26 de novembro de 2012

Citizens of No Place. Jiminez Lai (Princeton Architectural Press)

Tentar encapsular toda a actividade da arquitectura numa só definição é uma tarefa impossível (talvez até indesejável), que tanto se pode conformar ao seu lado mais conceptual e artístico, no sentido de esculpir o espaço com uma linha, ou aos aspectos imediatamente relacionados com as responsabilidades materiais e sócio-económicas do projecto. Afinal, quando usamos o verbo “arquitectar” estamos a referir-nos a uma maneira particular de pensar, que toma em conta tanto circunstâncias e pontos de partida como de objectivos particulares, o que a poderia afastar dos conceitos mais livres, sem regras, da mais usual das actividades artísticas ou de expressão. Assim se compreende que em determinados sistemas filosóficos que organizaram e sistematizaram as artes, a arquitectura possa ter ficado de fora (como no caso de Schopenhauer). (Mais) 

De acordo com a arquitecta e investigadora portuguesa Renatta Pascoal (que tem escrito vários papers sobre as relações entre a banda desenhada e a arquitectura, inclusive nas 2as Conferências de Banda Desenhada de Portugal, visando um longo e complexo projecto), a quem devemos muita da aprendizagem repetida no texto presente, existem três processos de cruzamento entre as “metodologias processuais” da banda desenhada e da arquitectura, não necessariamente numa progressão axial. A mais simples de entender será aquela em que se dá, no interior da diegese de uma banda desenhada, a representação de espaços arquitectónicos (o que não compreenderá somente edifícios, claro está, mas toda a intervenção humana no espaço). A seguinte será aquela em que o autor de banda desenhada utiliza alguns dos métodos da arquitectura no seu próprio processo “construtivo” (por hipótese, o uso de secções, ou instrumentos materiais). Finalmente, invertendo a equação do uso, é quando temos arquitectos a adoptar a linguagem da banda desenhada para os seus fins específicos. Pascoal discutiu vários casos, sendo os dos Archigram e do Bjarke Ingels Group, ou BIG, paradigmas da transformação das potencialidades expressivas da banda desenhada em instrumentos dos seus manifestos (em Guimarães decorre, ao escrever estas linhas, uma exposição em torno do projecto Archigram).

Citizens of No Place é uma obra de um arquitecto, Jiminez Lai, e perguntamo-nos se se poderia considerá-lo um “manifesto”. Talvez essa noção seja abusiva neste contexto, mas na verdade o próprio autor emprega-a em várias das suas declarações públicas, e não haverá dúvida de que Lai pretende expor, oferecer ao debate e realizar numa plataforma temporária - o papel - as suas ideias, projectos e soluções, inscrevendo-se portanto nesse terceiro ciclo de entrosamento identificado por Renatta Pascoal. Repare-se no subtítulo com atenção: “an architectural graphic novel”. Independentemente do valor e significado do segundo termo composto, é a sua adjectivação que o transforma, levando-o para um campo próprio. Em suma, este livro não é uma ficção sobre ou com a arquitectura, mas antes um ensaio sobre ela.
Existem personagens recorrentes, mas não se pode dizer que os dez capítulos que compõem este volume se coalesçam enquanto um nexo narrativo coeso e circunscrito. Também existe um conjunto mínimo de situações que farão imaginar a continuidade de um universo - por exemplo, a viagem da Arca de Noé espacial futura, e as relações sociais e espaciais que se estabelecem no seu interior - mas não há propriamente um enredo, mesmo com esses laivos de ficção científica (a palavra  certa seria “especulação”, social e tecnológica). São antes núcleos simbólicos em torno dos quais gravitam os gestos de Lai. Esses capítulos devem ser vistos como os sub-temas ensaísticos que compõem o ensaio maior de todo o livro. São teses, por assim dizer. Por exemplo, “Conversations with a developer” dá o mote para imaginar soluções arquitectónicas várias que poderão surgir no futuro, desde a necessidade de construção em altura até ao limite da troposfera, ou em gravidade zero, ou em casos de extremo separatismo político e mesmo geográfico-físico de cidades, e “Plan v Section” discute uma questão que exporemos adiante, sobre plantas, secções e perspectivas. Além disso, a cada capítulo junta-se um minúsculo mas programático texto em torno de vários conceitos, ou parâmetros, que serão instrumentais em toda esta pesquisa: imaginação, subjectividade, obsessão, projecção, história, entre outros.

A experiência de um espaço, para os seres humanos, não se pode dar senão associada à dimensão temporal. É necessária uma “leitura” do espaço, algo que apenas decorre de uma sequencialidade inerente à nossa própria condição (como queria Kant, é uma “forma pura a priori da intuição sensível”). O transcendente tem de se manifestar numa  forma, tornando-se assim imanente. Vejam-se as palavras de Roberto Bartual sobre este mesmo livro, na qual se sublinha a qualidade das “rotinas do tempo” permitidas pela banda desenhada. Dessa forma, portanto, esta disciplina artística - que não tem necessária ou essencialmente que empregar um tempo linear, mas quase sempre emprega formas de sequencialidade nas suas estruturas, obrigando a uma fruição distendida no tempo - permite uma abordagem mais “natural” à arquitectura proposta, ao contrário dos esquemas mais abstractos, profissionais e objectivos dos planos e mapas. Compreende-se a pertinência dessa ideia num capítulo dedicado à oposição conceptual e de leitura da arquitectura que opõe plantas, secções e alçados, e em que se esgrimam vários argumentos ora em favor de um desses sistemas de representação ora de outro. Em defesa do autor, não há propriamente uma conclusão indiscutível ou uma “vitória”, mas antes uma exposição desses mesmos sistemas, demonstrando a importância da deslocação do olhar, dos instrumentos e metodologias, levando assim a uma ontologia plural da própria arquitectura. Essa questão retoma aqueles elementos que Vitrúvio identificara como fazendo parte da “apresentação” (a dispositio) das ideias ou formas (na sua origem grega, a palavra é coincidente): a ichnographia, a orthographia e a scaenographia, traduzíveis respectivamente como a “planta”, o “alçado” e a “perspectiva”, cada qual correspondendo a um ponto de vista diferente, a primeira “de Deus”, a segunda permitindo uma legibilidade funcional, e a perspectiva levando a uma “relação com uma linha de visão horizontal” (pg. 98). Tudo isso traz à baila as tensões necessárias entre os factores “subjectividade vs. objectividade/ experiência vs. organização/ indivíduo vs. colectivo” (100). Isto faz parte da matéria explorada num dos capítulos, como se compreende.

Voltando ao trabalho desenvolvido por Pascoal, esta investigadora aponta como os dois primeiros elementos, a planta e o alçado, são instrumentos de trabalho fundamentais e indispensáveis na profissão, na objectividade e na metodologia científica da arquitectura, mas que o terceiro, a perspectiva, é também empregue sobretudo pela possibilidade de incutir uma representação mais subjectiva da arquitectura. Daí que tenha sido empregue por toda uma série de movimentos específicos (de novo os Archigram, etc.) nos seus trabalhos para a imediata fruição visual dos conceitos propostos, o que é sublinhado por Lai. Mais, neste livro, esse feito é mesmo exacerbado pelo emprego de personagens, de diálogos e acções permitido pela “forma banda desenhada”, incutindo alguma emotividade, que no fundo é o fito deste livro: a de repensar a relação entre os seres humanos e os modos de representação que os instrumentos da arquitectura propõem. Consistentemente, Lai sublinha a imanência subjectiva, e até retórica, do acto arquitectónico. Este trabalho de pesquisa visual e metodológica - que recorda o de M.-A. Mathieu se bem que com menos inventabilidade e mais ancorada na prática profissional - prévio à efectiva construção arquitectónica pode, ou deve, ser visto como um forte processo, e consciente (esse é mesmo o aspecto mais importante) de mediação. Mas uma mediação que não é aquela feita pelo ser humano e um hipotético lugar, espaço, paisagem, que existiria objectivamente e independente dessa relação. Não, é a própria relação que não só identifica como funda esse espaço.

A banda desenhada permite um determinado tipo de dinâmica, de coerência própria, pelo próprio facto de se constituir como tal. Isto é, ao se apresentar desde logo como essa forma ela permite, ou exige, ou estipula, toda uma série de lógicas que lhe são próprias, incutindo essas mesmas lógicas sobre “aquilo” que a atravessar (o dito “conteúdo”). O desenho de Lai, em termos de figuração, é muito básico, quase infográfico, até mesmo pouco desenvolvido. Visivelmente informado por algumas estratégias da mangá comercial contemporânea, rapidamente nos aperceberemos que a importância desta obra reside menos na sua abordagem pictórica-artística do que na sua capacidade de estruturação do pensamento através d(e algumas das estruturas d)a banda desenhada, recordando dessa maneira algumas das lições de Neil Cohn em como a banda desenhada, ou melhor, a sua “linguagem visual”, se pode tornar em si mesma num veículo de transmissão num modelo comunicativo (tal como sucede com a linguagem escrita ou a fílmica). Ora, se por um lado isso parece confirmar uma certa instrumentalização da banda desenhada e uma redução de uma prática artística a uma mera relação comunicacional, por outro pode-se considerar que o que isso permite é a emergência de novas relações entre forma a conteúdo que passam ao lado das considerações centrais da arte entendida como algo “essencial”, e permite desdobrar os campos que lhe são internos. Tal como há uma distinção (complexa e muitas vezes até ao limite da indiscernibilidade) entre cinema de autor, filme documental, documentário televisivo, série de televisão, filme publicitário, filme de arte, etc., também a banda desenhada procurará territórios diferentes que têm menos a ver com género do que de uso ou fito ontológico propriamente dito. Citizens of No Place, a nosso ver, tem de ser compreendido menos como livro de banda desenhada tout court, mas como “discurso sobre arquitectura (ou sobre representação da arquitectura) em banda desenhada”.

Lai revisita obliquamente toda uma série de intensidades-chave da história conceptual da arquitectura, isto é, não tanto criando referências directas a experiências concretas, datas e biografias, mas reempregando conceitos para os relançar no seu discurso, desde as “máquinas de habitar” de Corbusier, aqui na forma de unidades habitacionais na nave espacial Arca de Noé, a toda a história da arquitectura utópica, de papel, desenvolvida por variadíssimos nomes (e que igualmente influenciaria sobremaneira a, possivelmente, mais conhecida série de banda desenhada que tem a arquitectura como sujeito, a saber, As Cidades Obscuras de Benoît Peeters e François Schuiten). E, de facto, as ideias apresentadas em Citizens são intelectuais e teóricas (acreditando mesmo que a falta de formação nesta área, como é o nosso caso, impedirá de compreender o alcance de certas ideias, formas e propostas).

Lai dedica-se menos à pesquisa da composição de páginas do que à exposição das suas ideias, como vimos, e somente uma prancha não-narrativa apresentada extra-textualmente no livro, reproduzida aqui ao lado, analisada por Bartual no texto citado, parece explorar as afinidades formais entre a banda desenhada e arquitectura para inquirir as suas próprias formas. Dito isto, no interior encontraremos interrogações sobre formas abstractas da arquitectura (que nos recordam o exercício de “formas manipuladas” de François Blanciak), e a sua inscrição em contextos diferentes (alterando-as, claro). Não obstante, nesta prancha notar-se-á ainda uma manipulação da escala a qual, não deixando de permitir que a articulação entre cada vinheta ganhe o valor de contiguidade que é próprio à composição da banda desenhada e usualmente está em jogo nas plantas arquitectónicas, dá-se igualmente um jogo de escalas variáveis que nos leva a coordenar o que se vê com outras dimensões ou ordens de representação. A personagem é representada de perfil e realisticamente, mas as formas vegetais apresentam elementos de secção, tal como os mecanismos automáticos, ao passo que os dejectos surgem de forma reduzida, em silhuetas infográficas, e a vinheta exclusivamente ocupada pelos líquidos transformados e a serem ingeridos surge em grande plano microscópio. É uma outra forma de relançar os elementos a ter em conta na relação micro-macroscómica prevista no trabalho arquitectónico (das condições orográficas e meteorológicas às circunstâncias sócio-económicas, passando pelo programa estético e político e o uso pragmático, etc.), e no símbolo do Homem de Vitrúvio. A identificação do corpo humano enquanto unidade de significado para o trabalho da arquitectura não é jamais negligenciado por Lai, que aborda a questão em vários prismas nalguns dos capítulos.

Citizens of No Place é igualmente um livro que traz para primeiro plano o custo humano do dito progresso da civilização ocidental tardo-capitalista. A imigração, as classes sociais, a estratificação profissional, o advento de diferenças e desequilíbrios em termos de acesso, os cursos ecológicos, são também factores tomados em conta, sem que jamais Lai se torne panfletário sobre esses mesmos temas. No entanto, as suas posições são claríssimas, e pensamos que serão vistas como, nalguns casos, ironias inteligentes que põem em causa práticas correntes, ou noutros, aventam eventuais soluções que apenas beneficiariam o maior número de pessoas e o próprio espaço que elas ocupam.
Nota: agradecimentos a Renatta Pascoal, não só por chamar a atenção para este livro, emprestá-lo, mas ter partilhado o seu saber, que conduziu ao texto presente.

2 comentários:

Renatta Rafaella* disse...

Olá Pedro!
Em primeiro lugar, quero agradecer não só o texto relativo a este autor como também a referência ao trabalho de investigação que tenho desenvolvido, salientando em que parte é que este livro se insere no mesmo.
Posso dizer que o teu texto, de excelente qualidade (assim como os posts que tens vindo a publicar neste blog), chama a atenção para alguns aspectos linguísticos, de estrutura, de representação gráfica e de classificação que passariam despercebidos se a análise deste ensaio de arquitectura fosse realizada estritamente por arquitectos.
Considero este texto muito pertinente, no sentido de contribuir para uma análise inter e multidisciplinar deste ensaio de arquitectura.
Obrigada novamente.

Pedro Moura disse...

Olá, Renata,
Obrigado, mas pelo contrário foi o teu trabalho rigoroso e, pun intended, em construção, que me faz olhar para estas coisas com instrumentos diferentes. Estava reticente na leitura e apreciação deste livro, mas fizeste-me mudar de ideias, e em boa hora.
Espero vir a ler ainda mais teu!
Até breve,
Pedro