24 de outubro de 2009

Asterios Polyp. David Mazzucchelli (Pantheon)

O trajecto de Mazzucchelli é, só por si, digno de uma atenção especial em termos de um entendimento linear de fama, expectativas e acomodação ao mercado da banda desenhada. Mazzucchelli ficou conhecido de um grande número de leitores sobretudo através de trabalhos no mundo do mainstream norte-americano dos superheróis, com o Demolidor escrito por O’Neil e depois Frank Miller, e depois, com este último autor, em Batman: Ano Um (francamente superior a The Dark Knight Returns em todas as suas dimensões). No entanto, essa acomodação, que visaria um equilíbrio final num mesmo campo, foi totalmente desviado pelo seu abandono desse circuito comercial, lançando-se a projectos mais independentes nos quais poderia explorar a inventabilidade gráfica possível da banda desenhada fora dos espartilhos narrativos, visuais e políticos previstos na Marvel e DC. Entre 1991 e 1993 publicaria, através de um selo editorial próprio, os três números da revista Rubber Blanket, na qual exploraria toda uma série de modos de contar em banda desenhada, explorando estilos gráficos, temas e géneros, e cruzamentos de modalidades do modo que lhe parecia o mais livre. Em 1994 seria publicada a adaptação em banda desenhada do romance de Paul Auster, A Cidade de Vidro, numa colcaboração com Paul Karasik (cuja importância é superna na construção do livro), que contribuíria para uma substancial nova forma de entender essa mesma “transescritura”, para empregar um termo de um livro coordenado por André Gaudreault e Thierry Groensteen.
Asterios Polyp é o seu primeiro livro de formato espraiado, mas condensa toda a experimentação que Mazzucchelli vinha apurando nessa sua fase “independente”. Se bem que não se possa dizer que o autor faça “experimentalismo” tout court – numa mesma acepção que os autores de Abstract Comics, ou os da Frémok –, ele emprega-o ainda assim para a cração de novos veículos de expressão narrativa. É óbvio que este livro é alvo de vários encómios e entusiasmos, empregando-se a palavra “magistral” com generosidade, mas não o será de todo deslocada. Há, sem quaisquer dúvidas, uma perfeita coadunação das experiências da linguagem da banda desenhada ao programa narrativo, como veremos. Todavia, é necessário qualificar este trabalho de Mazzucchelli, de excelência, como estando incrustado no campo da banda desenhada narrativa, legível (por oposição aos caminhos da experimentação, se bem que esta divisória seja ilusória) e acessível. A seu modo, o autor exponencia a continuidade da aplicação daquilo a que se dá o nome de “linha clara” como uma das escolas permanentes da banda desenhada: porém, ele ultrapassa a utilização dessa estratégia (ou constelação de estratégias) de uma mera aplicabilidade para a construção de uma ideia de realidade e verossimilhança para chegar à transmissão das impressões e percepções pessoais das suas personagens, a emergência de mundividências específicas e diferenciadas. Isso nota-se no momento em que o narrador nos faz entender o modo como cada personagem, como cada pessoa, observa o mundo, existindo uma escolha de representação gráfica para cada uma delas, e o modo como o protagonista, Asterios, conhece a sua futura mulher, Hana, e estes se vão mesclando (ele, feito de linhas vectoriais, límpidas, transparentes, azuis ela, de expressivas tramas e densas sombras, vermelhas), e mais tarde desfazendo-se.
O nome da personagem principal aponta-nos não apenas à tradição de transformar, por defeito, os nomes dos imigrantes – “Polyp” seria um nome grego truncado pelo oficial que recebera o pai de Asterios, encurtado portanto – como ainda para associações livres que poderão ter algum papel na história em si: excrescência de pele, a criatura aparentada com a anémona, flor do mar (asterios parece também ganhar ideia de flor, sublinhada pelas páginas das guardas do livro). Verificam-se muitos cruzamentos entre a vida desta personagem, matéria do livro, com o mito de Orfeu – o espectáculo que o entrepreneur cultural, Willy, prepara, as referências a Gluck, a sequência da “descida imitativa” do próprio Asterios, entrelaçando-se todos os elementos desse mito à projecção do protagonista deste livro. Essa adaptação procura cumprir a mesma plasticidade contemporânea dos Orfeus de Cocteau, de Vinicius de Moraes/Marcel Camus, de Buzzati. Todavia, essa associação é tão clara que acaba por não ser tornar significativa para escavar os seus significados mais profundos. Isto é, é somente uma associação de princípios narrativos. Para explorar essa perspectiva, seria mais importante procurar quais os modos através dos quais o mito de Orfeu é apresentado, quais as variações ou tervigersações em relação aos materiais mais recuados, para perceber se há um fortalecimento dessa história através da de Asterios.
Não me parece que isso acontece. Não há dúvida de que Asterios poderá exercer algum fascínio sobre algumas pessoas (uma mão-cheia de alunas embevecidas, incautos fãs, e a sua mulher, Hana). No entanto, a imagem que mais avança é a de que Asterios não tanto seduz como impõe uma sua superioridade, através do seu poder, inteligência, e charme controlado. Se ele acalma as bestas do inferno e do mundo, tal não se deverá a um talento inato de entrosar na beleza, como o poeta, mas a um frio calculismo ponderado. E essa é mesmo a lição a que Asterios Polyp é submetido; a sua natureza perenemente desapaixonada, sem riscos, sem desequilíbrios, é aquela que terá de sofrer ajustes. O pecado de Asterios é o da hubris. Não há nenhuma resposta fácil para se interpretar o mito de Orfeu (já que os materiais que o compõem são heterogéneos, diferenciados, distanciados), mas parte dele permitir-nos-á precisamente sublinhar o do orgulho e arrogância, repetido, ainda que de uma forma totalemente diferente, por Asterios.
O mesmo não ocorre na matéria que é própria ao veículo que conta a sua história, isto é, a banda desenhada de Mazzucchelli. Uma das frases mais repetidas por Asterios é “tudo aquilo que não é funcional é meramente decorativo”. Mazzucchelli parece querer levar a(s) dicotomia(s) dilectas de Asterios a um ponto absurdo, não para as comprovar nem para as destruir, mas para que ambas se encontrem num encontro inédito. Todo o livro, de uma ponta à outra, apresenta toda uma listagem de estratégias visuais que nada têm de convencionais, mas cujo nível de expressão também não é livre, ornamental, propriamente expressivo. Não é uma questão de subsunção das formas à história, mas uma tessitura densa, uma malha apertada, que nos impede de encontrar os pontos pelos quais pudéssemos rasgar o nível da narrativa e o da sua veiculação visual, ou mesmo nível ornamental. Em Asterios Polyp, o “decorativo” é a própria “função” da narrativa. É um livro cuja análise da cor, das letras, da balonagem, da composição de página, dos jogos das vinhetas, das relações possíveis entre texto verbal e a sua camada visual, as metáforas visuais, as citações literárias, artísticas e da banda desenhada, os simbolismos, as referências culturais, os nomes das personagens, os separadores e a maneira como se entrelaçam no âmago da acção, os eventos e a organização temporal e causal, e quase toda a panóplia dos elementos que compõem aquilo que consideramos próprio intuitivamente da banda desenhada não pode de qualquer modo ser descurada, mas a conclusão inevitável desse estudo é a emergência de um texto coeso, unificado, um “bloco de sensações”, nas palavras de Deleuze-Guattari.
Isto não nos impede de considerar algumas das páginas como que surgindo enquanto unidades solitárias e sólidas. Podem-se, quase, lê-las individualmente, concentrando-se numa afirmação ou num brevíssimo episódio da vida do protagonista, ou dos que o rodeiam, ou numa ideia. São citáveis de um modo límpido. A obra é, em termos visuais e narrativos, composta de toda uma série de referências quer internas quer externas que tornam Asterios Polyp também num encantador manancial de fractalização do universo da banda desenhada e da ilustração. As referências internas têm a ver reaproveitamentos do próprio autor: uma das personagens secundárias é um astrónomo meio-tresloucado, que coincide com aquele de “Near Miss”, uma história do primeiro número de Rubber Blanket; as externas verificam-se, a título de exemplo, na página que mostra a visão da história, desde o “hoje” mais perto e claro até à longíqua e pouco visível estreita faixa da pré-história, espelha-se uma construção famosa de Saul Steinberg para a capa de uma New Yorker. Outros exemplos haverá. Reincide assim a ideia de ser este um livro que repensa igualmente a tradição, a história, a ontologia das linguagens gráficas empregues na criação de histórias, de um imaginário concertado.
No cômputo geral, todavia, este desequilíbrio, entre novidade e classicidade, entre unidades singulares e obra estruturada, entre nitidez narrativa e ruído inventivo, nota-se a toda a extensão. A fabricação da voz narradora pelo irmão gémeo nado-morto é um interessante achado, muito pós-moderno e promissor, mas que acaba abandonado de um modo quase distraído, quase como o hábito de fumar de Asterios: apenas nos apercebemos de ambos abandonos muito depois do facto.
A história central, a das relações de Asterios com os outros, sobretudo, em duas fases, com Hana e depois a família do mecânico Stiff, em quem se refugia, apresenta uma resolução fácil, caricata até. Poderá argumentar-se que á um final irónico ou cómico-trágico, que volta a tecer uma linha começada em Rubber Blanket, mas não deixa de diminuir o desejo de encontrar uma resolução mais facetada e subtil. Ao mesmo tempo isso leva-nos a considerar que o propósito de Asterios Polyp não é a linearidade ou a dicotomia proferida, logo ao início, pelo próprio Asterios, mas o desenho circunvoluto dessas relações, um novelo propriamente dito, e não somente a sua circunferência.
No fundo, se bem que dizer que é um projecto falhado seja um erro tremendo, esta é uma obra com falhas, no que diz respeito pelo menos àquela instância a que se costuma dar o nome de “grande fôlego”, aplicado a autores cuja obra se constitui, como era o caso de Mazzucchelli até esta datas, por peças pequenas (mas não “menores”). Julgar que um autor com “livros” ou “séries” é necessariamente melhor que outro que costume dar-se a ver através de gestos breves não é um mero erro de escala, é completa estupidez. Como vimos, Mazzucchelli já havia experimentado diversos graus de sucesso e de trabalho. Asterios Polyp não é uma extensão ou desenvolvimento em expansão dos seus trabalhos anteriores, mas antes um contínuo desdobramento dos seus interesses formais, enquanto aplicados à narrativa. Daí que se note naquele ritmo fragmentado das narrativas entrelaçadas, ou episódios, e a flutuação entre a força súbita de uma ideia visual e a sua expressão, e um recurso mais consensual (a tal associação que fizemos à linha clara; mais, a própria personagem Asterios faz-nos lembrar por vezes o Hergé-personagem de Stanislas). Enfim, Asterios Polyp é mais uma exploração sistemática dos elementos molares da banda desenhada do que a emergência coerente do seu sistema transformado pelo autor. Mazzucchelli demonstra ser, portanto, mais um “executante exímio” do que um “re-inventor pelo desequilíbrio” (como, talvez, um exemplo apenas, Gary Panter?). Há, portanto, uma opção menos pela expressividade - o que ocorrerá com autores mais emotivos, mas não necessariamente tão inventivos, como Craig Thompson ou Bechdel, ou outros cujos meios formais exploram a extensão física e factural dessa expressão, de novo como Panter ou Chippendale – do que pela impressividade, o impressionismo, o despertar de percepções graças a elementos mínimos de estabelecimento de formas.
Vemos e sentimos o mundo de Asterios Polyp através de Asterios Polyp. Como diz Don DeLillo algures, o propósito do romance (da ficção em geral, englobando alguma banda desenhada) é a “recomplicação da realidade”. Isso acontece aqui. Não é esse mesmo o fito da melhor ficção?

2 comentários:

daniela disse...

como estudante de bd não poderia ter ficado com mais vontade de ler este livro "activamente".

OPN! disse...

Essa é uma obra de arte que explora ao máximo as possibilidades da BD e deveria ser incluída em qualquer curso que use arte como premissa: design, publicidade, comunicação em geral...
Fortemente indicado aos amantes da 9a Arte!

Abraços!
OPN!