16 de outubro de 2008

Siteless. François Blanciak (MIT Press)

Desenho, escrita, urdidura, pensar. Pt 3.
Siteless, do arquitecto François Blanciak é ainda um contributo, ainda que mínimo (isto é, a minha discussão desse trabalho, não o livro em si), à questão presente. Não quererei com esta nota dizer que o inclua ou o exclua de um espaço de expectativas sociais ao qual se pode dar o nome de “ilustração”. É algo em aberto, e não uma decisão, se bem que o seu arrolamento seja um gesto, à partida, positivo. Vistas as coisas de uma forma fria, e tendo mesmo em conta as palavras do autor, Siteless poderá ser entendido como um tratado de arquitectura. O autor quer pensar para além das palavras, para além da construção de um discurso verbal, teórico, intelectual, para escavar junto às formas que ajudam a pensar a arquitectura.
Tendo visitado cinco cidades (Hong Kong, Nova Iorque, Copenhaga, Los Angeles e Tóquio), auscultou e tacteou com o olhar as formas de edifícios existentes e traduziu-as a lápis. Todas as páginas são idênticas em termos de distribuição: 12 formas distribuídas numa grelha regular, acompanhadas por um breve “nome” (não título, nem método de identificação do edifício ou construção real), como se de um alfabeto se tratasse, e susceptível de vir a ser aprendido, apreendido e, depois, fim último, recombinado numa linguagem de novos e inesperados significados.
A “manipulação da forma” é o seu propósito, um recordar experimentações possíveis na arquitectura. O autor parece dar a entender que essa é uma via menos procurada na sua disciplina, mas não se trata de um total deserto, se recordarmos os trabalhos existentes, desde os arquitectos utópicos como Boullée ou até Speer, e passando por Zaha Hadid. Admitamos que todos estes autores deixaram uma herança teórica, política e verbalmente programática, ao passo que Blanciak apenas apresenta uma nota introdutória e o peso do pensamento é feito através das imagens. Naturalmente que poderíamos desviar-nos das premissas e constrangimentos disciplinares da arquitectura tout court, e procurar no mundo do desenho, da ilustração, da banda desenhada, artistas que pensaram as formas das construções e do urbanismo através do desenho, de Albert Robida a Hugh Feriss, de François Schuiten a Érik Desmazières (este tema foi abordado num dos papers do SHOT 2000), mas Blanciak procura manter a união entre a forma e a disciplina que é a sua.
Curiosamente, o autor alega (com razão) que o uso de instrumentos digitais de desenho e “rendição” (como se costuma dizer por aí) implica à partida restrições: esses instrumentos “tornam-se obstáculos à produção de diversidade”. A escolha de um ângulo de visão sempre idêntico, a ausência de escala, e praticamente um tamanho (na mancha da página, um “quadrado”, como ele afirma) idêntico, leva à assunção dessas formas enquanto precisamente isso, formas, e não objectos concretos. A escolha do desenho torna a sua representação ou criação mais subjectiva mas, por isso, mais próxima de um pensamento próprio do autor (percepção e expressão).
O autor faz ainda analogias entre as formas que (re)produz e as escritas do Japão (onde trabalhou substancialmente): formas “simplesmente curvilíneas” (hiragana), “vincadamente rectas” (katakana) ou “extremamente complicadas” (kanji). A partir daí, a analogia com um sistema de escrita é mais claro ainda.
O autor alerta que quer que este livro “seja salvo das estantes de livros de arte”, e por isso providencia um capítulo ou anexo final, em que apresenta uma das formas identificadas num estudo de integração num contexto – num site – real. Não obstante, o propósito é pensar uma arquitectura de formas independentemente dessa contextualização empírica; daí que sejam formas “siteless”, sem sítio.
O que nos interessa então um livro desta natureza? O problema parece estar em que estas percepções e divisões entre rótulos tais quais “banda desenhada”, “ilustração”, “desenho”, se bem que importantes em termos de distribuição disciplinar, económica e até mesmo de poder cultural (a primeira continua, e continuará durante algum tempo, sob a impossibilidade de uma percepção social ampla e inteligente), são muito análogas ao olho partilhado pelas três irmãs cinzentas, as Graiai da mitologia grega: três mulheres com um só olho, que passavam entre si. Uma cegueira terrível e pesada. Um olho que apenas funciona com um suporte de cada vez. Literalmente, estas irmãs não eram capazes de se olhar entre si, de trocar olhares. Apenas de trocar o olho, mudando drasticamente de perspectiva, mas pagando com a cegueira total da anterior.
A reeducação do olhar, através de um entendimento de que o acto de desenhar, enquanto extensão do corpo, é, a um só tempo, sua inscrição, continuidade, projecção, herança, mas também método de inscrição própria, do corpo-no-mundo, de método inaugural de si mesmo, é o que nos permite reponderar essas relações e vê-las mais numa questão de continuidade, de questionamento das relações entre desenho e escrita, entre símbolo e idiossincrasia, entre sinal e mancha, entre expressão e comunicação.
Se houve detractores de Boullée, apelidando a sua arquitectura de “parlante”, isto é, de meras palavras, o gesto de Blanciak é o de promover um pensamento arquitectónico apenas “de desenho”. E é aí que reside o nosso interesse, se bem que estejamos a exercer uma pequena violência, violação, rapto, ao arrancarmo-lo do seu contexto preciso e querer usá-lo para um pensamento do emprego do desenho serial (ou até mesmo sequencial, se encontrássemos aqui raízes e fundamentos de uma promessa de incessante metamorfose) para melhor compreendermos as potencialidades do nosso território em contínua expansão. Haverá implicações reais no pensamento da arquitectura, decerto, mas as especificidades dessa disciplina escapam-nos (talvez venha a deixar aqui uma nota adicional).

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