1 de março de 2013

Billy Bat. Naoki Urasawa (Panini Manga)

Semana Urasawa 5. Tal como ocorreu em relação a outras séries ainda em curso (Homunculus, Prophet, etc.), as notas de leitura em relação a Billy Bat poderão conter aspectos provisórios que encontrarão inflexões importantes, ou totais transformações, com o fecho da mesma. Do que conseguimos apurar, a edição espanhola, que seguimos, é aquela das línguas europeias que mais avançada se encontra em relação à original, estando previsto o 8º volume (tankobon) para sair já este Março. De novo se asserta aquela impressão (que carece de estudo) de que a publicação, circulação e distribuição da mangá, ou da banda desenhada, não é de todo idêntica à de outro tipo de produtos culturais, dependendo de vários factores que impedem uma homogeneidade da sua presença no mundo.
Tal como as séries “maiores” de Urasawa, também Billy Bat se inscreve na sua tradição pessoal de um thriller espraiado o mais alargadamente possível em termos de espaços, tempos, e personagens. Desta feita, poderíamos tentar descrevê-la como uma trama complexa em torno da procura de um autor de banda desenhada nipo-americano, Kevin Yamagata, pelas raízes ancestrais de uma personagem que ele julgara ter criado originalmente, Billy Bat, um morcego detective, mescla de tradições díspares da banda desenhada norte-americana da primeira geração dos comic books, a saber, e sobretudo, os géneros dos “funny animals” e dos “crime comics”. Yamagata descobre que esta personagem é semelhante a uma outra já existente no Japão, onde possivelmente a terá visto e esquecido, mas essa busca acaba por – típico mecanismo de Urasawa e do seu co-argumentista e editor Takashi Nagasaki, que tem o nome impresso na capa – ir tropeçando em sucessivas complicações e aprofundamentos: afinal esse morcego é um aparente símbolo antigo, personagem de um manuscrito do Japão feudal, projecção de uma imagem de Deus na Palestina do século I, um desenho na superfície da Lua antes da chegada de Neil Armstrong, etc. Tal como a identidade do Amigo em 20th Century Boys, ou as razões de destruição dos robots em Pluto, o cerne da identificação desse morcego não será tanto um McGuffin, já que importa mesmo descobri-lo, mas um núcleo que se encontra em permanente movimento, de fuga, arrastando com ele a amplitude da narrativa.
Uma vez que o protagonista é um autor de banda desenhada, e o morcego Billy Bat é uma personagem de comic books (apesar de a ultrapassar em várias direcções), é natural que este mundo social seja explorado de forma constante pela série. Mas o primeiro aspecto a destacar dessa exploração é a materialidade e integração das próprias histórias de banda desenhada do “Billy Bat” no interior de Billy Bat, de Urasawa e Nagasaki. O primeiro capítulo desta nova série, como se sabe, é feito num estilo totalmente distinto ao seu corpo restante, mais consentâneo com o estilo de Urasawa. Esse primeiro capítulo é totalmente a cores - o que não corresponde aos modos de produção mais usuais na banda desenhada japonesa, salvo raríssimas excepções (Junko Mizuno) ou salvas as primeiras páginas de alguns capítulos de séries mais famosas, quando abrem as páginas das “listas telefónicas”, cujos cadernos nos extremos são a cores e têm publicidade. Apresentam ainda personagens de animais antropomorfizados, que não é algo que Urasawa tenha experimentado ao longo da sua carreira de um modo sustentado ou pelo menos nas suas bandas desenhadas. Finalmente, o facto de parecer impresso num papel amarelecido ou mesmo envelhecido completava a breve e leve ilusão de que se trataria de um comic book da década de 1940, integrado na revista e, depois, no primeiro volume da série. Rapidamente descobrimos, no interior da diegese maior, de que não estamos perante senão a criação de Kevin Yamagata, logo, de uma história interpolada, num nível interno. Isto complicar-se-á, pois mais tarde descobriremos e leremos histórias – e, por vezes, apenas os manuscritos a lápis, por acabar e por publicar no universo diegético – de Billy Bat feitas pelo autor japonês Kintaseju (uma espécie de duplo ficcional de Tezuka, apesar deste existir neste universo, que se refere de forma constante ao “mundo real”) e, nos Estados Unidos, pelo assistente de Kevin, Chuck Culkin, que usurpa aos olhos do grande público a criação e propriedade da personagem, e a transforma num ícone transgeracional e nacional, com parques temáticos e programas de televisão em prime time, graças a uma outra personagem aparentada a Walt Disney… Como se compreenderá, a tentativa de expor todos os pormenores da intriga equivaleria quase ao volume da obra original, e encontra desenvolvimentos ínfimos de uma importância extrema. Urasawa parece levar a uma forma extrema a expressão inglesa “the plot thickens”…
O que importa, para já, desta integração das múltiplas instâncias da(s) série(s) “Billy Bat” nesta obra é a disseminação de variadas estratégias narrativas, conforme o autor, ora de crime comics, ora de funny animals humorísticos, e a interpolação constante, por vezes de um número de páginas, por vezes apenas de uma vinheta marchetada, na própria composição da banda desenhada de Urasawa. Uma remediação interna do próprio meio muito curiosa.
Na verdade, aquele primeiro capítulo surgiu isoladamente na revista de pré-publicação, o que lançou alguma celeuma junto aos leitores mais distraídos de Urasawa, como explica Orsini no seu livro (págs. 163-164), já que os mais atentos imaginaram de imediato tratar-se de uma qualquer estratégia que faria sentido mais tarde. E assim é, como vimos. Menos do que uma mise en abîme, esta narrativa encaixada não é algo de novo na obra do próprio Urasawa (e muito menos na longa história do próprio meio), até mesmo no que diz respeito à procura de um certo grau de ilusão material e circunstancial que permita lançar nos leitores uma certa dúvida sobre a relação entre os objectos ficcionais ofertados e a sua materialização histórica, a sua realidade tangível, a sua inscrição no mundo real. De novo tomando Orsini como guia (já que este é um dos temas alistados pelo autor francês), encontramos estratégias similares em Monster, na inclusão do suposto conto checo “Obluda”, escrito e desenhado por um tal de Emil Sebe, ou a colecção de documentos em Another Monster, para mimar um verdadeiro inquérito policial em torno da história intricada entre o Dr. Tenman e Johan, ou a nota para a reunião secreta no volume 12 de 20th Century Boys, impressa e incluída, mas solta, nesse mesmo volume, ou a relação dessa série com a canção “Bob Lennon”, realmente gravada e incluída por Urasawa…
É natural que haja sempre um grau de incompletude desse “complemento de realidade”, já que todas essas informações apenas aparentemente paratextuais surgem em veículos gravitando na proximidade física dos livros, e experiencial dos seus leitores, jamais fazendo derrotar a ideia de que correspondem somente a esse universo ficcional. Seria mais curioso lançar essas pistas fora desse mesmo âmbito imediato, arriscando mesmo que não houvesse coincidência de leitores ou a descoberta do projecto comum, mas podendo alargar-se ao universo inteiro. Mas aí estaríamos mais próximos da realização de Uqbar (J.L. Borges) e não tanto de um texto multímodo de uma obra de mangá contemporânea. Nesse sentido, esses paratextos são mesmo parte integrante dos textos centrais, a ler e saborear, mas as suas condições estruturais e, por vezes, materiais, lançam como que dendrites que expandem a experiência desse mundo, até mesmo de uma forma física efectiva (temos mesmo de escutar a canção “Bob Lennon”, temos de apanhar e manipular a nota, lemos o comic book dos Billy Bat de um modo cognitivamente distinto do resto da história Billy Bat - devíamos mesmo procurar uma forma de distinguir a série enquadrante e a obra de Yamagata).
Em termos analíticos, estas estratégias enriquecem a experiência da leitura, e Billy Bat é aquele título de Urasawa que mais parece entrelaçado com a realidade histórica. Urasawa e Nagasaki tiram partido de toda uma série de factos históricos, comprovados, desde a misteriosa morte de Sadanori Shimoyama, presidente dos comboios japoneses no pós-guerra, e provavelmente envolvido numa intricada rede de pressões políticas, à biografia pormenorizada de Lee Harvey Oswald (desde a sua estada no Japão enquanto soldado à alcunha de “coelhinho”), e passando necessariamente por algumas das dimensões sociais da banda desenhada da época, nas suas vertentes da mangá do pós-guerra, os comic books norte-americanos de super-heróis e/ou crime, e o universo da Disney.
A repartição da intriga em vários “núcleos” espácio-temporais – (até agora:) o Japão no imediato pós-guerra como o “eixo central”, mas ainda o Japão feudal, os Estados Unidos na passagem de 1950-60, envolvendo o violento segregacionismo racial no Sul, o assassinato de Kennedy, a ascensão dos parques de Billy Bat/Disney e de uma marca de cola, a vida de Cristo, a de São Francisco de Xavier, etc. - poderá parecer ainda mais discordante do que no caso de 20th Century Boys, dada a centralidade do grupo de amigos nessa outra saga. O que une estas linhas aparentemente díspares, no caso de Billy Bat, é precisamente essa figura misteriosa do morcego. De certa forma, faz-nos recordar o modo como David Soares teceu o seu romance Lisboa Triunfante, o qual conciliava momentos divergentes no tempo em torno de duas figuras metafísicas, a Raposa Salta-Pocinhas e o Lagarto; no caso de Soares, porém, como o título indica, havia uma concentração espacial. Até ao volume lido, existem indícios de que Billy Bat é uma figura que se encontra num plano existencial acima dos meros mortais, mas nada é claro. No entanto, à medida que lemos as páginas desta convoluta intriga, vamo-nos apercebendo de como a linha de testemunho que as une é coerente (mesmo que ainda não possamos descortinar a sua forma final), e como as visões de Judas, um manuscrito japonês do século e a missão de Oswald (que é “recuperado” num movimento idêntico em relação a Judas enquanto aquele que se teve de sacrificar em nome do grande plano de Cristo) e a morte de John Kennedy estão subsumidas a um plano.
Portanto, de um modo muito diverso dos outros livros que conhecemos de Urasawa, há um nível de existência bem distinto. Se a existência de sonhos portentosos ou visões súbitas é uma constante na sua obra, a possibilidade das viagens tangíveis ao mundo da memória é algo recorrente, e até os paradoxos criados pelo acesso a realidades e passagens virtuais, em Billy Bat dá-se algo de inédito: as alucinações que várias personagens têm com o suposto Billy Bat parecem ter lugar num espaço intervalar em relação ao mundo diegético. Não se trata somente de uma memória, nem tampouco de um sonho, mas possivelmente “alucinação” não é suficiente como descritor da situação. É como se ela permitisse às personagens, no interior da história que lemos – que nos dá acesso a um universo fictício mas coerente -, acederem a um outro nível ficcional, mais próximo da superfície material da própria ficção que se desenrola. O tal nível metafísico que se parece prometer e apenas o desenvolvimento da narrativa poderá ou não comprovar.
Uma das consequências do alargamento - temporal, espacial, de níveis existenciais, de acontecimentos  - a que aludimos acima  é também o da multiplicidade e variedade de personagens. Se se reconhece em Urasawa uma atenção para com personagens diversas em termos de género, idade, ocupações profissionais – o que o distancia de outras mangás como Dragon Head ou Gantz, por exemplo, ou mesmo os universos confinados dos super-heróis convencionais -, em Billy Bat essa diversidade é surpreendente. Por mais concentração que haja em Kevin Yamagata e a figura do morcego, há uma atenção expandida a um grande número de actores. Bastará olhar para as capas dos sete volumes lidos: Kevin, Diane, uma negra norte-americana, Kanbee, um ninja do século XVII, o Billy Bat “Disneyficado” de Culkin, Lee Harvey Oswald, e Jackie, uma adolescente nipo-americana. Mas de forma alguma este número (e aquele que perfará os volumes todos) se aproxima da rede actancial deste título. Onde a abordagem estilística é relativamente contida, a estruturação narrativa é complexa (mas, como vimos nos textos anteriores, inteligível).
Seria perfeitamente possível analisar ponto por ponto, pormenor por pormenor, o que os autores exploram em relação ao tal mundo social da banda desenhada da época para tentar compreender em que é que tocam factos históricos ou pelo menos plausíveis (o surgimento do parque temático da Disney/Billyland como desenvolvimento transmediático de um universo original de banda desenhada e animação, a forma da sua produção quer no Japão quer nos Estados Unidos, a relação dos primeiros com o kamishibai, o reconhecimento do público da alteração dos autores, recordando o que sucedera com Carl Barks, etc.) e onde é que se encontram projecções de desenvolvimentos mais tardios (a fama dos autores e a sua assinatura, a ideia de uma banda desenhada de contornos mais maduros lida por públicos mais adultos, a sua projecção amplificada, etc.). Ainda que não de um modo totalmente histórico-biográfico, como num caso de El Invierno del dibujante ou Les aventures d'Hergé, ou sequer metalinguístico, como um Flex Mentallo, ainda assim poderíamos considerar parte do programa de Billy Bat uma reflexão sobre o papel e impacto da(s) banda(s) desenhada(s) no mundo.
Nota final: agradecimentos a Richard Câmara, por ter servido de correio.

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