24 de julho de 2011

Supergods. Grant Morrison (Spiegel & Grau)

O título completo deste livro é Supergods. What Masked Vigilantes, Miraculous Mutants, and a Sun God from Samallville can Teach Us about Being Human. Com mais de 400 páginas de um texto denso mas perfeitamente legível de uma assentada, escrita por um dos mais importantes escritores de banda desenhada mainstream (e, discutivelmente, para além desse círculo) contemporânea, este é um tomo que poderá seriamente tornar-se numa espécie de testamento do amor pelos super-heróis. Testamento não apenas de um autor, mas do circuito energético e de ideias que os universos complexos dessas personagens podem fazer despertar, se crermos, com Grant Morrison, na aplicação da teoria da emergência a esta produção cultural específica. O livro vem com uma cinta com três blurbs (citações encomiásticas) de três pessoas de três gerações, origens e áreas de trabalho totalmente distintas, mas que consideradas em conjunto, poderão mostrar a potencial circunferência de acção de Supergods: Stan Lee, um dos pais e parteiro da revolução Marvel dos anos 1960, que abriria caminho a todas as reinvenções e reescritas que ainda hoje operam nesse género da banda desenhada; Gerard Way, líder da banda (emo-punk?, indeie rock?, confessamos ficar perdidos nestes descritivos) My Chemical Romance - com o qual Morrison colaborou nos vídeos para Danger Days -, cujas letras e estado de espírito se aproxima de algumas das personagens mais melodramáticas mas ainda assim poderosas de Morrison; e Deepak Chopra, autor de um batalhão de livros de auto-ajuda e de novas espiritualidades. Não há aqui qualquer tipo de contradições ou paradoxos: Morrison é, de facto, autor de alguns dos comics mais cool das últimas décadas, um guru/mago/visionário/desinformador que utiliza a banda desenhada como evangelho, e um autor que gosta de tirar partido do seu estatuto rock star (de uma forma inigualável em qualquer outro autor de banda desenhada). (Mais) 

Não sendo um livro académico (a bibliografia final peca por algumas ausências, talvez a mais gritante sendo a do livro de Peter Coogan, Superhero: The Secret Origin of a Genre, talvez o mais compreensivo gesto recente que estuda a figura cultural e social dos super-heróis; a não-utilização de notas de rodapé, o que ajudaria à confirmação, contestação ou investigação progressiva de algumas das suas afirmações; a falta de integração das suas afirmações em contextos mais sólidos em termos disciplinares), Supergods pretende no entanto ser um pessoalíssimo “guia definitivo do mundo dos superheróis - o que eles são, de onde vêm, e como nos podem ajudar a mudar a forma como pensamos sobre nós mesmos, o nosso ambiente, e o multiverso de possibilidades que nos rodeiam” (pg. xvii). Nada disto quer dizer que Morrison abdique de apresentar as suas leituras, análises e interpretações de vários trabalhos, alheios ou seus mesmos, nestes últimos casos tornando-se confissões de arte extremamente iluminadoras e produtivas. Os discursos dos autores sobre o seu próprio trabalho são sempre reveladoras, instrutivas, não só ensinando-nos pormenores técnicos, práticos, contextuais ou filosóficos do seu métier, como ainda formando elementos passíveis de ulteriores e consequentes análises originais. E quando os autores são suficientemente cultos, articulados e rápidos em associações como Morrison, o prazer alia-se aos frutos colhidos.

O livro compõem-se de 26 capítulos (mais um) espalhados em 4 partes. A estrutura geral é cronológica, e os nomes das partes mostram de imediato um programa interpretativo da parte do autor face à história particular deste género: The Golden Age, The Silver Age, The Dark Age e The Renaissance. Se os dois primeiros termos correspondem ao consenso das discussões havidas em seu torno, os dois outros são propostas de Morrison, mais ou menos balizadas por outras nomenclaturas e autores [aliás, Coogan utiliza os mesmos termos no primeiro capítulo do seu livro]. “The Dark Age” é marcada pela introdução de factores de realismo e desconstrução mais vincados, a partir do trabalho de O’Neil e Adams com Green Lantern/Green Arrow (a partir de 1969), passando por Watchmen (Moore-Gibbons), Zenith (do próprio Morrison com S. Yeowell), Marshal Law (de Pat Mills e Kevin O’Neill), a fase terrível - o título do capítulo é “Image versus Substance” - da Image (McFarlane, Lee, Liefeld) e terminando com The Invisibles. “The Renaissance” começa com um capítulo dedicado ao seu próprio Flex Mentallo (pronto a ser reeditado em 2012), passando por Kingdom Come (Mark Waid e Alex Ross), The Authority e The Planetary (Warren Ellis et al.), The Ultimates (de Mark Millar com B. Hitch, sobretudo), os New X-Men de Morrison, Wanted (de Millar e J. G. Jones), até terminar com a sua saga contínua com Batman, o brilhante (em todos os sentidos da palavra e todas as dimensões de uma banda desenhada) All Star Superman (com Quitely, outra vez) e as promessas do regresso de Action Comics.
Mas não se depreenda que o livro segue da mesma forma, do princípio ao fim, seguindo uma mera recapitulação dos títulos e autores. Pode-se mesmo encontrar uma certa assimetria entre as duas primeiras partes, a primeira mais associada a descrições, interpretações directas e reminiscências de leituras da infância e adolescência (onde é pertinente, a partir da década de 1960) de Morrison, a segunda já englobando a sua experiência como agente criativo destes mesmos universos, e abrindo-se lentamente ao seu entendimento “mágico” dos mesmos.

Infelizmente, nalguns passos, Morrison dá continuidade a alguns mitos ou más apreensões de complexas situações sociais. Por exemplo, mais uma vez, Fredric Wertham é tratado como se um maniqueísta vilão se tratasse, em vez de um crítico cultural inteligente, e que aponta a problemas de facto inerentes à natureza dos super-heróis (mesmo que o movimento de pânico e ódio que tenha depois crescido à sua sombra tenha sido exagerado). Por outro lado, ainda que não se possa esperar uma exaustão completa da sua leitura e interpretação de todos os livros que compõem a tradição dos super-heróis, a ausência de títulos como Squadron Supreme (por Marc Grendwald et al., de 1985-86), ou mesmo da série britânica sua contemporânea New Statesmen (por John Smith e Jim Baikie, de 1988-89) tornam a sua relação algo lacunar.

Há também, a nosso ver, uma ligeira ausência de mais considerações de um insider. Sendo um dos mentores criativos da DC, presentemente, a história da sua preferência pela DC em relação à Marvel, durante a sua infância e adolescência, torna-se problemática de aceitar sem reservas. Afinal, é ele o autor que brinca com “todos os brinquedos” da DC, para citar um artigo recente sobre a sua obra. Morrison tem um contrato exclusivo com a DC, e há pequenos indícios que aquele tipo de rivalidade existente entre ambas as companhias (e alguns dos seus fãs - não digo leitores, digo fãs) se mantém no seu discurso: as imagens na contra-capa com personagens da Marvel não estão identificadas por autor, ao contrários das da DC, Morrison vai dizendo aqui e ali que sempre achou a DC mais vivaz e atenta do que a Marvel em termos gerais (a DC existe com marcas registadas - Super-homem e Batman, para começo de conversa - desde o final da década de 1930, isto é, há mais tempo que a Marvel, cuja expansão verdadeira se daria apenas no primeiro quarto dos 1960s), expõe alguns dos dissabores que teve nessa companhia, sendo menos expositivo em relação à DC, e até “manda bocas” mais vezes à Marvel do que há sua casa… Por exemplo, queixa-se de imitações dessa editora em relação à DC (Identity Disc pela Identity Crisis), mas acaba por não explorar as fórmulas repetentes e cansativas de ambas as editoras em apresentarem “story arcs” gigantescos todos os anos, com os costumeiros spin-offs e tie-ins, que deixam reduzidas a pó qualquer hipótese de conquista de novos leitores que pretendam ler um ou dois títulos), sempre com a promessa de que “nada será como antes” (claro que não, porque depois muda tudo outra vez). É evidente que, neste ponto, Morrison tem toda a liberdade para fazer o que bem entende no seu livro, mas enfraquece um pouco o discurso possível sobre os super-heróis por dentro. Ou confirma-o?

Em muitos aspectos, ao longo das suas considerações históricas, Grant Morrison dá mais importância - esta afirmação é mais fruto de uma impressão, uma intuição, do que de um verificação total - àqueles elementos que se viriam a tornar precisamente peças da sua própria escrita. Ao falar de Batman, aponta para a estranha fundação da Liga Internacional de Heróis ou os primeiros mais obscuros inimigos do defensor de Gotham, que empregaria na sua série com essa personagem; quando menciona o Super-homem, a atenção foca na fase dos anos 1950s sob a direcção de Mort Weisinger, tom que repetiria em muitos domínios no seu All-Star Superman. Mesmo a sua discussão do papel e importância de Jack Kirby mostra o quanto Morrison leu nesse autor maximal para poder re-aproveitar elementos nas suas próprias sagas universais (sobretudo Final Crisis e Seven Soldiers).

É apenas a partir sensivelmente de meio do livro que, já actuando como autor na DC (Animal Man, com Chas Truog, a partir de 1988), que começam a surgir elementos mais interessantes da sua interpretação e acção. Não se coibindo de controvérsia (ainda que mostrando alguma distância divertida com os seus comportamentos e afirmações quando era mais novo), a sua leitura de Watchmen, por exemplo, é muito curiosa, admirando a sua estrutura exemplar e inteligente, mas ao mesmo tempo mostrando como a sua falta de paixão por esta tipologia de personagens se nota, no cômputo final. Há mesmo um momento (pgs. 218) em que ele explica que, no começo da sua carreira na DC, ele olhava para aquele universo diegético específico como algo real, tangível, que poderia ser visitado; consequentemente, na sua mente entendia que os escritores poderiam ser vistos como “missionários” e “antropólogos”. Os primeiros “tentavam impor os seus valores e preconceitos em culturas que consideravam inferiores - neste caso, a dos super-heróis. Os missionários gostavam de humilhar os nativos apontando para as suas tradições sem sofisticação e as suas vestes tradicionais demasiado coloridas. Forçavam personagens ficcionais indefesas a usar casacos compridos de cabedal e a terem depressões e a abandonarem as suas anteriormente despreocupadas comunidades fictícias num estado de dúvida existencial esmagadora e incúria.

“Os antropólogos, por outro lado, deixavam-se mergulhar nas culturas estrangeiras. Não tinham medo de se ‘tornarem nativos’ ou de parecerem ridículos. Iam e voltavam com respeito e no interesse de uma compreensão mútua”. Este segundo é o papel que Morrison assumiria, literalmente, através do que chama de “fatos ficcionais”, isto é, a sua inscrição enquanto personagem para interagir no universo 2D de papel com as suas personagens (como faria no famoso “arco” de Animal Man, “Deus Ex Machina”).
Mas ele iria mais longe. Morrison tornar-se-ia num mago que canalizaria as especificidades ficcionais destas personagens para que atingissem todo o seu potencial expressivo. Citando David Mazzuccheli (co-autor, neste universo, do magnífico Batman. Year One, com Frank Miller), Morrison aponta para o quão menos importante é fazer aproximar estas personagens, ficcionais, do mundo “real”, de procurar instrumentos de um supostamente superior “realismo”, do que compreender a validade de “papel e tinta” de que se podem fazer valer. O autor não o diz, mas uma breve comparação com o cinema ou as séries de televisão mostrará que os instrumentos de ficcionalidade aí empregues não correspondem aos comportamentos humanos reais - bastará pensar na forma como as personagens cinematográficas ou televisivas falam, usualmente, sem qualquer relação com o gaguejar das nossas falas diárias. Mas o uso de imagens reais, de movimento e de uma organização temporal que mima a nossa experiência de tempo oculta essa mesma ficcionalidade. Por outro lado, a literatura, as mais das vezes, também apresenta uma ontologia e teleologia coerentes, fechadas e encaminhadas na lógica interna dos seus universos diegéticos, o que em nada corresponde à nossa experiência humana, em permanente abertura e indecisão (mesmo a nossa morte não resolve nada). A exigência que se faz desses princípios sobre a banda desenhada é, portanto, mal dirigida, segundo Morrison. Tratar-se-ia de uma, nas palavras de Wittgenstein, “cegueira aspectual” (o mesmo que querer explicar milagres à luz da ciência, num exemplo querido ao filósofo, ou, por outras palavras, encontrar a solução de um problema é eliminar o problema).

Alan Moore, por exemplo, surge como uma figura incontornável mas em último caso antagonista da posição de Morrison: ao passo que Moore - na sua fase Miracleman/Watchmen - pretende infundir o cru e cínico realismo das nossas vidas no universo dos super-heróis (ele é um “missionário”), Morrison (e outros, como Pat Mills, Peter Milligan, Mark Millar, etc.) aceita aquele universo nos seus contornos ideais e tenta expandi-los nessa sua especificidade. Por isso, são correntes os momentos em que Morrison cita ou explicita as escolhas de Moore, que entende ser um escritor inteligente, quase crisóstomo, e magistral do ponto de vista do controlo de estruturas e formalismos, mas no fim de contas amargo demais, intelectual por excesso, contra-producente no género e até falhado no sentido em que o seu projecto de enterro dos super-heróis apenas serviu, numa primeira fase, para um recrudescimento adolescente e idiota da violência e niilismo (a época da Image ainda independente) e, numa segunda, a um “renascimento” apolíneo do género. Há uma animosidade permanente, como se ambos fossem representantes de dois pólos antagónicos operando no mesmo tabuleiro (aliás, em dois números sequentes de uma revista de divulgação comercial britânica, a Comic Heroes, foram publicadas entrevistas a Moore e Morrison, com este segundo a responder contrariamente às atitudes e posicionamentos de Moore; aliás x2, nessa entrevista Moore diz abandonar de vez o género dos super-heróis, o que já havia dito antes, para depois regressar a eles na ABC, o que levanta mais dúvidas se de facto isso é verdade ou se é "wishful thinking", ao passo que Morrison os abraça com cada vez maior paixão e, mais importantemente, algum grau de inventabilidade genuína).
É, portanto, nesse momento de entrada do autor em cena na criação destes mesmos universos, e nas pequenas e contínuas revoluções que vai fazendo por dentro que Morrison explora de uma forma directa a sua exploração mais pessoal deste universo. Essa experimentação é, em primeiro lugar, criativa, utilizando técnicas variadas de escrita e planificaçção das composições, inclusive através do emprego de substâncias alucinógenas e experiências pessoais. Ou seja, aos poucos, a experiência pessoal de Morrison toma conta do texto de Supergods, porque também se vai baralhando com a sua obra, deixando quase em termos secundários as suas interpretações dos trabalhos de outros seus colegas (não deixando de os citar). Morrison já partilhou muitas as suas experiências de sincronicidade tidas ao longo de The Invisibles, o seu “rapto” por formas extra-dimensionais em Kathmandu, mas ele volta a elas, de uma forma organizada, para criar um discurso mais coerente e forte sobre a maneira como ele acredita que estas universos de papel de podem transformar em máquinas de desejo (nada tem a ver aqui com o termo deleuziano, mas sim coberto por um sentido mais literal), e de transformação do nosso mundo, puxando uma dimensão à outra. Aliás, se lermos Animal Man, The Invisibles, Flex Mentallo, The Filth, encontraremos pistas suficientes para perceber o que Morrison entende por convergências e cruzamentos interdimensionais: em Flex Mentallo, os super-heróis haviam salvado o seu universo moribundo ao reduzi-lo a um universo “inferior”, o nosso, e no qual ficariam encerrados num universo ainda menor, 2D, nos comics books, à espera que alguém os libertasse; em The Filth, aqueles agentes que habitavam os recônditos cantos da nossa dimensão, eram capazes de mergulhar na banda desenhada, para daí recuperar objectos para o nosso mundo. Seria curioso comparar estas ideias para filosóficas à noção de Moore de “Ideaspace”.

No entanto, ou como se depreenderá, Supergods é um livro que promove uma apreensão dos super-heróis não apenas integrada em movimentos de procura de conhecimento mais gerais (e que Morrison procura noutros momentos da sua carreira) como na pessoal história do autor, com a qual podemos mais ou menos identificar-nos. Pessoalmente, pertencendo a uma geração nascida na década de 1970, exposta aos super-heróis da primeira geração da Marvel nova da década de 1960 e 1970 e da DC das décadas de 1970-80 através da Agência Portuguesa de Revistas, e depois com as edições da Abril, até ganhar acesso a títulos originais, alguns dos mecanismos de formação da imaginação são iguais, mas por outro lado, vivendo na periferia de um país periférico, de uma geração que não teve papel central nem testemunhou as várias revoluções havidas em 1960 e demasiado novo para compreender as locais de 1970, o tipo de impacto acabou por se tornar mais provinciano e pessoal do que partilhado em círculos mais alargados. Alguns dos trabalhos discutidos por Morrison, sobretudo a primeira onda de produção a que se dá o nome de Golden Age (anos 1938-1950s) ou mesmo alguns títulos esporádicos mais tardios (por exemplo, o run de O’Neil e Adams em Green Lantern/Green Arrow), apenas vieram a ser lidos posteriormente, numa óptica diferente da da leitura adolescente, pelo que a sua reverberação se inscreve de modos totalmente outros.

A presença dos super-heróis é sentida por Morrison como um crescendo, não apenas pela sua tradução para o cinema e a televisão quer através de adaptações quer de trabalhos originais - ainda que marcadíssimos pelas tradições vigentes - (tendo assim desde Spider-man e Hulk a Unbreakable e The Incredibles no cinema, e de Smallville a Heroes e Misfits e No Ordinary Family na televisão - mas o cancelamento de muitas dessas séries ou sagas cinematográficas, com os recorrentes reboots, já para não falar de falhanços críticos, não é tido em conta por Morrison, talvez pelo pouco intervalo dessas notícias e a escrita do livro) e mas num certo estado de espírito dos tempos mais recentes no mundo ocidental. Há como que uma convergência de modas, integração da tecnologia para aumento das capacidades de comunicação, expressão e conhecimento, e uma vontade indómita nas conquistas do futuro que fazem o autor suspeitar ser esse paradigma, antes ficcional, a operar sobre o imaginário e a vida diária das novas gerações. Todavia, é estranha a ausência ddiscussão neste livro do papel dos super-heróis na literatura norte-americana contemporânea: com romances como os de Michael Chabon, Junot Díaz, Jonathan Lethem e Austin Grossman, haveria aí pasto para análise...

Morrison está em crer que os super-heróis - se forem tomados como “máquinas ficcionais”, “desejantes”, “de auto-projecção - podem tornar-se em instrumentos de auto-tranformação, e não somente representantes de uma ideologia as mais das vezes duvidosa e perigosa. É esse o cerne do livro, ainda que seja algo difícil, para nós, resumir todas as suas implicações. Morrison cita Pico della Mirandola, quando fala da hipótese do livre arbítrio do homem poder escolhar como modelos de imitação seres angélicos superiores em todos os aspectos ao ser humano, e não deixarmo-nos cair pelas nossas vontades mais animais e passionais, recordando-nos ao mesmo tempo como esse pensador renascentista teve uma brevíssima presença em All Star Superman, com uma citação que torna esses modelos e vontade claríssimos.

Confessemos que a leitura é muito recente destes últimos capítulos, logo há uma dúvida ainda se se tratam dos mais caóticos, fragmentados e quase inconsequentes fiapos de notas, ou se é precisamente esse sua natureza - tão em acordo com o estilo de escrita de Morrison, cujo impacto é protelado pela acumulação de aparentemente desconexas partes as quais, ao finalmente se coalescerem nas nossas mentes, fazem a entrada impactante de uma ideia inesperada (recordemo-nos da magnífica primeira página de All Star Superman, que mais parece ser um equação visual/matemática do que uma composição de página, e reutilizada na capa deste livro) - o que oculta ligeiramente a sua força e verdade brutas. O último capítulo fala das consequências do impacto das figuras dos super-heróis na nossa cultura, incluindo a existência de super-heróis reais, pessoas que se vestem de personagens coloridas e exercem uma outra acção específica nas suas cidades. A frase-chave é “Vimos o que acontece quando os super-heróis se tornam como nós. O que acontecerá quando nós nos tornarmos como eles?” (pg. 401).

Livro de história e análise de um género, de alguns considerandos pessoais de um criador mas também grimório de possível transformação pessoal - a palavra-chave é “vontade”, aliando o programa de Aleister Crowley ao destas personagens fictícias - Supergods pode ser eventualmente uma preparação de um amanhã optimista, positivo e colorido.

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