26 de janeiro de 2010

L’Hypnotiseur. Pablo de Santis e Juan Saénz Valiente (Casterman)

Território dado a géneros, a banda desenhada conta com uma mão-cheia de magos na sua história. Sem nos associarmos aos feiticeiros que se herdaram das novelas medievais, ou às bruxas e druidas de fontes ainda mais antigas, os hipnotizadores e prestigitadores fazem parte também da mobília. Sobretudo nos anos 1940, quando era prática comum criar modelos sobre os quais se operavam variações ad infinitum: Mandrake, Zatara e Zatanna, The Phantom Magician, Balbo, Ibis the invincible, e uns quantos outros... Aos poucos, este tipo de personagens desapareceram quase por completo, dando lugar a, no interior das suas ficções, verdadeiros cultores da magia, branca ou negra, mas sempre mística, terrível, e talvez de elevado preço (The Spectre, The Phantom Stranger, Dr. Strange, Promethea). Na Europa e noutras paragens, este território servia usualmente de palco para malentendidos, erros e humor (Panoramix e as poções, o génio sonolento de Iznougoud, e os pequenos espectáculos semados pelo Tintin servirão como exemplo).
É curioso, portanto, ver um regresso ao papel principal da figura do hipnotizador, isto é, sem poderes particularmente excepcionais face ao peso da nossa realidade e da vigília, mas levando-o a cumprir todos os trâmites necessários a que seja ele o foco, agente e eixo das histórias.
L’Hypnotiseur junta dois autores argentinos, um escritor e jornalista, de Santis, e um jovem autor de banda desenhada, ilustração e animação, Saénz Valiente. Este livro é composto por pequenas histórias, mais do que episódios, ainda que se construa uma narrativa maior, coesa, entre eles, e que estruturam de facto a história da vida (e a resolução da intriga maior) de Arenas, um hipnotizador que parece saltitar de cidadezinha em cidadezinha para os seus espectáculos em pequenos teatros, perante um público mais ou menos apático, entediado, movidos por uma curiosidade mórbida ou distraída. Todavia, o cerne de cada um desses episódios constitui uma brevíssima novela, em que o protagonista ajuda ou tenta resolver um qualquer caso associado à personagem secundária na qual se centra essa historieta: casos de amor, policiais, de memórias perdidas, talentos desperdiçados, cada um deles sendo como que uma peça da intriga do próprio Arenas. Parte dessa intriga está relacionada com o facto de que o hipnotizador não consegue dormir, e os sonhos que lhe cabiam foram usurpados pelo seu inimigo, Darek. Recuperar o sono perdido (e os últimos fiapos de felicidade que o acompanhava) é o que move toda a intriga, e as tentativas goradas do dono da pensão em garantir esse sono ao seu hóspede é parte do contínuo charme e humor do livro (além de que a sua resolução contribui para uma estruturação da abertura e fecho do livro, num simples mas nítido exercício de entrelaçamento, cf. Groensteen). Tudo isto parece poder dar azo a uma trama hiperbólica, a romper de fantasia e volutas de acção, mas é o contrário que sucede. Trata-se de uma narrativa irmanada às d’A Pior Banda do Mundo, na qual são as trouvailles subtis que compõem a sua beleza. O nome do protagonista tem também um preponderante papel, se lido de forma metonímica em relação ao ritmo e natureza das histórias.
O ambiente não vai mais além de dois ou três cenários, como se se tratasse de uma peça de província: o hotel, o interior do teatro, a feira, a casa de campo, e mais uns fechados e apertados espaços onde as personagens secundárias habitam. Associado a estes espaços, as cores baças, saturninas, e a composição de página convencional, fazem com que se desprendam de uma realidade histórica, cartografável, e se fundem naquela tessitura urbana (e talvez depressiva, mais do que opressiva) na qual vamos encontrar as personagens sonâmbulas de Bruno Schulz, de Ben Katchor, algum Cortázar, e, ainda que desprovidos da dinâmica e cinetismo que lhes estão associados, dos filmes de Marc Caro e Jean-Pierre Jeunet, ou de Les triplettes de Belleville de Sylvain Chomet. Se se faz esta aproximação à animação, também a fisicalidade das personagens, pelo desenho de Valiente, faz recordar a plasticidade de um Bill Plympton (pelas camadas de linhas, o baixo contraste entre os corpos humanos e os fundos), mas é como se estas personagens não tivessem acesso aos acessos de histronismo e plasticidade das do realizador norte-americano, não por impossibilidade, mas desistência. O mais próximo, penso, na banda desenhada, será parte da obra de Nicolas de Crécy, sobretudo a mais enfastiante (de propósito?). Apesar de tudo isto parecer dar a adivinhar uma certa lentidão, quiçá interpretada de um modo negativo ou pouco entusiasmado, a verdade é que L’Hypnotiseur vem contribuir para, no seio da banda desenhada editada comercialmente, a fundação de uma abordagem mais calma, pouco dada a soluções explícitas, expeditas e expletivas... isto é, que querem sempre apontar para efeitos “para o exterior”. O terreno aqui é o da interioridade. Já que o talento e profissão do protagonista é, etimologicamente, “pôr [os outros] a dormir”, descobre-se aqui como o “sono” e o “sonho” (temos a felicidade de, em português, ambas as palavras não estarem senão separadas por um brevíssimo hausto, que “humedece” a segunda) pode servir de porta não (somente) a fantasias maravilhosas, como em Little Nemo, nem a pequenas óperas dramáticas, como em The Sandman, nem tampouco a territórios aptos à colheita funesta e dogmática da psicanálise, mas sim à possibilidade de nos expressarmos de modo mais claro do que na vigília. Arenas, como um detective borgesiano, com o balançar do seu pêndulo, a sua voz monótona e o seu ar altivo e distante, apenas permite que cada um o faça certeiramente.
Nota: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.

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