22 de julho de 2005

Lupus (3 vols.). Frederik Peeters (Atrabilis)


Não acredito que Peeters alguma vez se venha a destacar sobremaneira para além do círculo em que já opera. Este é um autor que não pugna por uma procura de uma linguagem própria que o sustente como grande autor, para além das idiossincrasias e singularidades que nos são de direito, à partida, enquanto seres humanos e depois enquanto autores (se o formos). Das suas obras anteriores, talvez a mais pessoal, Pillules Blues (agora com tradução portuguesa), seja a que deixa maiores ecos após a leitura. Esse é um livro de formato grosso, que acompanhava a relação de um jovem autor de banda desenhada e a sua nova namorada, que descobre ser seropositiva. A proximidade com a vida é por demais sentida, e já aqui comentei as minhas posições sobre essa mistura, com a leitura de uma outra obra. Pillules Blues deixava saudades por alguns “mecanismos de defesa” em relação a um pretenso realismo, através de inusitadas estratégias: numa cena, um médico diz que uma certa situação seria tão inesperada como um rinoceronte surgir ali, e o autor não é de sarilhos, postando um rinoceronte entre os protagonistas. Não é um suposto “surrealismo” à la Buzelli ou Clowes ou Fred, é simplesmente um desvio ao registo até ali tido. Outras obras, publicadas sobretudo em pequenas editoras independentes europeias (L’Association, Drozophile, L’Atrabile, etc.), tanto incidiam em temas mais pessoalmente melancólicos (Onamatopées, Friture), como em exercícios de estilo (Constellation). O seu desenho parece-me ter fluido de reminiscências estilística e histriónicas, à Nicolas de Crécy, hoje parecendo antes inscrever-se nessa linha de contornos fáceis e legíveis, mesmo assim com características próprias, às quais podemos acrescentar Craig Thompson, talvez Josh Neufeld e um certo James Sturm inicial. Mas Peeters é ainda mais livre nos seus contornos.
Lupus pode, em superficialíssima visão, ser visto como uma série de ficção científica. Mas ao passo que autores americanos como Warren Ellis, por exemplo, ainda insistem em óperas onde o destino do universo se joga nas mãos de um par antagonista, e outros nos mais esticados devaneios tecnológicos ou suposições de civilizações extraterrestres, Peeters resolve ir por uma rota contrária: mostrar que a merda de vida de um gajo qualquer continua a ser uma vida de merda, aqui e agora ou no futuro e no espaço...
Nunca percebemos muito bem quem Lupus é ou foi, já que não se trata aqui de uma biografia, e parece que ele próprio também nunca percebe como é que as coisas que lhe acontecem acontecem dessa forma... Isso não obsta a que, esparsamente e depois mais amiudadamente, se comecem a tecer compreensões sobre a sua infância, a relação com o pai, a ligação com o seu amigo... Somos testemunhas implicadas na vida de um gajo “normal” a quem a vida não lhe parecia reservar grandes surpresas, mas eis que a fórmula de sempre vem desarrumar a loja: o “rabo de saias” problemático. A partir daí, as peripécias são muitas, e Peeters centra-se mais no que se passa no interior de Lupus, do que em excursos desnecessários ou grandes explicações da civilização em que se movem. Porém, uma ou duas imagens e uma frase bem colocada são o suficiente para irmos construindo o tipo de sociedade que esta série habita. Também vão surgindo ilustrações da fauna, flora ou ambiente dos territórios visitados; ilustrações, no sentido etimológico da palavra, tornando esses espaços e objectos mais claros, se bem que não explícitos e integrados num sistema fechado e estudado. Ou seja, tudo se vai construindo sem algazarra.
Chegados ao terceiro volume, há uma espécie de exílio, literal, em que o casal fugitivo se encerra numa estação de férias, e figurativo, em que Lupus se retira para os seus espaços mais íntimos da memória. Lupus sente que todos fogem de si (o pai, mais sentidamente), e esta nova fuga que lhe é imposta parece, a um só tempo, obrigá-lo e a permitir-lhe “recobrir os passos da minha infância”, como diz a determinado momento.
E como a memória é uma linguagem que aparentemente nada diz de novo, o silêncio é a sua língua favorita. E essa é uma das outras características que mais sobressai neste autor, e que se torna uma mais-valia em Peeters: a gestão das vinhetas sem texto escrito, num álbum relativamente prosaico e sem grandes rasgos de experimentalismo. Falo de um uso dessas vinhetas não como busca de poeticidade (à la Comes) nem como mero exercício de estilo, mas simplesmente uma gerência equilibrada dos ritmos possíveis com uma narrativa regular. Por exemplo, um autor mais mainstream como Mignola utiliza-as como ponto decorativo ou mesmo pontuação no resto da acção, mas Peeters é capaz de as tornar significativas por elas mesmo, plenas de sentido. Abrindo e fechando assim cada livro-capítulo, e espalhando-as em momentos-chave da personagem, torna a “respiração” de toda a saga mais próxima de uma leitura fluida e aprazível.
Nota: é o futuro quarto volume que encerrará esta série. Posted by Picasa

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