31 de agosto de 2011

Eiland 5. Stefan J. H. van Dinther e Tobias Tycho Schalken (Frémok)

Eiland 5 reúne toda uma série de trabalhos que os autores já haviam publicado ou exposto noutros locais, desde o início do século, de antologias de banda desenhada propriamente dita a galerias de arte. Por exemplo, o blog de Dinther e colaboradores, Allow to infuse for 4 to 5 minutes according to taste, mostra grande parte dos trabalhos do autor reunidos neste livro. Bem vistas as coisas, para além de estar na continuidade da própria Eiland enquanto publicação semi-regular, poder-se-ia dizer que Eiland 5 não é mais do que um repositório de papel de alguns dos trabalhos dessa(s) origem(ns), alguns dos quais haviam sido construídos para linguagens específicas da interactividade ou tecnologias permitidas digitalmente, como a dimensão da animação em Flash, e que se “perde” numa impressão clássica. (noutros casos, a passagem foi inversa: de uma versão papel para a electrónica). Isso seria, porém, uma forma simples de querer entrar em Eiland 5, e provavelmente não abriria grande caminho.
Onde, por exemplo, o material fotográfico utilizado em The Leader of People” (de Dinther) é visto mais nitidamente na versão Flash, no papel ganha uma qualidade de quadricromia barata e obsoleta. Contudo, essa transformação interna não é bem negativa, mas sim, simplesmente, transformativa. Num dos casos, apelava directamente às imagens da publicidade urbana, dos MUPIs às impressões sobre os transportes públicos - um atentado público à liberdade da visão dos seus utentes - e no caso do livro a um certo patamar de publicações publicitárias descartáveis (apesar de manter a sua fonte em termos diegéticos). Há uma adaptação de cada meio ao seu ruído específico, não apenas uma procura pela especificidade do sinal e da comunicação.
Um livro anterior de Dinther, também da Frémok, CHRZ, mostrara o interesse do autor holandês em criar uma narrativa a partir de tramas clássicas, em torno de fórmulas de romance entre as personagens, mas torná-la “espessa” através da complicação da sua apresentação formal: o trabalho de figuração e estilização, de composição de página e de redução da velocidade da acção/leitura, os jogos de cor que se pretendiam significativos, as alterações radicais de perspectivas e focalizações, são algumas das formas que pretendem demonstrar onde residem os interesses também presentes em Eiland 5.
Apesar do livro estar assinado por dois autores, este não é um trabalho de colaboração simples, mas de companheirismo no espaço de apresentação. Por várias ordens de razão, a coordenação do trabalho dos dois autores faz-nos recordar, apesar das diferenças de escala, métodos, instrumentos e esfera social de expressão, o trabalho colaborativo dos portuenses Nuno Sousa e Carlos Pinheiro, também eles afectos ao meio das artes visuais do circuito galerístico. Não se trata de uma colaboração simbiótica, como a de Dupuy e Berberian, ou de fusão, como a de Max Andresson e Lars Sjunnesson, e muito menos as mais clássicas, como entre um escritor e um artista. Os autores não apresentam colaborações em trabalhos específicos a não ser a sua presença no espaço de divulgação, ou seja, o livro. Mas há uma dinâmica presente aos olhos do leitor/espectador por ser confrontado sucessivamente com os trabalhos de ambos. Nesse sentido, cada autor mantém a sua especificidade, mas ao mesmo tempo contribui para que a sua marca “passe”, como uma mancha que vai invadindo outra área contígua, para o trabalho do colega. Como as políticas marítimas entre as ilhas, há sempre zonas de insegurança e dúvida, o que apenas fortalece o próprio resultado final.
E porque Eiland significa “ilha” em holandês, facilmente se imaginará a funcionalidade que o conceito de “arquipélago” ganha na leitura do livro, se considerarmos o modo como o conjunto é tão significativo como alheio à fundação dos micro-sentidos de cada “peça” ou “história”. Podemos ler, portanto, tudo de forma separada, como numa antologia, ou considerar o efeito e afecto total, como o perfume que se liberta da combinação de um conjunto de flores (significado original de “antologia”). E para além disso, há também a tipologia das tais “peças”. Se existem algumas micro-sequências que são bandas desenhadas no seu sentido mais clássico, há também colecções de outros materiais diversos, de séries/sequências de fotografias a imagens singulares, que desafiam a sua integração num sistema homogéneo, seja de meio, seja de significado, seja de concentração autoral. O que é Eiland 5, afinal? Poder-se-ão tentar muitos descritores, mas no final de tudo talvez “experiência” esteja próximo do resultado.
Algumas das histórias tem sequências mais coordenadas, como dissemos, e que poderiam fazer pensar numa narrativa mais “natural”. Tobias Schalken apresenta narrativas mais nítidas, mas na verdade essa é apenas uma sensação superficial. Em muitas das histórias em que encontramos texto e imagens, no entanto, esse texto, sob a forma de diálogos, narração ou de outro tipo, não parece corresponder às imagens a não ser pela mais diáfana das fímbrias, como “Une très grande tour” ou “Demeurer ici/regarder au loin”. Aqui parece escutarmos um conto infantil, ali ouvirmos uma conversa ao telefone, nesta outra história lemos uma carta de um amante. A relação com as imagens é quase sempre disruptiva, ou tenta protelar as possíveis uniões de significado, a qual apenas mais tarde, bem mais tarde, coalesce numa apenas fantasmática solução. Em “Une très grande tour” até mesmo a disposição do material a ler (imagem e texto) obriga-nos a um protocolo de leitura inusual, a saber, por colunas. O que é que isso significa? Porquê seguir-se um feixe de eixos verticais e não a disposição horizontal? Imitar-se-á a torre de que se fala? E o facto de se o fazer num livro oblongo terá algum outro sentido? A capa mostra logo o tipo de desterritorialização a que se permitem, um desvio a nível de representação e sentido que nunca ficará resolvido, mas suspender-se-á para sempre nessa sensação em aberto. Alguns dos desenhos ou fotografias soltos não têm quaisquer elos entre si, de qualquer espécie, e muitas vezes apresentam-se em estilos e mãos bem diversos, mas isso não significa que não exista uma procura por um movimento promissor de significado.
É como se os autores transformassem a sequência paginada num movimento contínuo de multiplicação de sentidos até à sua exaustão e dissolução para fazer com que se atingisse um outro sentido mais além do primeiro.
Tomando as coisas de forma separada, fragmentada, impondo uma violência ao objecto em si mas não à história social de cada história, dado que foram sendo publicadas noutros locais, a pièce de resistance é, a nosso ver, “Folklore”, de Schalken, uma narrativa de 65 páginas, sem texto, com um número sempre diferenciado de vinhetas quadradas por página (de uma central, a três fazendo um canto a 12 ocupando toda a página), permitindo assim grandes expansões de branco (o que deve ser lido com significado também [a digitalização “avermelhou“ os fundos creme]) e que parece contar a história de como três mulheres (de idades diferentes, recordando as Moiras ou as Parcas) recebem um homem. É impossível não ler essa história à luz de vários mitos em torno da morte, rito de passagem entre este e o próximo eventual mundo (e mesmo no interior da tradição da banda desenhada, aquela que poderá ser a obra maior de Comès, L‘Ombre du Corbeau, e com a qual “Folklore“ estabelece vários elos de ligação, parece-nos). A mulher mais jovem, num momento final e ritual de anfitriã, lê para o homem deitado, e percebemos, por várias estratégias visuais, como esta lindíssima página - que pode ou deve mesmo ser lida a um só tempo através de várias distribuições do olhar-leitor -, que ele “parte” graças a essa mesma leitura. Que livro é? Um literal “livro dos mortos”, preparador e condutor das almas, que as ajuda a partir e a descobrir os passos certos? Ou uma história que a acalenta e sossega, que de outro modo poderia ficar presa no limbo? Quer num quer noutro caso, as imagens que parecem corresponder ao que é lido dão-nos precisamente a ideia de viagem, percurso, com os faróis de um carro iluminando sucessivamente os rostos de animais numa densa e nocturna floresta (cada um podendo corresponder a tantos outros ícones psicopompos, como o cão preto que vive com as mulheres) e depois os de humanos de toda as formas e feitios, nos mais diversos afazeres… É o informe de A Morte de Virgílio, no seu esplendor multifacetado e fluido, ao mesmo tempo comentário e espelho de toda a matéria de Eiland 5. Poderíamos então ler o livro todo como uma espécie de símbolo de morte? A da própria banda desenhada, enquanto casulo de onde irromperá outra nova forma?
Não há como tomar qualquer decisão final. É, contudo, na construção dessa indecisão, dessas dúvidas, que este é um grande contributo à expansão da ideia desta arte.

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