20 de abril de 2008

Orycretopus. Gabriel Delmas (Carabas Révolution)

A banda desenhada pode-se entender em termos gerais (mas ainda não, ou nunca, enquanto definição, i.e., um fechamento) como um conjunto de imagens subsumidas a uma direcção de sentido, estruturado de acordo com um programa ao qual podemos dar o nome de “narrativo”. Narrativa aqui não significa que seja um bloco inerte com todas as características possíveis da narrativa (tempo organizado, personagens, caracterização das mesmas, psicologismo, trama, causalidade, etc.) mas apenas um intervalo no qual se podem inscrever algumas dessas características. (Mais)

Gabriel Delmas é um autor com uma prestação bem variada, em que tenta géneros e estilos, talvez de acordo com vontades transitórias (ainda que indómitas?). Havia feito um álbum mais comercial na Delcourt, intitulado Le Psychopompe, reminiscente a um só tempo de Mike Mignola (com Hellboy) e de Aristophane (com Conte Démoniaque), mas não tão linear quanto o primeiro nem tão poético como o segundo: uma pequena opereta demoníaca, também herdeira de Collin de Plancy, de Marilyn Manson, do ciclo de Grendel (Matt Wagner e tal.) e da banda desenhada de acção/super-heróis norte-americana (perceberão a salada que ali vai; ele escreveu um outro título, desenhado por Patrick Pion, Moloch Jupiter Superstar: a combinação é suficiente para alertar dos perigos). Outro ciclo que tem explorado é o da sua personagem Elagabal, ciclo o qual, incorrendo aqui num exercício de dura redução, me recorda as óperas siderais de Jim Starlin, mas com um ambiente mais leve e colorido apesar da presença da sombra de Artaud e Cocteau (v. Le Mouton-Chien manchot e Elagabal).

Este Orycretopus está equidistante dessas duas obras anteriores. Ou fora da equação que os originou, já que toda a sua produção está do lado do argumento, da organização de uma história e seus propósitos e a subsunção da parte visual a esse programa, como dito acima. Ao passo que este livrito, de umas 30 páginas, pertence antes àquela criação que deverá antes a um simples movimento em frente a partir dos gestos do desenho, sem grande preocupação com a causalidade ou a coerência de uma narrativa clássica. O livro é composto por pranchas ocupadas por um desenho apenas, mesmo que haja uma decomposição do movimento da personagem principal, e única, um porco-formigueiro (em inglês um “Aardvark”, nome que será mais familiar graças à série Cerebus de Dave Sim do que pelos conhecimentos zoológicos), ou por um brevíssimo texto que pretende caracterizar o comportamento e natureza dessa personagem mas através do que parece ser uma combinação aleatória de palavras, por vezes com um sentido mais circunscrito, outra totalmente absurdo. O que acompanhamos é uma pequena viagem, ou dança, deste porco-formigueiro rosa, por entre os estames de estranhíssimas flores que derretem, fungos arborescentes, cogumelos flutuantes, orquídeas embriagadoras, e onde as promessas psicotrópicas dessas plantas se cumprem nos momentos em que o corpo do orycretopus parece também ele derreter-se, expandir-se, voar, evolar-se...

Mas mesmo que a sua presença seja certeira, concorrem outras sombras: colibri, borboleta, elefante, abelha, ser humano, são outras criaturas que parecem também poder fazer parte da sombra que o orycretopus desenha na sua acção. Tudo isto é uma imagem do próprio trabalho do autor. Tudo nasce desse desenho, e do desenho do autor.

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