13 de setembro de 2011

El arte de volar. Antonio Altarriba e Kim (De Ponent)

O que há numa vida? (terceira resposta)
O voo anunciado no título é duplo, triplo, múltiplo. É duplo, pois é o sonho permanente de liberdade, em relação a tudo o que o circunda, de Antonio Altarriba Lope, pai de Antonio Altarriba, o autor-escritor deste livro, mas também esse sonho finalmente conquistado num voo último vertical, o salto suicida e libertador aos 90 e pouco anos. É triplo, pois além da dimensão do sonho-desejo e do desejo-cumprido, há ainda aquela dimensão do voo permitido no interior da matéria do livro de banda desenhada, a ficção que se desenvolve em torno da vida real, as metáforas visuais que se estruturam em torno das memórias tidas, a fuga permanente da narrativa. É múltiplo, porque a palavra “voo”, pela sua própria natureza cambiante, permitirá que as várias camadas interpretativas dos leitores-espectadores se tornem acessíveis e navegáveis à medida das suas leituras, ou re-leituras, o esforço recompensado pelo acompanhamento da vida deste velho Antonio. (Mais) 

El arte de volar é, numa primeira abordagem, um livro escrito por Antonio Altarriba e desenhado por Kim, o qual versa a vida inteira de Antonio Altarriba Lope, pai do escritor e académico e proponente de abordagens múltiplas à banda desenhada. Uma biografia, por assim dizer. É também uma tentativa de Antonio Altarriba, o autor, compreender ou tornar ainda mais sua a vida e a morte do pai, ao mesmo tempo que a expressão dessa vida e morte se vai tornando a sua própria língua. Uma autobiografia, por assim dizer. É ainda uma forma do autor espanhol auscultar toda uma mágoa pessoal, de - confessada por ele próprio - falha numa maior aproximação ao pai, de um respeito maior pela “aliança de carne” a que se haviam prometido e confirmado ao longo da vida (a união entre os dois dedos, que vamos vendo no livro), uma maneira portanto de tornar aquela vida sua e, assim, compreender-se a si mesmo e ao pai, ou um no outro. Uma autobiografia do outro, por assim dizer. E finalmente, é também um relato de uma Espanha ida, felizmente ida, mas talvez ainda não totalmente enterrada, tal como a nós, portugueses, nos custa enterrar os últimos fantasmas herdados do nosso regime de Salazar, os pequenos comportamentos rurais, brutos, de guarda republicana primo do padre e de favores caciqueiros, corrupções mais mesquinhas que grandes, demolições diárias do espírito, que nunca atingirá a plena liberdade sob essas sombras. Uma memória nacional, por assim dizer.

El arte de volar torna-se assim um mecanismo de memórias marchetadas umas nas outras, da mais pessoal de quem viveu e morreu, daquele que herda e conta, de todo o país que os e as encerra. Antonio Altarriba Lope nasceu em 1910, num meio rural, cujos horizontes se iam apertando cada vez mais, em contraste absoluto com o seu ensejo de se expandir, de voar dali para fora. Os obstáculos numa Espanha beata, de uma jovem e manca República (como a nossa), logo tragada por um regime militar falsamente salvífico (como o nosso), e logo a seguir por uma guerra intestina horrível, são apenas mais muros que vão sendo levantados, talvez não de pedra como os que delimitam os terrenos dos pequenos mas odientos agricultores em cujo seio Antonio nasce, mas quiçá mais difíceis de demolir. A passagem pelas linhas do inimigo, para se tornar anarquista, logo exilado em França, e depois miserável derrotado burguês na Espanha de Franco, são o resto das suas “aventuras”. A última paragem é o asilo de velhos, o roubo das últimas dignidades - porque são os velhos e doentes tratados como se fossem crianças? - frente à qual apenas se delineia uma solução: a recusa desses obstáculos, a conquista do último voo, a morte.
O livro encontra-se dividido em partes, que seguem uma linha temporalmente linear, que ajuda à narrativa. Começamos no último dia da vida de Altarriba pai, a 4 de Maio de 2001, três páginas para mostrar o trajecto que leva à janela do quarto andar, de onde se atira. Seguem-se depois três troços, indicados pelo número do andar atravessado na queda, as datas da vida e nomes de objectos que servem de símbolo a essa época, mas também aos desejos do protagonista, quer os cumpridos quer os gorados. “3ª planta 1910-1931. El coche de madera”, “2ª planta 1931-1949. Las alpargatas de Durruti”, “1ª planta 1949-1985. Galletas Amargas”, “Suelo 1985-2001. La madriguera del topo”. Recontando as fases da vida dele, são respectivamente, 1. a infância e primeiros estertores de liberdade da autoridade paternal, 2. os anos de guerra, de aprendizagem ideológica, de sonho social, e também das primeiras derrotas desses mesmos sonhos, 3. a vida adulta, a integração na máquina burguesa, na mentira e no pragmatismo, as resignações, 4. os anos no asilo, as alucinações, o fim. Todos esses objectos indicados, que poderiam ser chamados de transicionais, talvez, surgem como proporcionadores desses sonhos de voo, mas encontram depois o seu fim. Apenas a toupeira do último capítulo é um símbolo negativo (ele sonha que esse animal lhe come o peito e depois se enfia no seu corpo), que apenas morto pelo próprio Antonio lhe permite a derradeira conquista.

Como se depreende pelos títulos dos capítulos, há uma correspondência entre o avanço da vida cronológica e a queda do quarto andar, representando a proverbial “vida ante os olhos” que se diz dar aos que vão ao encontro da morte, neste caso, por vontade própria, e indómita. No interior da tradição da banda desenhada, faz-nos recordar a queda de John Difool, na abertura da saga do Incal, de Jodorowsky e Moebius, mas há uma pequeníssima diferença fundamental. Essas páginas de capítulo mostram uma vinheta isolada, de Antonio caindo. Duas delas mostram-no, sem qualquer margem para dúvidas, sorridente. Não é um ricto de medo, mas sim ou uma alegria pelas sensações revividas do que testemunha nesse trajecto, a vida que nós mesmos, leitores, lemos nas páginas do livro, ou pela efectiva conquista feita.

El arte de volar é um relato irmanável ao Maus de Spiegelman ou o Kraut de Peter Pontiac ou a alguns dos livros de Baudoin, no sentido em que o autor estabelece um diálogo com o pai, de forma a descobrir a sua biografia, talvez conducente à sua própria. No entanto, há diferenças substanciais, de estruturação e ontologia: não é somente o facto de que Spiegelman, Pontiac e Baudoin são os seus próprios artistas, o que em nada releva por si de hierárquico nem de mais acabado, mas tão-somente que a forma de plasticizar a matéria é diferente. Poderíamos ainda trazer à colação The Birth Caul, de Moore e Campbell, num sentido em que esse pode ser visto como um projecto autobiográfico de Moore, em parte, centrando-se na mãe. A diferença maior está no facto de que Altarriba - mas por não ser o artista? - não se coloca a si mesmo enquanto corpo presente, visível, representado, no livro, isto é, não é um interlocutor directo com o pai, tal como Spiegelman o é no seu famoso livro, uma vez que esse livro é também sobre o processo de encontro entre esses dois homens. Nem há uma total ausência de contacto, como no caso de Pontiac. Altarriba surge, na verdade, em alguns breves episódios, ora enquanto criança, ora já em adulto, visitando o pai no lar de velhos, transmitindo-lhe a morte da mãe, ou escutando o pedido do pai em que o ajude a morrer. Mas não se alonga nessa presença. A razão estará nas frases repetidas ao longo da história, e que ele quer fazer mostrar por todas as acções e o modo como tece a sua história, fundadas nas primeira frases do primeiro verdadeiro capítulo: “o meu pai, que agora sou eu”…

O autor apresenta no final do livro, nesta edição, um suplemento de informações sobre as circunstâncias da morte do pai, o que o levou a escrever este livro, o processo de trabalho com Kim, e outras informações que adensarão a possibilidade de nos aproximarmos da obra. Nela revela-se a maneira como Altarriba está mais interessado em aproximar-se de uma possível representação da verdade, do que de uma representação supostamente fiel, real, realista, dos eventos passados. O trabalho imagético de Kim está ancorado na realidade, o que ajuda aos momentos de fuga onírica.

Kim (Joaquim Aubert Puigarnau) é um artista com larga experiência, conhecido sobretudo pela série Martinez el Facha (da satírica El Jueves, de que é co-fundador). Influenciado plástica e tematicamente pelo underground norte-americano, um breve olhar para o seu título mais aclamado colocá-lo-ia na senda de algumas abordagens, de Gilbert Shelton ou Willy Murphy, mas outros trabalhos, que revelam alguma diversidade, inclusive este El arte de volar, poderão lembrar-nos antes autores como Justin Green. No seguimento das palavras do prólogo de Antonio Martín, parece-nos que Kim encontra aqui uma nova forma de trabalhar, mais séria, colocada num projecto contemporâneo, adulto, e socialmente relevante para o público espanhol, e mais além, diremos nós, o que se consubstanciará pelas traduções previstas. Existem aspectos um pouco toscos, em que as proporções dos corpos, ou entre estes e os objectos, flutuam de vinheta para vinheta, em que a escala não parece jamais estar presa a uma só unidade. Há certas afinidades, nessa plasticidade, com autores como David Lasky ou David Collier. A distância da representação, a forma quase desapaixonada com que as cenas são representadas temperadas pela forma como as expressões faciais são exploradas por construções devedoras a certas fórmulas gráficas, mas plenamente integradas num ambiente de naturalismo gráfico, a composição sóbria das páginas (que ajuda a destacar todas as soluções diferenciadas em momentos-chave, como veremos), são algumas dessas características mais prementes, parece-nos.

Kim não usa paginações regulares, tendo antes um número flutuante de vinhetas, cujas dimensões se alteram conforme as necessidades, mas há uma constante mais ou menos regular das suas construções, um uso bastante calmo e clássico. Não existem sobreposições, encastramentos, fragmentações excessivas ou obsessivas, fusões em splash pages, etc. Isto leva a que cada vez que existe um uso menos comum dessas mesmas construções, o seu uso acabe por ser sublinhado. E algumas dessas construções são pequenas pérolas de integração das várias camadas presentes na diegese, quer dos eventos tangíveis quer das sensações internas das personagens. Um desses desvios composicionais, repetido, é o de uma vinheta maior, em forma de L, invertido ou de cabeça para baixo, no qual se “encaixa” uma vinheta menor. Os seus empregos são sempre diversos, e dependem dos seus sentidos diegéticos e imagéticos, mas eles unem-se pela estrutura e atingem assim uma união também de desejo de sentido superior.

Na página 65, o modo como as estantes das cartas atravessam as vinhetas não é possível pela lógica, mas essa continuidade quer antes sublinhar a forma como o carinho, o amor e as “carícias” sentidas por Ramón, o carteiro dos anarquistas, o abraçam e estreitam (mesmo que as pernas não sejam visíveis). Mais tarde, na página 139, já depois da derrota e da humilhante necessidade de se integrar na Espanha fascista, Ramón surge novamente, dizendo que prefere trabalhar com as pernas atascadas da sujidade dos esgotos, pois assim elas se enchem de força: a imagem faz-nos ver essa força ser negada à medida que se afunda na boca de esgoto, em contraste total com o arejado salão de baile em que outros tentam afundar as preocupações. 


Também na página 98, a paisagem atravessa as duas vinhetas numa forma mais ou menos clássica - se bem que os intervalos espaçados, largos, poderão ser interpretados como interrupções inultrapassáveis da construção posterior da memória e a realidade que terá sido vivida (cf. adiante) - com o rio engrossando, as árvores adensando e subindo o monte, e a posição do corpo e expressão do rosto de Antonio flutuando no ar repete-se no seu sósia boneco que representa o balão de ar quente que estará prestes a rebentar. Este é apenas um breve intervalo feliz. Estas construções podem mostrar respectivamente aproximação dramática, contraste moral e transformação metafórica, mas todas elas querem dar a ver a maneira como as nossas experiências se entrosam, se reflectem e espelham e distorcem, formas de integração de tudo o que é parte da nossa vida.
Como afirmámos atrás, os espaços intervinhetais são muito mais grossos que o usual. Que significado poderá ter isso? Como o poderemos interpretar?

A narrativa pauta-se por uma estrutura de episódios sucessivos, nem sempre integrados, como queria Aristóteles, por necessidade ou ocasião (di‘allèla, como diz na Poética), mas sim uns atrás dos outros (met‘allèla). No entanto, a razão de ser dessa sucessão não estará relacionada com uma deficitária capacidade de estruturação dos autores, mormente do escritor, mas antes pela própria natureza dos acontecimentos que impelem Antonio a fugas sucessivas: a miséria, a Guerra Civil, a derrota dos Republicanos, a invasão Nazi da França, a sua captura e internamento, a nova fuga…. É como se não houvesse tempo para reflexões de maior e fosse necessário uma qualidade mercurial, que Antonio prova vezes sem conta possuir: a forma como conduz, a rápida navegação pelo exército de Franco para poder passar as linhas, a excelente pontaria escondida mas depois revelada num momento crucial e heróico, o abandono com que se entrega a certos prazeres… De quando em vez, a leitura poderá fazer-nos pensar que há um certo desequilíbrio e demasiada felicidade narrativa na forma como os episódios se sucedem, mas terá a ver com essa urgência vivida.

Porém, ao mesmo tempo essa plena integração, essa fluidez com que esses mesmos episódios se estendem numa fiada suave, fazem-nos imaginar que não poderá corresponder aos ritmos verdadeiros da vida real, à titubeação, angústia, ambivalência, indecisão, que a pautam. É demasiado “corrida”. E é aí que aqueles largos espaços esclarecem o seu papel. Esse intervalo maior entre cada imagem parecem querer confessar a eventual distância que existe entre o vivido e o recontado, entre o que se passou e o que se deposita na memória como experiência-a-ser-partilhada. Retrospectivamente, tudo parece fazer sentido na nossa vida, olhamos para trás e vemos a brilhar o fio vermelho de Ariadne, fazendo-nos esquecer as vezes que nos enganámos nos cotovelos do labirinto. A presença de vários momentos de cenas maravilhosas, fantasiosas, oníricas, desde o avião-máquina-de-costura à toupeira que come o peito a Antonio, apenas abre essas camadas umas às outras, mostrando como o trânsito não pode ser impedido por regras de género ou de linguagem.

É possível que El arte de volar não seja apenas referente à história que encerra, à vida que mostra, mas à própria língua que se estende na sua existência.
Nota final: agradecimentos a José Marmeleira, pelo favor da compra.

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