1 de julho de 2010

Barrigada de livros ilustrados.

Por ocasião de vários encontros, certames, exposições e cruzamentos, fomos acumulando uma pilha de livros de literatura infantil ilustrada, picture books (com excepção de Lendas e Toadas); todos eles mui diversos entre si, oh, sim, mas cada um com os seus prazeres próprios, olarila. Vamos a eles, com notas brevíssimas sobre cada qual...

Lágrimas de crocodilo. André François (Bruaá)
Amigo de Prévert (com quem fez o maravilhoso Lettres des îles Baladar) e de Ronald Searle (de quem foi colega brevemente na Fortune, por exemplo), e parente gráfico de Saul Steinberg, André François foi um conhecídissimo ilustrador e cartoonista, tendo umas cinco dezenas de capas da New Yorker assinadas por ele, e esta sua experiência no campo infantil é informada pela mesma verve sarcástica de outros trabalhos mais adultos. Este livro pretende explicar uma expressão corriqueira mas, como um mecanismo de Rube Goldberg, a explicação procura o caminho mais longo e absurdo. O mais fantástico deste livro nem sequer é a própria história, tão estrambólica como divertida – as “escovas de dentes” dos crocodilos são um ponto alto –, que bebe do fantástico para criar situações curiosas, nem dos desenhos em si – em que rápidos apontamentos a verde e a laranja (lápis de cera?) fazem as cores todas desse mundo –, mas antes do formato de todo o livro, que a editora portuguesa respeita tal qual o seu original de 1956. O formato é inusitado, pois o volume vem dentro de uma caixa que se assemelha aos antigos sobrescritos de correio aéreo, com todas as informações usuais de um livro, e uma janelinha. É na leitura do livro que, aprendendo como se capturam crocodilos, ficamos a saber ser necessário uma “longa caixa para crocodilos” e os serviços dos correios. Assim, se bem que a descoberta do interior comece com estranheza e maravilha, após a leitura, apercebermo-nos-emos da necessidade imperativa desta caixa-capa, uma vez que é o próprio objecto explicado no interior, e torna-se a caixa que traz o nosso crocodilo. Esperemos que não precisemos de aprender o que são as suas lágrimas do modo como é descrito...
There was an old lady who swallowed a fly. Jeremy Holmes (Chronicle)
Baseando-se numa lengalenga em língua inglesa, Holmes cria um livro que é muito simples no que diz respeito à representação da narrativa em si, mas por outro é muito complexo e belo pela mecanicidade... ou mãocanicidade, como já havíamos antes discutido. O livro, pare ser ler, tem de dispensar o invólucro, rectangular, que faz as vezes de casacão da “velha”. Depois, é apenas a “barriga” dela que se folheia, descobrindo, à vez, os animais que ela foi comendo e que certamente a levariam à morte (citamos a partir da lengalenga): por ter engolido uma a mosca, tem de lançar outro animal que a possa apanhar e outro para apanhar o novo animal e assim sucessivamente: a aranha, o pássaro, o gato, o cão, a serpente, a vaca (que ocupa tanto espaço que precisa de uma página adicional) e, finalmente, o cavalo, que a mata. Cada nova imagem revela o novo animal fazendo algo ao anterior, e apenas o cavalo é que não tem direito ao mesmo tipo de imagem, uma vez que leva à morte da “velha”. O mecanismo do livro faz com que, ao virar-se a última página, os olhos dela fechem, para que rime com os braços cruzados dela, munidos de um ramo de flores e um mata-moscas, pronta a ser “fechada” e “vestida” novamente, reescrevendo o s gestos do princípio com um novo significado, mais macabro. De certo modo, não é mais do que o que se faz a um qualqer livro: abre-se o livro por estar vivo, fecha-se o livro por já ter morrido (até viver de novo). O encontro entre o texto e as imagens e os gestos associados é certeiro. Mais complicado que o Crocodilo de François, mas é a simplicidade deste último que torna esse encontro mais forte ainda do que este livro de Holmes.
Love. Lowell A. Siff e [Gian Berto] Vanni (Canongate Books)
A edição original deste livro é de 1964 (França: Pierre Tisné), logo remeterá este livro para toda uma série de experiências de livros ilustrados infantis dessa época que procurava explorar todas as capacidades expressivas, comunicativas e poéticas (de maneira alguma sinónimos) na materialidade própria do livro, isto é, considerá-lo não apenas como mero veículo passivo (o que nunca é verdadeiramente, na verdade) mas como palco activo e mutável na construção da narrativa que transportará. Como com André François (ver adiante) ou Bruno Munari. Vanni é artista plástico e passeia-se nos circuitos adequados; este é o seu primeiro livro, e único “infantil” ou “narrativo”, composto de desenhos, serigrafia e papel recortado. A narrativa é relativamente simples e com um intuito moralista: uma pequena rapariga, abandonada pelos pais, que não é particularmente bonita, de um olhar intenso, acaba por viver num orfanato, onde é mal-compreendida e mal-amada. Depois de uma mão-cheia de mini-peripécias que a vão diminuido ao olhar dos restantes colegas e mentores da instituição, ele esconde uma mensagem num local secreto, a qual é descoberta pelo director. Ao revelar-se essa mensagem quer ao director quer aos leitores, descobrimos que apesar de toda a dor e crueldade em torno da menina, ela tem a esperança da redenção de todos... As imagens surgem em camadas das folhas multicoloridas, com recortes vários, alguns dos quais encaixando-se sucessivamente. No entanto, para além de jogos geométricos e de texturas, nenhum desses dispositivos estabelece um nexo de necessidade ou de entrosamento imagem-texto, e acaba por surgir como uma espécie de exercício curioso, mas pouco mais. Não estamos perante os objectos de Munari ou de Komagata, nem da necessidade a que aludimos a propósito dos livros de François e Holmes: nesses, toda e qualquer dimensão concorre e converge para um significado coeso e comum. Ainda assim, Love está revestido de alguns princípios que poderão vir a conquistar os leitores de, por exemplo, O Principezinho.
Lendas e Toadas do Nosso Povo Singelo. Ana Saldanha/ Samuel Mahaffy de Sousa Rodrigues Sampaio e Melo, ilustrado por Daniel Silvestre da Silva (Caminho)
Ana Saldanha é uma autora contemporânea que transforma a sua pesquisa da literatura infanto-juvenil numa escola para a sua própria reinvenção, informada historicamente. Este livro é montado – destruo aqui parte do seu fascínio – como se fosse a recuperação de um património antigo, as supostas histórias populares recolhidas por Samuel Mahaffy de Sousa Rodrigues Sampaio e Melo no fim do século XIX, um pouco à semelhança de Adolfo Coelho e Teófilo Braga. Para além dos contos, o livro mostra alguns esboços de imagens, que seriam planificações do próprio punho de Sampaio e Melo, que depois Daniel Silvestre da Silva cumpriria nos nossos dias. Há dois aspectos ou linhas de força a reter, um textual e outro visual. Em termos de texto, e que apenas poderemos convidar à sua descoberta pela leitura, é a camada mais ou menos oculta e hilariante de sentidos que não serão os mais expectáveis na literatura adocicada infantil da nossa era (ou daquela já ultrapassada), mas que mergulha nas construções subtis dos contos tradicionais, que alertavam para toda a espécie de perigos e encolhos da vida humana. O vocabulário e sintaxe ricos e enredados da linguagem colhem da história e da amplitude do português, e o seu desvendamento – lento para quem não partilha de imediato essa língua antiga, como confessamos ser – torna-se uma outra aventura. Quanto às imagens, e ainda no seguimento de considerações anteriores sobre a impossibilidade de uma ilustração poder ser banal ou literal quando parte de um texto prévio, ao qual responde directamente, as imagens de Daniel Silvestre da Silva (quer aqueles esboços atribuídos ao investigador novencentista) quer as ilustrações mesmo são assustadoramente enganadoras. À primeira vista, elas poderão parecer inactivas, singulars demais, retratos quase chãos das personagens envolvidas nos contos, mas na verdade revestem-se de uma densidade tão alegórica como desviante. Por exemplo, no conto “A cabreirinha e o mal”, este “mal” que a protagonista sente jamais é descrito ou esclarecido, e em nenhum momento se diz o que leva consigo, a não ser um cajado e um farnel. D. S. Silva desenha-a com um enorme cesto de palha pejado de urtigas, florzinhas do campo e outras plantas. Será o “mal”? um símbolo, uma interpretação? Uma decoração que pretende ocultar outras florescências? São estes os sendeiros que estas imagens criam, deixando sempre espaço para o texto actuar de um modo livre, e obrigando o leitor a reler e rever, mais do que ler e ver só.
Sr. Pancas e os mal-entendidos no Zoo. Kevin Waldron (Horizonte)
A história do Sr. Pancas conta-se duas vezes, uma porque se engana, a outra porque se corrige, uma criando mal-entendidos entre todos os animais do jardim zoológico, outra desfazendo-os. Esta é um projecto sem grandes complicações, mas muito belo, que tira partido de toda a página, de várias perspectivas e focalizações, precisamente para tornar o mais densa possível (ainda que não indiscernível) a trama e o cruzamento do que se escuta, o que se entende, e o que se vê, e da presença do texto sob as mais diversas formas, tamanhos e tipos de letra, para trazer à consideração as flutuações de expressão que atravessa toa a história. Apesar do Sr. Pancas estar a falar para si mesmo, quem o ouve enfia a carapuça do que ele diz, “pancas” de cada animal. O único pequeno senão é a ideia do próprio jardim zoológico, que se mantém intacta, indiscutida, como o lugar privilegiado da existência dos animais e seu convívio com os humanos. Não há um questionamento desse espaço, nem uma procura das suas razões; todavia, não seria este livro que queria fazê-lo, contentando-se com uma trapalhada mais simples.
O Cuquedo. Clara Cunha e Paulo Galindro (Horizonte)
Criado como uma lengalenga, o Cuquedo é um monstrinho que não é revelado, mais, que ninguém na selva conhece, mas de quem todos têm medo e fogem, “de lá para cá e de cá para lá”. A história – textual – é muito pequena, assemelhando-se a uma anedota-brincadeira que se conta, e tal como A Casa da Mosca Fosca obrigará aos leitores adultos que o leiam aos ouvintes crianças uma predisposição para a teatralidade e a leitura-jogo, para que se ajude o Cuquedo a não ser apenas a endiabrada criatura que é nesta tontíssima história (no bom sentido) mas sim um efectivo diabrete. As imagens de Paulo Galindro ocupam o espaço que se lhes espera, e está recheada de toda uma série de pormenores divertidos que imitam o terrível medo sentido pelas criaturas, desde as listras e bolinhas que saltam dos animais, aos padrões alternativos que vão substituindo as listras das zebras aos objectos que alguns animais vão encontrando em seu torno... As palavras são impressas numa estratégia visual muito viva e pertinente, procurando que elas mesmas ganhem uma dimensão de expressão que é usualmente reservado apenas à imagem. Se tudo correr bem, há um grande susto no fim do livro.
O coração e a garrafa. Oliver Jeffers (Orfeu Mini)
Este é um livro sobre a ausência. Sobre a forma como a preenchemos à nossa maneira. Sobre as questões que não têm respostas simples. Sobre a curiosidade. Sobre a morte, se quiserem. Os livros de Jeffers anteriormente publicados, inclusive pela Orfeu Mini, tinham tido o seu sucesso graças à forma como encontravam um equilíbrio curioso entre forma e conteúdo, transformando o livro-objecto numa relação mais íntima que a de mero veículo à história que transportavam (muitas vezes, há quem pense que apenas no círculo dos livros de artista, das camadas mais intelectuais, etc., é que isso se dá, mas trata.se de uma cegueira habitual). Este novo título faz residir a sua força particular na própria história, uma poderosa e irresolvida metáfora de uma rapariga que, deixando de colocar perguntas, de exercer a sua curiosidade perante o mundo (a característica humana que mais leva à liberdade e ao crescimento), acaba por encerrar o coração num local que por mais perto que esteja é sempre uma distância. Há um equilíbrio muito curioso entre páginas com texto e outras sem texto, entre páginas ocupadas por uma imagem única e um momento longo e outras com uma sequência de acções rápidas, entre ilustrações despojadas, quase infográficas, e outras abordagens mais complexas, com colagens, fotografia, cruzamentos de registos (para os distraídos, retirem a sobrecapa para se revelar o coração da curiosidade da menina). A importância está no facto da metáfora ser, como dissemos, “irresolvida”. Isto não significa que não se possam avançar soluções, mas antes que elas são múltiplas, e que devem ser os leitores que as devem procurar sempre que lerem: não perguntando “o que é?”, mas “porquê?”.
Gastão, vida de cão. Rita Taborda Duarte e Luís Henriques (Caminho)
R.T. Duarte e L. Henriques são um daqueles casos, raros no panorama português (ainda que não inédito), de uma colaboração continuada entre uma escritora e um artista para a construção dos seus livros ilustrados. Num mercado em que a esmagadora maioria dos escritores selecciona o artista por uma necessidade de mercado e não de criação propriamente dita (se é que a escolha não é feita somente pelo conselho editorial), são as pequenas editoras e os editores fortes que ainda garantem a existência de projectos condignos de colaboração, livros que são belos e coesos. No entanto, é necessário apontar o facto de que Gastão é um certo retrocesso em relação aos dois autores, quer em termos individuais quer em termos de equipa. Depois de dois projectos fortíssimos como A Família dos Macacos e Os Piolhos do Miúdo/Os Miúdos do Piolho, em que se tirava partido da estapafurdice, das macacadas, dos pinotes e velocidade, e de uma destreza gráfica estonteante e dinâmica, a acção deste livro parece demasiado estática, teatral (em termos de espaço e desenrolar da acção). O trabalho de Luís Henriques mantém-se pormenorizado e texturado, mas há uma qualquer desinspiração que torna as acções do cão Gastão mais em acidente do que na necessidade da obra. A opção pelo preto-e-branco e o vermelho num “fio vermelho” ao longo da obra é bien trovato, mas perguntamo-nos qual a sua pertinência numa história desta natureza, uma vez que não há alteração de personagens, espaços ou épocas. Os textos também apresentam alguns momentos algo trôpegos, quer em termos de ritmo (leitura em voz alta) quer em termos de clareza nos acontecimentos... mesmo pela perspectiva de um Gastão exasperado, haveria caminho mais certeiro.
Migrando. Mariana Chiesa Mateos (Orfeu Mini)
A frase feita “uma imagem vale mais que mil palavras” é utilizada, as mais das vezes, em contextos fracos, tornando-a numa patetice que não quer dizer nada senão a incapacidade da pessoa encontrar as palavras mais acertadas para descrever, expressar, comunicar, fazer o universo que lhe cabe. Mas há vezes em que as palavras que um determinado assunto despertariam seriam tão alongadas e complexas e tão pejadas de armadilhas de mal-entendidos, que é o silêncio eloquente das imagens que melhor pode tecê-lo. É o caso deste livro. Como se verá pelo vídeo, o livro é duplo, podendo ser lido a partir de qualquer uma das pontas/capas, até se atingir a imagem-paisagem central. A migração humana não é apenas um evento milenar, é mesmo condição própria humana. Em termos da história da humanidade, só muito recentemente é que se passou a considerar o sedentarismo e, mais tarde ainda, as ideias de nacionalismo, títulos sobre a terra, e todos os perigos, crimes e problemas que daí advêm... Por outro lado, há também os abusos que se fazem à própria terra, obrigando os que lá vivem a abandoná-la, para que procurem não apenas uma outra vida, mas uma verdadeira vida. O livro tem dois começos, mas apenas um fim, e ambos a mesma estrutura de olhar. Se começarmos por um lado, acompanhamos uma jovem mulher partindo de avião para, presume-se, um outro país (onde vai estudar, viver, trabalhar), e o seu testemunho de um jovem surfista salvando alguém que caíra de um pequeno barco improvisado, uma balsa; se pelo outro, vemos uma sequência de uma rapariga num automóvel, depois uma sua breve fantasia, o relato da sua mãe ou avó da guerra, que expulsara muita gente de navio, e a construção de uma nova cidade. A paisagem central, no meio do livro, mostra como que duas margens de um percurso, onde as duas protagonistas (a mesma, em idades diferentes, como querem dar a entender os prólogos?) se miram uma à outra, enquanto os pássaros-migrantes voam à volta. Em ambas as metades, apresentam-se imagens de uma fileira de pessoas, de “outros”: numa fileira, com o horizonte maríimo ao fundo (da guerra e a figa de navios), vemos o que parecem ser paisanos, italianos, judeus, na outra, com uma cerca de metal como cenário (o percurso da balsa, do saltar a cerca), vemos gentes do sudoeste asiático, árabes, negros, indianos, paquistaneses... Generalizamos, claro, pois a ausência de palavras quer tornar o fenómeno da migração universal (o que, historicamente e a longo, longo prazo, é verdade), mas há esta diferenciação em dois momentos e duas circunstâncias diferentes: a fuga da guerra e a fuga da pobreza. Há uma gigantesca diferença entre quem viaja em “primeira classe” para assumir um cargo relativamente seguro noutro país (um emprego à espera, o papel de estudante ou de professor, uma missão com prazo) e quem se arrisca para outro local para poder sobreviver seja no que for. Este é um livro que obrigará a uma leitura com muito cuidado e com muitas explicações, é um livro que deverá servir de passaporte para outras visitas, leituras e conversas, uma leitura que aponte todas as diferenças e matizes (inclusive de cor de pele, de tempero das comidas, de timbre das vozes e das línguas), para depois se descobrirem onde estão as margens que há que atravessar.
A Manta. Isabel Minhós Martins e Yara Kono (Planeta Tangerina)
A escritora desde 2004 tem mantido, na sua casa-mãe, uma actividade contínua, e é possível que uma apreciação global da sua obra revele algumas linhas contínuas, sobretudo aquelas que dizem respeito ao fortalecimento das redes familiares, talvez um dos fundamentos para a leitura perfeita destes livros (sem com isto querer reduzir “família” a uma unidade monolítica pautada por princípios político-sociais conservadores; recordemo-nos de um livro-ode à família que foi O Livro do Pedro). Desta feita, este livro ronda em torno de uma herança, uma manta de retalhos deixado pela avó, sendo cada um desses retalhos um resquício, um traço sobrevivente de um outro qualquer objecto entretanto desaparecido: um forro, uns calções, uma saia. O livro é assim, duplamente, sobre a morte, de um modo diferente do de Jeffers. Todavia, cada um desses quadradinhos é também a desculpa para a história do objecto original (um exercício muito benjaminiano), ou seja, a da emergência e sobrevivência da memória, a transformação do passado, esfumado, em história rediviva e, com esse acto, a redenção da memória da própria avó, da família, e a promessa de que continuará a sua expansão. Assim, o livro é também sobre a vida que sobrevém a morte. Os desenhos de Yara Kono, outra das peças centrais da Planeta Tangerina, procuram devolver através da sua abordagem pouco naturalista (alteração de escalas, abolição de prespectivas, utilização de diagramas) e estilizada (redução a esquemas de certos objectos, personagens desenhadas geometricamente, emprego de uma reduzida gama de cores planas e sóbrias) o tom concreto, simples, muito terra-a-terra, do modo como desdobrar uma manta de retalhos e recontar cada passo será na vida real.
25 poemas ilustrados. Miguel Hernández et al. (Kalandraka)
Esta é uma antologia de poemas do poeta popular (em ambos os sentidos, no de fama e no de cronópio) espanhol Miguel Hernandéz, que acabou nas mãos e na morte das prisões franquistas, não sem antes ter visto a sua fuga e liberdade cerceada pela polícia salazarista. Se procuro estas ligações entre Portugal e Espanha, finas, é o facto da editora Kalandraka servir de ponte também entre os dois países nas suas edições, mas talvez esta edição não seja alvo de tradução para o português. Há que lê-los na sua simplicidade e brilho originais... Há linhas que os cosem junto às tradições do Siglo de Oro, outras aos companheiros de combate poético Neruda e Aleixandre (citados mesmo num poema); e a maioria dos poemas sempre versando sobre terrenos como os da amizade, o da morte, o da ausência, a guerra e suas feridas, coisas chãs da terra e de todos os dias calcados. As imagens que acompanham os poemas, de mais de uma vintena de artistas, alguns deles muito famosos (Isidro Ferrer, Xosé Cobas, Gustí), outros menos, vogam todas as águas possíveis nos diálogos com a palavra de Hernández. Cada qual procurando cada um a seu modo responder ao mot juste com a imagem certeira. Será um exercício de análise interessante, profícuo, lê-los, aos poemas, com a intenção de captar novamente a ideia-semente que levou à imagem do artista, ou lê-las, às imagens, com a intenção de regressar ao texto informados de modo diferente. Uma vez que existem tantos projectos pedagógicos sob a forma de livros ilustrados, sob a noção de que a sedução a bela palavra e da imagem bela melhor veiculam o que há a aprender, talvez este volume seja um exemplo acabado de uma pedagogia ainda mais ampla: “Siempre fuimos nosotros sembradores de sangre./Por eso nos sentimos semejantes del trigo. (...) Agredimos al tiempo con la feliz cigarra,/con el terrestre sueño que alentamos”. (Llamo a los poetas).
Nota: agradecimentos a Bárbara Rocha pelo empréstimo de Love, a Carla Oliveira, pelo de Old Lady... e pela oferta do livro de Jeffers, a Luís Henriques e à Caminho pela oferta de Gastão, e à J., razão pela escolha de muitos dos títulos.

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