11 de julho de 2006

Edgar P. Jacobs & Le Secret de l'Explosion. Renaud Chavannes (PLG)


Este é um livro de tese, de um dos contribuidores da Critix, sobre o famoso autor das aventuras de Blake e Mortimer. A tese que o move é simples e directa: Renaud Chavanne aponta para que a base da organização da composição (gráfica, estrutural) de Jacobs é a “strip”, isto é, a “tira”, e não a página, conforme se acreditaria a partir das leituras de trabalhos teóricos como os de Benoît Peeters, por exemplo. Jacobs trabalha a tira, começando com uma estrutura simples de (duas fileiras) de três vinhetas de dimensões iguais, no seu pastiche do Flash Gordon de Alex Raymond, O Raio U, nas páginas da revista onde trabalhou, a Bravo!. À medida que avançaria na sua obra, nomeadamente na primeira aventura do duo inglês, O Segredo do Espadão, Jacobs experimentaria variações no seio dessa tira, o que Chavanne chama de “fragmentação” (e da qual o autor do estudo avança propostas de nomes para os modelos mais verificados, como “1/2/1” ou “2/1/2”), até atingir o momento da “explosão”, narrativa – a da sede do poder do ditador tibetano Basam-Damdu – e gráfica – quando surge, mais do que uma prancha composta por três níveis de tiras, uma verdadeira prancha “tabular” (ver imagem incluída abaixo). Apesar dessa “descoberta” literalmente fulgurante, Jacobs optará por seguir, em toda a sua obra, essa implícita regra de trabalhar a tira. O livro de Chavanne é um estudo minucioso, se não exaustivo, do modo como Jacobs procedeu a essa fragmentação, e o modo como ela se relaciona com os restantes elementos composicionais da sua obra. Trata-se, portanto, de um livro teórico, uma leitura pormenorizada, analítica do funcionamento dessas tiras. Para isso, Chavanne apoia-se a uma série de estatísticas, cômputos, comparações, gráficos, que pululam pelas páginas deste livro – e não será surpreendente ver o quão envolvido está Chavanne em actividades computacionais.
Não deixa o analista de relacionar o trabalho de Jacobs com a cena de banda desenhada onde se inscrevia, aquando da criação das suas histórias, se bem que sem menções directas, já que não se trata este de um estudo comparativista, mas sim do modo que Jacobs segue para a sua composição. É muito sagaz a análise que o autor faz dos vários níveis de leituras possíveis: não só destes modelos imagéticos e compositivos que avança como a(s) matriz(es) de Jacobs, mas ainda aspectos relativos aos tamanhos das vinhetas e suas razões, dos espaços intervinhetais, da cores, dos textos que englobam, dos elementos gráficos, representacionais, narrativos, etc. Os formalismos constantes, apenas aparentemente excessivos, nem sempre são associados a uma interpretação narrativa que corrobore, de imediato, a sua pertinência estrutural... é a sua recorrência regular e o seu ritmo de “respiração” (palavras do autor) que tornam essa análise pertinente e, de um modo global, revertendo ao valor que exercem sobre toda a obra do mestre belga.
Há momentos em que se alerta para pequenas jóias, quasi-oubapiannas avant la lettre, na obra de Jacobs, como o exemplo da pg. 92 (correspondendo à tira de baixo da pg. 28 do 2º volume de O Segredo... – sigo a edição portuguesa da Bertrand; v. ainda nota 103 de Chavanne). E há uma grande atenção em relação aos aspectos estritamente textuais. Para já, a insistência do autor em incluir as vinhetas somente de texto sem qualquer distinção ou preconceito, contabilizando-as de igual modo para a fragmentação das tiras, reforça a consideração que Chavanne tem para a convivência destas duas “línguas” – texto e imagem – no campo da banda desenhada. Se, nalguns momentos – a defesa dos longos e por vezes, mas as mais das vezes apenas aparentemente, redundantes textos narrativos de Jacobs – poderá parecer que Chavanne não é mais do que um fã de Jacobs que o defenderá a qualquer custo, tendo criado um discurso altamente especializado e teorizado para isso, a verdade é que as suas leituras e análises são tão exaustivas (e como!) mas tão seguras e certeiras, que iluminam, de facto, essas mesmas dúvidas, dissipando-as. Vejam-se as páginas 73 e seguintes, tal como, obviamente, o capítulo que lhe é especificamente dedicado (“Rôle du texte”) para a importância que o texto assume em Jacobs, esclarecendo assim as relações entre os textos (narrativos ou das falas) e as imagens, em que os primeiros se tornam dinamizadores e organizadores, não só da acção, como da própria estruturação (agencement) das vinhetas, das tiras, etc. Não pode, portanto, haver um corte das considerações dos textos e das imagens, em prol de uma tabularidade (cf. Peeters) – o que se notará pelas potenciais leituras em “W” ou “U” no que Chavanne chama de “modelo 2/1/12” das tiras.
Há um outro aspecto picuinhas de censura, mas que notarão ser pertinente: para um livro cujo tema é a composição (seja da banda, da prancha, do livro...), revela-se uma frouxa relação entre o texto, digamos, corrido, e as legendas das figuras e das ilustrações, entre as notas de fim de volume e as informações trazidas pelos gráficos, tornando alguns passos algo redundantes... a menos que se trate de uma nada involuntária imitatio do mestre belga nesse aspecto.
A leitura deste livro não é propriamente fácil, e ajuda sobremaneira lê-lo com os livros de Jacobs abertos e prontos a folhear ao lado (complementaridade compulsiva desdobrada pelos materiais disponíveis no site companheiro deste livro) – mas o mesmo se passa, por exemplo e no campo da banda desenhada, com o Pour Une Lecture Moderne de la Bande Dessinée, de J. Baetens e P. Lefèvre, ou com qualquer livro de análise literária (textual). É aí que reside o busílis: esta é uma obra analítica e, enquanto tal, irrepreensível. Não se trata (somente) de uma monografia de encómio. A leitura é, desde já, obrigatória a quem desejar dedicar-se à leitura crítica da banda desenhada, pelo menos no seio de um discurso mais académico, mais balizado.
No entanto, a aplicação deste tipo de análise e dos instrumentos desenvolvidos pode ser relativamente difícil em relação a autores que já trabalham numa fase posterior... Chavanne aponta, a medo, mas abrindo a questão, alguns exemplos de modelos análogos aos de Jacobs em outros autores, bem mais contemporâneos, e de várias proveniências geográficas e narrativas. Apenas um exame tão próximo a esses autores em conformidade com o caminho de Chavanne confirmaria essa hipótese de aproximação. A minha dúvida é que, trabalhando esse autores já a prancha como sua unidade de composição (mesmo que trabalhem tiras), e tendo também acesso a toda uma série de estratégias estruturais posteriormente inventadas (inclusive por Jacobs), a própria palavra “fragmentação” parece não se aplicar, uma vez que nada de anteriormente “inteiro” de fragmentou. O resultado pode ser análogo, superficialmente idêntico, mas o caminho de pensamento não poderá ter sido, forçosamente, o mesmo. Todavia, é a atitude e a possibilidade desta natureza de análise sobre a linguagem de outros autores que se aventa.
A atenção para com as novidades e variações que Jacobs vai introduzindo progressivamente na sua obra faz-nos retornar à atmosfera “anódina” que é quase assumida por qualquer realidade na qual recai o epíteto de “clássico”, como se se tratasse de algo que já não nos surpreende, mas isto faz-nos a nós regressar à reconsideração do que são os clássicos, já uma vez feita também pela mão de Italo Calvino. Ora é essa precisamente a maravilha deste livro de Chavanne, que nos obriga a regressar aos livros de Jacobs e redescobrir neles a frescura do nosso próprio olhar sobre eles – agora educado com os instrumentos que Chavanne nos proporcionou. De certa forma, ao sublinhar o papel matricial da tira, isto é, da banda, - “a página é portanto uma inteligente estruturação de mais de uma tira” (pg. 176) - Chavanne acaba por (re)indicar Jacobs como um verdadeiro mestre, literalmente, da banda desenhada.
Nota: agradecimentos a Domingos Isabelinho, por me ter emprestado o livro.Posted by Picasa

1 comentário:

Renaud Chavanne disse...

Bonjour M. Moura. Est-il possible de vous joindre par eMail ? Merci, Renaud Chavanne (r.chavanne@lexplosion.net)