21 de maio de 2012

A Cadeira que queria ser sofá. Clovis Levi e Ana Biscaia (Lápis de memórias)

O panorama contemporâneo de livros ilustrados dirigidos a um público infantil - picture storybook seria o termo preciso em língua inglesa - atravessa, em Portugal, não propriamente uma “fase de ouro” ou hipérboles quejandas, mas pelo menos um período de uma oferta não só cada vez mais variada como de qualidade a todos os níveis: a escrita, que tanto respeita a personalidade das crianças sem as transformar em meros receptáculos de pedagogias moralistas, como dos próprios autores, que notoriamente bebem das suas experiências vividas neste local e neste tempo, a ilustração, que se multiplica em vários autores, técnicas, abordagens, níveis de proficiência e relação com os demais elementos, a edição, atenta a formatos, qualidade de papel, a gestão de todos os ingredientes do livro enquanto objecto, a noção de colecção sustentada - um exemplo, a Oqo - ou de individualidade de cada projecto - um exemplo, a Planeta Tangerina -, de memória, que se mostra quer atenta à tradução de “clássicos” quer à disponibilização de novos autores que pertencem a um circuito mais ou menos coeso (graças aos festivais, exposições, salões, prémios, crítica mais organizada, etc.), já para não falar das estratégias de comunicação, de transformação do livro em experiência entre pais e filhos, educadores e educandos, através de material complementar, as sessões de apresentação pública, leituras dramatizadas, jogos, etc. E a recepção académica a estes fenómenos não é totalmente alheia a este fenómeno, demonstrando-se como a aliança entre a abordagem intelectual e culturalmente densa e a criatividade não têm de ser inimigas - quando o são, a primeira acaba por se esvaziar de fitos, e a segunda de força. Em breve esperamos mostrar uma mão-cheia desses projectos, por mais circunscrita que venha a ser essa nossa perspectiva. Falaremos aqui, contudo, apenas de um novo título, que reúne três contos do escritor brasileiro Clovis Levi e da ilustradora Ana Biscaia. (Mais) 

Logo à partida, aquilo que surpreende neste livro é a fuga do seu formato àqueles mais estandardizados do livro “infantil”, em formato de quadrado (quando fechado), ou oblongo, ou de álbum, etc. (se bem que este aspecto se prenda com a procura de diferenciação de que “público infantil” se está a falar, uma vez que este livro depreende a sua leitura directa, e não aquela proporcionada pelos pais; este livro exige autonomia a vários níveis aos seus leitores). No seu interior, verifica-se também uma estratégia que coloca as imagens e os textos, ou a matéria textual e a matéria visual, misturadas, encaixadas, concorrentes na mesma parte do livro, não se procurando zonas de separação, mas antes pelo contrário causando a máxima indeterminação possível, chegando a criar por vezes a ideia de uma ilustração total ou até de páginas de banda desenhada (aspecto vincado pelo uso de balões de fala com o texto manuscrito, pela subdivisão da página). A ilustração, ou por outras palavras, a presença de uma mão que desenha e que escreve, encontra-se ainda na folha de título, no desenho do logotipo da editora em todo o livro (versão manual da oficial), nas guardas pintadas a pincel, no uso do que parecem ser letras rudemente impressas (tipos de madeira?) para o título, repetido em vários locais, etc. Um aspecto editorial que não compreendemos de todo, portanto, é a opção de colocar o nome de Ana Biscaia num tamanho inferior ao do escritor, e ainda a separação com a palavra “ilustrações”. Esta subalternização do papel e importância da artista em relação ao texto é um despropósito, se tomarmos em conta que em termos de veiculação do sentido, de presença estética e até mesmo de comercialização do objecto, as imagens podem até mesmo assumir um chamariz mais imediato. O que se deveria pretender, na honestidade do texto legível, não é tanto sublinhar a prevalência de um autor sobre outro, nem assinalar uma hierarquia - que pode corresponder, sem dúvida, a uma cronologia na produção -, mas antes fazer demonstração da relação simbiótica final, que se torna, nela mesmo, indistrinçável. Que se coloque o nome do autor das palavras em primeiro lugar, é uma convenção como outra (e que nós mesmos seguimos), mas mais uma vez indicar a natureza sacrossanta do texto (o qual, lido em voz alta, “dispensa” as imagens) e a secundarização da faixa imagética é não compreender o seu resultado imbricado. Apelar para o peso institucional do escritor em detrimento da artista apenas perpetua a fraqueza do projecto conjunto. Vejam-se as cenas finais do último conto e entenda-se como, estando tudo previsto nas palavras, nada torna expectável a beleza daquelas formas, aparentemente riscadas e coloridas numa qualquer distracção (se bem que a resolução, em algumas páginas, perigue essa mesma beleza)...

Os três contos versam todos, de formas diferentes, mais do que a morte em si, a  finitude da vida humana e a angústia dos que ficam, dos que vêem os outros partir ou dos que vivem obcecados com a sua hora de partir. “Espanto feliz” fala sobre os decretos consequentes de um rei para proibir a morte, a velhice, o nascimento, enfim, o tempo, mas sem que pense em abolir este mesmo tempo, e portanto atingindo consequências desastrosas para a vida, no seu sentido mais pleno e de experiência. “O piano de calda” é sobre uma família de bombons, e sobretudo o mais jovem membro, que vai vendo partir toda a sua família na ideia de que visitam o mundo, sem saber que o seu fim, pelo consumo, está próximo. A sua angústia dissipa-se quando finalmente compreende o seu papel e encontra, possivelmente, o seu “destino”. Finalmente, o conto mais alargado e que dá título a todo o livro, “A cadeira que queria ser sofá”, é sobre precisamente esse objecto, aprendendo nós sobre a sua biografia, a relação com a sua dona original, os laços de amor que as unem e que as farão entrelaçar a vida que se segue após a morte, os seus desejos e a sua tristeza quando se vê protelada e abandonada a um canto por ser velha… 

O livro tem ainda um breve texto de Leonor Riscado, nome activo precisamente daquela recepção académica de falámos ao início, mas que parece ser mais uma nota para os eventuais pais e educadores que comprem o livro do que do “leitor ideal” do mesmo. É óbvio que este texto, estando como prefácio do próprio livro, tem de fazer um encómio que utilize parcialmente a hipérbole. Contudo, A Cadeira não é de forma alguma o único livro infantil que aborda o tema da morte, da perda, do desaparecimento e da solidão ou culpa que poderão estar-lhes associadas. Apenas a título de exemplo, cite-se O coração e a garrafa, de Oliver Jeffers, Para onde vamos quando desaparecemos? de Isabel Minhós Martins e Madalena Matoso, O livro da avó, de Luís Silva, para citar somente três livros facilmente alcançáveis entre nós. Ou seja, no panorama contemporâneo, este livro de Levi e Biscaia integra-se plenamente numa tendência de inteligência (como sublinha Riscado) dos picturebooks.

Dois dos contos empregam objectos para explorar o seu tema - bombons e uma cadeira. A antropomorfização - seja de objectos ou de animais - ajuda a criar uma ideia de controlo e previsibilidade que alguns estudos de psicologia infantil entendem como benfazejos. No entanto, surpreendentemente, nada indica que as “lições”, digamos assim, sejam melhor aprendidas através de personagens antropomorfizadas do que humanas e realistas, podendo haver mesmo com estas segundas um maior envolvimento emocional. A simbolização criada com os objectos pode instalar uma distância que se pode tornar difícil de gerir pela parte das crianças leitoras (ou ouvintes), mas estas noções vivem ainda na ausência de mais e sustentados estudos. Muitas vezes trata-se antes de uma maior facilidade da parte dos autores em evitarem falar directamente sobre o assunto: a morte dos seres humanos que nos rodeiam, que amamos e até a nossa própria, inevitável, morte.

De resto, essa opção sempre nos pareceu problemática: perguntamo-nos se a criação da sensação de que todos os objectos são providos de uma eventual vida e personalidade não poderá acarretar uma dupla consequência negativa. Por um lado, ao projectarem-se razões e comportamentos humanos que não existem de todo nesses objectos, poderá implicar uma certa angústia nos leitores, ao passarem a considerar todo e qualquer objecto como tendo essa mesma personalidade, mas não poder responder ou reagir na verdade face aos nossos comportamentos para com eles. E assim, passamos a comê-los, destruí-los, a deitá-los fora sem piedade, mas guardando a sensação de estarmos a violentá-los. É de cercear os movimentos habituais e despreocupados com os mesmos objectos, por outro, é criar uma instrumentalização das relações interpessoais, que são, pelo contrário, iluminadas pelas relações que se estabelecem com os objectos. Uma cadeira serve para nos sentarmos nela, e de facto, quando se estraga, ou se conserta ou se deita fora. E os chocolates são para serem comidos. E as garrafas para beber e deitar fora. Mas a vida não serve para um qualquer uso. A lição que resta destes objectos aceitarem os seus papéis utilitários poderá eventualmente não ser uma aceitação da condição humana, mas sim um seu disfarce, e utilitarista. Clovis Levi, no entanto, tem o cuidado de jamais mostrar a personalidade desses mesmos objectos isolada das restantes personagens, e é na rede de amizade, amor, apoio mútuo, ou até de uma mera troca de olhares que nasce a fortaleza delas perante todas as suas adversidades. Onde por vezes poderia surgir um apontamento mais delicodoce, como na ascensão da Bisa e o seu encontro com o anjo, a transformação da cadeira em nuvem, é no diálogo entre as personagens que as suas personalidades as fazem regressar a um peso mais natural.

Aliás, uma leitura atenta demonstrará como os jogos de olhares são mesmo instrumentais na construção dessas redes. Veja-se como o sol de “Espanto feliz” vendo a nova criança do reino volta a brilhar, ou o Piano de Calda vendo a menina Guida sorri, ou a Bisa, de “A Cadeira…”, não vê o bisavô a chegar perto da nuvem-sofá que era a cadeira, mas somente para que o leitor se aperceba da maior alegria que ali se medra. Veja-se, para isso, a presença de verbos que dêem conta dos olhares e o modo como Biscaia desenha as suas personagens olhando-se umas às outras, em jogos de direcção de olhar apertados.

A escolha por objectos pode apagar toda uma série de características específicas e contextuais do ser humano - o sexo, a etnia, a nacionalidade, a classe social, a idade, e até outros pormenores como estilos pessoais, por exemplo, etc. - que podem ajudar à tal ideia de controlo. Isso não quer dizer que não a tenham, simplesmente que é uma possibilidade de “simplificar”. Repare-se como a cadeira da história principal é não só sexualizada como ganha uma nacionalidade, a qual, por não ser definida, permite que se partilhe entre o Brasil e Portugal, mesmo que os pormenores textuais façam pender para a primeira hipótese e os pormenores visuais para a segunda. É sobretudo na relação breve indicada com o trono sueco que isso se torna mais palpável. Mas há mais: a forma como a ilustradora representa as cadeiras sobrepostas poderá ser interpretado como uma relação sexual (eis alguns dos problemas - ? - levantados pela antropomorfização), de forma subtil, claro, mas mostrando a tal interrelação entre as personagens. A antropomorfização , portanto, é alcançada de modos entrelaçados entre o texto e a imagem, modos que se reforçam mutuamente e anulam totalmente a distinção entre os papéis criativos dos autores envolvidos na tessitura final (aliás, a mera atenção para com o facto de que a matéria verbal atravessa em vários momentos - sobretudo se disserem respeito ao discurso directo - a mão da ilustradora, que emprega estilos e formas diferenciadas de letras e composição textual, complicaria desde logo essa relação destrinçável; e diga-se de passagem que onde o texto é mostrado sob forma "automática", as escolhas gráficas são menos felizes).

A abordagem pictural, mais do que gráfica, de Ana Biscaia, que utiliza os mais diversos materiais - tintas e pincel, mas igualmente lápis de cor, de cera, grafite, fita cola, corrector, tipos impressos ou carimbos - e a estratégia de composição - tirando partido mais da dupla página (e as finais são belíssimas) do que da página individual, mas não se coibindo de fragmentar a acção e a cena quando necessário -, aliado ainda à intervenção e distribuição do próprio texto - impedindo assim que haja a tal faixa sacrossanta de texto, simplesmente sustentada pelas imagens “decorativas”, mas antes entrosando uma coisa na outra num plano de identidade total - torna este livro num projecto total, como avançáramos. Em alguns aspectos, recorda-nos alguns dos livros do artista alemão Atak, que também abordou o tema com Comment la mort est revenue à la vie (com T. Magnier). A diversidade cromática também os aproxima, e ao mesmo tempo afasta esta experiência daquela outra da artista de que havíamos falado aqui. Não sendo ambos os exemplos suficientes para uma argumentação mais sólida, mas tomando ainda em conta outros projectos de ilustração ou de banda desenhada de Ana Biscaia, ou até mesmo de workshops, sublinhe-se de imediato a sua procura específica pelos instrumentos mais indicados ao projecto em prática, e não a consolidação de um suposto “estilo” ou “assinatura” que depois se integraria comercialmente no texto a ilustrar.

São precisamente os momentos de disrupção entre imagem e texto, o isolamento de trechos curtos em duplas páginas (“Carolina morreu”), ou a transformação de outros em palavras de ordem em plena cidadania gráfica, a transformação de todo o livro num objecto de personalidade visual autónoma, que mostram a ilustradora não enquanto prestadora de um serviço previsto comercialmente - por mais “talentosa” que seja -, mas antes proponente de um projecto forte capaz de abordar a morte com o que ela pode ter de mais vivo.
Nota: agradecimentos à ilustradora e à editora, pela oferta do livro.

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