23 de setembro de 2010

Market Day. James Sturm (Drawn & Quarterly)

Será possível o discípulo ultrapassar o mestre? Ou o filho ultrapassar o pai? Se na segunda questão há sempre o desejo de responder “sim”, na primeira ela é apenas atendível caso a caso, mas é raro que seja aceite sem discussão. A questão da influência, no quadro da literatura, foi famosa e talvez mesmo magnificamente estudada por Harold Bloom, ainda que a sua oposição a todo um campo contemporâneo de estudos associados a atitudes políticas menos conservadoras e mais atreitas a “diferenciações” internas ou éticas para além dos cânones historicamente impostos (isto é, no interior de uma certa hegemonia cultural e social) o tenha marcado e quase encerrado no possível uso teórico. Na sua trilogia dedicada ao tema, Bloom estipularia os instrumentos que lhe permitiram chegar às seis naturezas da influência, ou como ele diz, as seis “razões do revisionismo”, que têm sempre a ver com crises de interpretação do novo autor (o influenciado) em relação ao autor anterior (a origem da influência). Isto é, o novo autor acabaria sempre por interpretar mal o autor que o influenciara, mas é esse mesmo desvio que levará à emergência de um novo autor, e não de um epígono. Dessas seis “razões”, uma há que dá pelo nome de tessera (a palavra, significando cada uma das pecinhas de um mosaico, é reempregada por Bloom a partir de Lacan, o qual Bloom considera um exemplo acabado de tessera em relação a Freud): “a qual é a completação e antítese (...) o poeta tardio completa o poema e poeta precursor , de resto 'truncado', com aquilo que a sua imaginação lhe dita.” De certo modo, é como se o autor tardio seguisse o mesmo caminho que o precursor, nos primeiros passos, mas a dado momento se desviasse e “completasse” o anterior, pois seria melhor, uma vez que o precursor não havia ido longe o suficiente. Penso que deverá ser claríssimo para qualquer leitor de James Sturm que a (sua) grande figura tutelar é Will Eisner. Em mais do que um aspecto, parece ser a obra de Will Eisner aquela à que Sturm responde, a distância (já que termos de contextualização actual, diálogo directo, o leque abre-se a muitos outros autores, em termos de companheirismo mas não de “hierarquia” - histórica, de campo, de criação de território, etc.). Ora, se bem que Sturm seja já criador de uma pequena mas bem contornada e forte obra – a sua trilogia America é já vista como obrigatória –, a sua criação parece ser a resposta “que vai mais longe” do que Eisner prometera na sua própria obra.
Vamos por outro lado. No diálogo Íon, de Platão, apresenta-se uma outra teoria sobre a ideia de influência, mas bem diversa, partindo de pressupostos diferentes. A palavra-chave nesse diálogo é “entusiasmo” (etimologicamente significando “estar possuído pelo deus”, ou melhor, “em deus”). Empregando-se a metáfora dos ímanes como passando a energia do deus para o poeta, e depois deste para o aedo, até que chega ao público, abre-se uma outra imagem curiosa. Há sempre algum grau de perda nessa transmissão, como quando se verte líquido de taça em taça. Claro está que a adaptabilidade desta teoria aqui é complicada, pois nem corresponde termo por termo à de Bloom, nem quereríamos implicar que algum desses elementos (Sturm e sobretudo Eisner) teria a natureza do divino... Trata-se tão-somente de compreender este possível movimento de uma energia, a energeia, “acção”... Aliás, uma outra parte do texto de Íon falará precisamente da diferença entre a “arte”, que teria a ver com um conhecimento de um conjunto de regras, saberes-fazer, etc., e a inspiração divina, algo que ultrapassaria Íon. Talvez disséssemos “génio”, hoje em dia. E quer no caso do grande nome da banda desenhada norte-americana quer no do mais jovem autor, estamos perante dois inteligentes, observadores e esforçados artistas que dominam esta linguagem, no que ela tem de mais clareza narrativa, de efectivo veículo emocional, e até de possível pesquisa de sentido através dos elos verbais-visuais. As obras de Eisner e a de Sturm são fruto não de uma inspiração que ultrapasse as suas consciências, mas de uma conscenciosa tarefa, de um trabalho: aturado, ponderado, esculpido, dedicado.
A própria personagem de Sturm neste livro, Mendleman é um artista, no fundo, que reflecte sobre o seu trabalho sob novas condições de produção. Mendelman tece tapetes (estamos algures numa Mitteleuropa dos anos 1910?). Não dizemos “artista” porque se trataria de um homem capaz de criar formas belas no seu campo, os tapetes (e fá-las, ainda que apenas as adivinhemos), mas porque tem os olhos e o coração de quem colhe à sua volta as imagens que poderá semear, por seu turno, nas suas obras. E essa visão é a que tinta todo o livro. Por exemplo, logo ao princípio da narrativa, depois de Mendleman observar as cores da madrugada, e as raias com que se pintam os céus, e promete vir a utilizá-las nos seus tapetes, é impossível para o leitor observar os fundos novamente de todo o livro sem pensar que, mesmo no impedimento de o fazer (os tapetes não são mais lucrativos e estão ultrapassados na era industrial em que Mendleman entra), são os seus olhos que tecem os céus que se passeim por Market Day. Há mesmo um momento de observação do protagonista, no mercado, que transmuta tudo o que vê na “visão de um tapete a vir”, mostrando-nos os mecanismos do seu olhar específico e do seu saber-fazer. É através dessas explorações subtis que Sturm nos abre, sem nunca o dizer abertamente, a alma de um artista e nos permite entender aquele mundo através dessa mesma alma.
A temática judia não é nova em Sturm, mas assume aqui um papel preponderante que tem menos a ver com um contraste étnico-político, ou recriação histórica ou investigação cultural, do que com a natureza humana em si. Ou seja, não é um tema, é a matéria. Mendleman é judeu, e isso não serve de nada mais. Existe um contraste, mas é a nível económico, opondo a paixão do fazer da manufacura e do artesanato às imposições do mercantilismo industrial e capitalista, e o que isso significa na vida de um homem. Um dia, Mendleman descobre que não poderá continuar a sua vida como fazedor de tapetes. Horas antes de nascer o seu filho. “Que fazer?”
Como o título indica com exactidão, toda a narrativa dura apenas um dia, o “dia de mercado “(na verdade ainda se entra na madrugada do dia seguinte). Assim, a estrutura do livro abre com a madrugada em que Mendeleman se prepara para partir para o mercado, e encerra com o seu retorno, um homem totalmente transformado pelas circunstâncias. Essa estrutura recorda-nos o filme de Carlos Reygadas, Stellet Licht, que abre e encerra com os extremos do dia e que mostra também um homem dividido entre duas decisões, ambas fortes e justas. Mas onde Reygadas explora os problemas que nascem das razões do coração, Sturm associa a crise existencial e familiar aos seus fundamentos económicos: nesse sentido, Market Day é um livro marxista. E questão central será: “como é que um homem recria o seu posicionamento ético quando a infra-estrutura se altera?”. O melhor, com Lenine, “Que fazer?”
Face a essa questão terrível, compreensivelmente, a fantasia, o desvio fantasmal de abandonar tudo, de recriar uma vida num outro algures, num outro tempo, é recorrente. Mas o peso da terra, dos locais que se calcaram antes, é por demais imperioso na sua chamada. É como se fosse necessário, em nome de uma saúde profunda e indizível, namorar essa fraqueza, olhar esse abismo olhos nos olhos, permitir que a fantasia se espraie como dendrites no cérebro, para os evitar totalmente e fincar os pés no chão. Por mais doloroso que isso seja.
Apesar deste tumulto interno todo, das suas projecções – as esperanças que havia lançado na juventude e a forma como se dissiparam, os medos que emergem no seu presente e a forma como vão enrolando-se num calhau à Sísifo, um peso tremendo –, Sturm acaba por nos ofertar um livro muito sereno. Algumas das páginas mais belas, são aquelas “silenciosas”, fragmentadas para dar a ver o caminhar lento do dia respirando e do passeio descorçoado do protagonista, que interrompem aqui e ali o ritmo mais narrativo dos encontros de Mendleman. Essas páginas tanto nos fazem recordar algumas das experiências de Frank Santoro, como, por extensão, da questão da stasis na banda desenhada como discutida por Blaise Larmee, aqui. É como se a respiração ofegante do medo cavalgante de Mendleman encontrasse nessas páginas um momento em que pudesse respirar fundo e não pensar em nada de mais...
São esses momentos de suspensão, de desafogo, que marcam o grande contraste com o trabalho de Eisner, em relação aos quais se desenvolve o tal trabalho de tessera. Reparemos num exemplo: Eisner empregava onomatopeias de um modo que, tendo marcado a sua época (e sobre as quais ele próprio teorizaria nos seus livros teóricos/manuais/testamentos), abrindo-se àquele seu tipo de experimentalismo, e provocando grandes aberturas, é agora visto, pelo menos por nós, e para trás, como um vício, uma mania de estilização. Aliado ao dramatismo exacerbado das suas figuras, as suas histórias acabam por estar revestidas de uma certa energia excessiva, análoga ao que se chama de “over-acting” nas actuações. Uma excitação a mais. Sturm, e neste aspecto é impossível não o irmanar a Seth, com quem tem mais do que uma afinidade electiva em termos estruturais, figurativos, e até de voz, opta por um uso muito mais esparso dos mecanismos clássicos da banda desenhada (uma linha cinética aqui, um picotado de movimento ali, o moldar dos balões e letras para indicar inflexões de volume) e por uma gestão de silêncios muito mais condutora das impressões internas das suas personagens. Ainda assim, esta comparação é possível porque é como se Sturm se vestisse com o modelo e as ferramentas de Eisner, e as tivesse trazido para o contexto contemporâneo da banda desenhada, em que é possível criar esta nova atitude. Correcção (tessera), portanto. Eisner foi um artesão magnífico, e que inventou, em parte, muitos dos mecanismos dos nossos dias. Mas Sturm teve a oportunidade de abrir esta linguagem a um encontro feliz entre a atitude documental e recriadora e a poeticidade, no seu sentido de poiesis, de fazer. De acção. Que é tanto “por dentro” de Mendleman como “por fora”.
A qualidade do “meditativo” a que Larmee se refere é justamente aquilo que se desenrola em Market Day, mimando a vida interna de Mendleman. Essa qualidade transmite-se menos através da repetição ou de um ritmo agravado, neste livro, do que pelas formas como se procuram estabelecer ilhas de silêncio, de pausa, entre os momentos ora de acção ora de pensamento, como se aquilo que havia sido lançado, verbalmente, por Mendleman, encontrasse continuidade, e eloquente, na matéria visual que o rodeia e da qual ele próprio emerge. São esses momentos de meditação que, depois de Mendleman fechar a porta atrás de si e ir tomar as suas decisões, nós, enquanto leitores, herdamos.

1 comentário:

ml disse...

são fôlegos críticos destes que nos fazem ansiar pela posse de um livro concreto.