes dois zines, que têm histórias completas no seu interior, inscrevem-se ambos naquele género sobre amores entre rapazes, se bem que Basket666 não implique directamente um relacionamento entre Ega e Baltazar e o segundo revela uma abordagem pornográfica, explícita, mas totalmente integrada na relação entre os protagonistas, e não de uma forma titilante e gratuita. Basket666 está em português e é cómico, sobre dois rapazes que desejam inscrever-se num torneio de basquetebol escolar, mas não têm equipa e se vêem forçados a recorrer a ajudas sobrenaturais, fazendo-os tombar numa situação bicuda. Podemos imaginar que a história continuará, mas ao mesmo tempo também há razões para crer que é uma história singular entre personagens que poderão regressar noutro contexto, tendo em conta a forma como elas são desenvolvidas e apresentadas em vários desenhos no tumblr referido. O segundo zine tem como título completo italian chocolate/pizza & marshmallow/windy nights e é em inglês e é mais sério, e romântico. Seguimos aqui a história de dois japoneses, um aparentemente treinador de futebol, o outro jogador. Estas informações diegéticas nunca são claras nem directamente expostas, tal como a backstory, apesar de existirem sempre referências a um contexto maior, aumentando assim a sensação de que se tratará de um universo desenvolvido e ao qual apenas temos um acesso parcial mas, mais uma vez, se nos permite imaginar que voltaremos a ele em gestos posteriores. Seguimos aqui uma tarde em que os dois se reúnem, e caem nos braços um do outro. O foco é totalmente a dança emocional entre as duas personagens, o seu encontro e a forma como continuam a construir a relação, no pleno coração do género yaoi. Se não estivermos em erro ao identificar Daniela Viçoso como a artista de ambos os títulos, seguem-se estratégias similares. Uma composição sóbria e retórica, com algumas estruturas montadas em linhas diagonais e vinhetas concentrando-se em gestos, sobretudo íntimos, de toques e olhares. A artista é cultora de uma figuração plástica, estilizada, um equilíbrio entre o arredondado e o anatómico, respeitando o espectro do shoujo mangá, mas em alguns aspectos mais próximo do ratio do shonen [de novo, ver secção de comentários]. No entanto, emprega um traço mais fluido e nervoso, que garante um charme particular às suas figuras, uma maleabilidade que lhe permite ora empregar técnicas de distorção e simplificação para efeito cómico, como uma maior modelação para expressar emoções. A autora é particularmente feliz na representação de gestos, posições e interacções físicas entre as personagens, fruto de uma compreensão da anatomia dinâmica para o desenho narrativo. Apesar das várias formas como criticámos a mangá feita em Portugal, que as mais das vezes se entregam a meros exercícios de imitação e derivações desinspiradas, encontramos aqui, apesar de se inscrever cabalmente nessas categorias, matéria seguramente a seguir de autoras capazes de evocar verdadeiras personalidades e relações que soam a vivas.
Nota final: ainda adquirimos um livrito de Amanda Baeza da colecção mini kuš! (mostramos a capa na imagem inicial), mas falaremos dele numa ocasião futuro, e de modo mais desenvolto.

3 comentários:

daniela viçoso disse...

Olá! Queria agradecer a review no seu geral, e queria aproveitar também corrigir que o Basket666 é tanto da minha autoria como da Catarina João, argumento, cleaning e lettering. A história é a cargo das duas e é o primeiro capítulo duma história ao típico shounen, com desporto e amizade e outras coisas variadas - que vai ter surpresas que não são assim tão surpresa se nos forem aos blogs ups. Para terminar obrigada novamente por um comentário mais conciso sobre o meu estilo e storytelling que qualquer professor que tive nas belas-artes.

daniela viçoso disse...

perdão: *Catarina João que fez o argumento, cleaning e lettering.

Pedro Moura disse...

Olá, Daniela,
Obrigado por deixares os teus - tratemo-nos por tu - esclarecimentos e comentários. Aconselho vivamente os leitores interessados a seguirem os desenvolvimentos nos teus espaços, e espero ver novas publicações em breve.
Até breve!