8 de julho de 2004

Cusp. Thomas Herpich (Alternative Comics)


É absolutamente discutível o que define algo como alternativo, underground, etc. Não é minha intenção entrar nessa discussão. Parto do princípio de que existem algumas características vagas o suficiente para haver um acordo em o que colocar nesta esfera. E dos muitos trabalhos publicados no respectivo panorama norte-americano em bd, que é bastante activo e difícil de acompanhar se de longe, existem muitos exemplos do que se poderá chamar “pedradas no charco”. Sempre surgem trabalhos frescos e inovadores e surpreendentes, mas há sempre uns mais “pedrada” que outros. Como Cusp de Thomas Herpich. Com um formato de revista regular, é a todos os níveis um livro total, um belo objecto em que cada uma das 40 páginas está cheia de sentidos abertos, e com uma das mai belas capas vistas nos últimos tempos no mercado americano... Esta é uma colecção de material vário, sendo a maior parte trabalhos de uma só página (19 de 23) que Herpich tinha de submeter a cada semana num curso de “cartooning” durante os seus anos de Universidade. Herpich jamais criara banda desenhada antes, e mesmo o seu conhecimento do meio era vago e pontual, apesar de aos poucos se ter aproximado da órbita “alternativa”. Nunca existira um verdadeiro intuito em publicar isto tudo, até um amigo insistir em que apresentasse o trabalho a Jeff Mason, editor da Alternative Comics. Assim, algo que poderia nunca ter visto a luz do dia ou ter sido distribuído pelos circuitos da small press ou dos mini-comix acabou por ser publicado desta forma.
O facto de que a origem destas páginas está associada não a um projecto coeso de criação mas algo espaçado não implica necessariamente falta de coerência no conjunto final. É verdade que nalguns casos poderíamos ser recordados do que Scott McCloud apelida de sequências de painéis do tipo non-sequitur. Porém, eu diria antes o modo holístico que a bd é atinge em Herpich uma coerência especial, graças a uma voz muito particular, que não se preza a uma apresentação linear dos temas ou dos preceitos. Há uma grande diferença de trabalho para trabalho, é certo... algumas coisas parecem simples anedotas, ou ilustrações, ou gags, outras já buscam um significado mais sério, uns painéis são mais estruturados que outros, há desenhos mais elaborados e outros mais imprecisos ou “abonecados”, no que parece uma busca constante por uma conjunto diverso de efeitos.
Temo que ao usar o termo “experimental”, se esteja a reduzir esse mesmo trabalho a algo que não tem o direito de ser apresentado novamente ou praticado regularmente, mas apenas como se fosse algo descartado após uso... Ainda assim, Herpich aceita esta visão de “experimental”, confessando não procurar utilizar as mesmas técnicas duas vezes: não se julgando com intenções de contar, de moralizar sobre a vida com determinado conto, inclina-se antes a pensar os vários modos de fazer bd. Uma aproximação mais formal, portanto.
Ao nos depararmos com algumas das recensões sobre Cusp (e disponibilizadas no site da editora), vemos que os juízos sejam negativos ou positivos acabam por tocar num mesmo aspecto da obra. Por exemplo, Andrew D. Arnold (Time) parece-me correcto quando compara a peças de Herpich a poesia, no sentido em que esse género formal de literatura permite, no geral, uma interpretação mais alargada que outro qualquer... Herpich confessa que, talvez com alguma ingenuidade, lhe agrada esta comparação, quer por legitimar o seu trabalho, quer por de facto preferir pequenos aspectos da condição humana a grandes narrativas... O artigo em 4th Rail aplica várias vezes as palavras “surreal” e “esquisito” (weird), e ainda diz que «a narrativa parece propositada e gratuitamente esquisita e vaga». Penso que esta análise não vai ao encontro dos valores transmitidos pelas pequenas peças de Herpich. Quiçá o que se designa por “vago” seja antes, no caso presente, uma economia de meios: acima de tudo, o autor busca apresentar algo através de informação mínima e minimal. Uma das qualidades apontadas por Italo Calvino em Seis Propostas para o Novo Milénio, a rapidez. Mesmo que algumas das peças, (como exemplo, "What Went Wrong" – uma piada sobre a Internet quer pelo acrónimo www quer pelas formas de ecrã desta página com erros? - ou "She Didn’t") sejam mais gratuitas do ponto de vista narrativo, o autor não considera esse um aspecto negativo nas suas opções como criador de bd.
O que me impressionou em primeiro lugar com Cusp foi a aparente dissimilitude de temas. Algumas das histórias, como "Gold Suits” e “Bound”, parecem mergulhar numa violência inusitada, por vezes visivelmente carnal por outras num sentido maioritariamente psicológico mas sempre ameaçador para além desse mesmo momento... mas outras, como “Dr. Cranbury”, “Pilgrim” e “Werewolves”, parecem querer atingir aquela esfera do gracioso, onde paira a filosofia do carpe diem e dos contos zen, onde se esconde uma lição por detrás da aparente conclusão desconcertante.
Mas temas recorrentes despontam aqui e além, em detalhes: os animais selvagens e a natureza, a interacção dos humanos com esse ambiente, uns mitos mais conhecidos que outros (parece-me ver uma versão sublimada e pós-moderna de "Sonho de uma Noite de Verão de Shakespeare em Eros"*, a maior estória do livro), anedotas porcas sem grande piada, uma atenção especial pelas mãos (das mais bonitas que já vi desenhadas) e a abundância de painéis silenciosos ou mesmo em branco que garantem um ritmo pausado, de um sereno fôlego, a cada história... Mas todos os temas, visíveis ou não, enraízam-se nas experiências pessoais do autor. Como a adolescência, presente de uma forma tangencial, e na qual Herpich aprecia explorar “as lutas e medos contra a mudança” e a consequente “irreversibilidade da mudança”... tudo isto uma forma sublimada de autobiografia.
No fim, tenho a sensação de estar perante um livro completo, acabado. Talvez não seja honesto dizer que Cusp é um trabalho maduro, e que ainda seremos testemunhas do crescimento do autor, mas para já, parecem-nos estes bons auspícios. Tendo trabalhado até recentemente para o famoso criador de animação Bill Plympton, está ocupado agora com o próximo livro. No entanto, como este será feito tendo esse objectivo permanente e claramente na mente, e ainda tendo em conta as expectativas dos seus recém-adquiridos leitores e fãs, a “sua mente artística hipersensitiva” tem-se abalado com isso...
Notas: * As 5ª e 6ª páginas desta história foram trocadas na montagem do livro. Está disponível em formato PDF no site da editora. www.indyworld.com/altcomics
Este artigo foi feito com a ajuda directa do autor, com que troquei alguns emails; algumas das citações neste texto são suas. Faço públicos aqui os meus agradecimentos pela gentileza e rapidez com que o fez. Contactem: thomasherpich@hotmail.com Posted by Hello

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